terça-feira, 11 de março de 2025

Morte à orelha de Van Gogh! - Allen Ginsberg

 

Morte à orelha de Van Gogh!

O POETA é Profeta
o Dinheiro contabilizou a alma da América
o Congresso foi trilhado até ao precipício da Eternidade
o Presidente construiu uma máquina de Guerra para vomitar e obrigar a Rússia a sair
         do Kansas
O Século Americano foi traído por um Senado louco que já não dorme com a mulher
Franco assassinou Lorca o filho maricas de Whitman
tal como Maiakóvski se suicidou para escapar à Rússia
Hart Crane distinto Platonista suicidou-se para desabar a América errada
tal como milhares de toneladas de centeio humano foram queimados em cavernas
           secretas por baixo da Casa Branca
enquanto a Índia morria à fome e gritava e comia cães raivosos cheios de chuva
e montanhas de ovos eram reduzidas a pó branco nas câmaras do Congresso
nenhum homem temente a deus passará por lá outra vez com aquele fedor a ovos
          podres da América
e os Índios de Chiapas continuam a mastigar as tortilhas sem vitaminas
os aborígenes da Austrália talvez gaguejem na selva sem ovos
e eu que raramente como um ovo ao pequeno-almoço embora o meu trabalho
         requeira ovos infinitos para que possa vir à luz na Eternidade
os ovos devem ser comidos ou oferecidos às mães
e o sofrimento das inúmeras galinhas da América é expresso pelos gritos dos
          comediantes na rádio
Detroit construiu um milhão de automóveis com árvores de borracha e fantasmas
mas eu caminho, eu caminho, e o Oriente caminha comigo, e toda a África caminha e
          mais cedo ou mais tarde a América do Norte caminhará
pois tal como escorraçamos o Anjo chinês da nossa porta ele virá para nos escorraçar
da Porta Dourada do futuro
nós não compartilhámos pena por Tanganyika
Em vida Einstein foi gozado pela sua política celestial
Bertrand Russel foi escorraçado de Nova Iorque por ter sido possuído
o imortal Chaplin foi escorraçado da nossa costa com uma rosa nos dentes
uma conspiração secreta orquestrada pela Igreja Católica nos lavabos do Congresso
recusou contracetivos às massas incansáveis da Índia.
Ninguém publica uma palavra que não seja o delírio autómata e cobarde de uma
mentalidade depravada
O dia da publicação da verdadeira literatura do corpo americano será dia da
Revolução
a revolução do cordeiro sensual
a única revolução sem sangue que distribui milho de graça
o pobre Genet iluminará os ceifeiros do Ohio
A marijuana é um narcótico benevolente mas J. Edgar Hoover prefere o seu whisky
mortífero
E a heroína de Lao-Tsé & do Sexto Patriarca é punida com a cadeira elétrica
mas os pobres junkies doentes não têm onde deitar a cabeça
gatunos no nosso governo inventaram uma cura a sangue frio para o vício tão
obsoleta como o Sistema de Defesa por Radar de Alerta Antecipado
Eu sou o sistema de defesa por radar de alerta antecipado
Não vejo outra coisa senão bombas
Não estou interessado em impedir a Ásia de ser Ásia
e os governos da Rússia e da Ásia irão erguer-se e cair mas a Ásia e a Rússia não
cairão
o governo da América também cairá mas como poderá a América cair
duvido que alguém mais caia a não ser os governos
felizmente todos os governos vão cair
os únicos que não vão cair são os bons
e os bons ainda não existem
Mas têm que começar a existir eles existem nos meus poemas
existem na morte dos governos russos e americanos
existem na morte de Hart Crane e Maiakóvski
Agora é tempo de profecia sem que a morte seja uma consequência
o universo acabará por desaparecer
Hollywood vai apodrecer sobre os moinhos de vento da Eternidade
Hollywood com os filmes entalados na garganta de Deus
Sim Hollywood terá o que merece
Tempo
Infiltração de gás de nervos pela rádio
A história tornará este poema profético e fará da sua parvoíce assombrosa uma
música espiritual medonha
Eu tenho o lamento das pombas e a pluma do êxtase
o Homem não pode aguentar muito tempo a fome do canibal abstracto
A guerra é abstracta
o mundo será destruído
mas morrerei apenas pela poesia, isso salvará o mundo
o monumento a Sacco & Vanzetti ainda não foi financiado para enobrecer Boston
os nativos do Quénia atormentados por aldrabões idiotas de Inglaterra
a África do Sul nas garras do branco tolo
Vachel Lindsay Ministro da Administração Interna
Poe Ministro da Imaginação
Pound Min. da Economia
e Kra pertence a Kra, e Pukti a Pukti
fertilização cruzada de Blok e Artaud
a Orelha de Van Gogh na moeda
chega de propaganda a monstros
e os poetas devem afastar-se da política ou transformar-se em monstros
tornei-me monstro pela política
o poeta russo é sem dúvida monstruoso no seu bloco de notas secreto
os poetas russos farão frente à Rússia
o Tibete devia ser deixado em paz
Estas são profecias óbvias
a América será destruída
Whitman avisou-nos sobre esta «nação condenada ao Fracasso»
Onde estava Theodore Roosevelt quando enviou ultimatos do seu castelo em
Camden
Onde estava a Câmara dos Representantes quando Crane leu em voz alta os seus
livros proféticos
Onde estava Wall Street a maquinar quando Lindsay anunciou o apocalipse do
Dinheiro
Estariam a ouvir o meu delírio nos balneários dos Centros de Emprego do Bickfords?
Será que inclinaram os ouvidos para escutar os gemidos da minha alma quando eu
me via a braços com estatísticas de marketing no Forum em Roma?
Não eles lutavam em gabinetes inflamados, em tapetes de insuficiência cardíaca, e
gritavam e regateavam com o destino
enfrentavam o Esqueleto com sabres, mosquetes, dentes tortos, indigestão, bombas
de furto, impérios de prostituição, foguetões, pederastia,
de costas para o muro para erguerem as suas mulheres e os seus apartamentos,
relvados, subúrbios, impérios de maricas,
Porto-Riquenhos amontoados para o massacre na Rua 114 só por causa de uma
imitação do frigorífico Chinês-Moderno
Elefantes de misericórdia assassinados só por causa de uma gaiola isabelina
Milhões de fanáticos frenéticos no manicómio por causa do soprano estridente da
indústria
Cânticos ao dinheiro dos ensaboadores
¾ macacos de pasta dentífrica nos televisores
¾ desodorizantes sobre cadeiras hipnóticas ¾
traficantes de petróleo no Texas
¾ rastos de aviões a jacto por entre as nuvens ¾
escritores a jacto mentem na cara da Divindade
¾ carniceiros de sapatos e chapéus,
com presas, todos Patrões! Patrões! obcecados pela propriedade e pelo
Individualismo em extinção!
e os longos editoriais sobre a esgrima do negro aos gritos atacado por formigas
rastejaram pela primeira página fora!
Maquinaria de um colossal sonho eléctrico! Uma Puta da Babilónia criadora de
guerras a bramir sobre os Capitólios e Academias!
Dinheiro! Dinheiro! Dinheiro! louco e celestial dinheiro da ilusão a gritar! Dinheiro
feito de nada, de fome, de suicídio! Dinheiro do fracasso! Dinheiro da morte!
Dinheiro contra a Eternidade! e as fábricas poderosas da eternidade trituram a imensa
folha da Ilusão!

Allen Ginsberg
Tradução e prefácio
de Paula Ramalho Almeida e Joana Matos Frias

Paris, Dezembro de 1957

Poet is Priest
Money has reckoned the soul of America
Congress broken thru the precipice of Eternity
the president built a War machine which will vomit and rear Russia out of Kansas
The American Century betrayed by a mad Senate which no longer sleeps with its wife.
Franco has murdered Lorca the fairy son of Whitman
just as Mayakovsky committed suicide to avoid Russia
Hart Crane distinguished Platonist committed suicide to cave in the wrong
America
just as Million tons of human wheat were burned in secret caverns under the White House
While India starved and screamed and ate mad dogs full of rain
and mountains of eggs were reduced to white powder in the halls of Congress
no God-fearing man will walk there again because of the stink of the rotten eggs of America
and the Indians of Chiapas continue to gnaw their vitaminless tortillas
aborigines of Australia perhaps gibber in the eggless wilderness
and I rarely have an egg for breakfast tho my work requires infinite eggs to come to birth in Eternity
eggs should be eaten or given to their mothers
and the grief of the countless chickens of America is expressed in the screaming of her comedians over the radio
Detroit has built a million automobiles of rubber trees and phantoms
but I walk, I walk, and the Orient walks with me, and all Africa walks
And sooner or later North America will walk
Einstein alive was mocked for his heavenly politics
Bertrand Russell driven from New York for getting laid
immortal Chaplin driven form our shores with a rose in his teeth
a secret conspiracy by Catholic Church in the lavatories of
Congress has denied contraceptives to the unceasing masses of India.
Nobody publishes a word that is not the cowardly robot ravings of a depraved mentality
The day of the publication of true literature of the American
body will be day of Revolution
the revolution of the sexy lamb
the only bloodless revolution that gives away corn
poor Genet will illuminate the harvesters of Ohio
Marijuana is a benevolent narcotic but J. Edgar Hoover prefers his deathly Scotch
And the heroin of Lao-Tze & the Sixth Patriarch is punished by the electric chair
but the poor sick junkies have nowhere to lay their heads
fiends in our government have invented a cold-turkey cure for
addiction as obsolete as the Defense Early Warning Radar System.
I am the defense early warning radar system
I see nothing but bombs
I am not interested in preventing Asia from being Asia
and the governments of Russia and Asia will rise and fall but
Asia and Russia will not fall
The government of America also will fall but how can America fall
I doubt if anyone will ever fall anymore except governments
fortunately all the governments will fall
the only ones which won’t fall are the good ones
and the good ones don’t yet exist
But they have no being existing they exist in my poems
they exist in the death of the Russian and American governments
they exist in the death of Hart Crane & Mayakovsky
now is the time of prophecy without death as a consequence
the universe will ultimately disappear
Hollywood will not rot on the windmills of Eternity
Hollywood whose movies stick in the throat of God
Yes Hollywood will get what it deserves
Time
Seepage of nerve-gas over the radio
History will make this poem prophetic and its awful silliness a hideous spiritual music
I have the moan of doves and the feather of ecstasy
Man cannot long endure the hunger of the cannibal abstract
War is abstract
the world will be destroyed
Monument to Sacco & Vanzetti not yet financed to ennoble Boston
Vachel Lindsay Secretary of Interior
Poe Secretary of Imagination
Pound Society. Economics
and Kra belongs to Kra, and Pukti to Pukti
cross-fertilization of Block and Artaud
Van Gogh’s ear on the currency
no more propaganda for monsters
and poets should stay out of politics or become monsters
I have become monstrous with politics
the Russian poet undoubtedly monstrous in his secret notebook
Tibet should be left alone
these are obvious prophecies
America will be destroyed
Russian poets will struggle with Russia
Whitman warned against this “Fabled Damned of nations”
Where was Theodore Rosevelt when he sent out ultimatums from his castle in Camden
Where was the House of Representatives when Crane read aloud from his Prophetic Books
What was Wall Street scheming when Lindsay announced the doom of money
Where they listening to my ravings in the locker rooms of
Bricksford Employment Offices?
Did they bend their ears to the moans of my soul when I struggled
with market research statistics in the Forum of Rome?
No they were fighting in their fiery offices , on the carpets of
heart failure, screaming and Bargaining with Destiny
fighting the Skeleton with sabers, muskets, buck-teeth,
indigestion, bombs of larceny, whoredom, rockets, and pederasty,
back to the wall to build up their wives and apartments, lawns,
suburbs,
fairydoms,
Puerto Ricans crowded for massacre on 114th St. for the sake of an
imitation Chinese-Moderne refrigerator
Elephants of mercy murdered for the sake of the Elizabethan birdcage
millions of agitated fanatics in the bughouse for the sake of the screaming
soprano of industry
Money-chant of soapers - toothpaste apes in television sets - deodorizers on hypnotic chairs -
petroleum mongers in Texas - jet plane streaks among the clouds -
sky writers liars in the face of Divinity–fanged butchers of hats and shoes,
all Owners! Owners! Owners! with obsession on property and vanished Selfhood!
and their long editorials on the fence of the screaming negro attacked by
ants crawled out of the front page!
Machinery of a mass electrical dream! A war-creating whore of Babylon
bellowing over Capitols and Academies!
Money! Money! Money! shrieking mad celestial money of illusion!
Money made of nothing, starvation, suicide! Money of failure! Money of death!
Money against Eternity! and eternity’s strong mills grind out vast paper of
Illusion!

terça-feira, 4 de março de 2025

A Esperança é poema

“Teremos comida, não restos.

Vamos viver o momento, apreciá-lo - não apenas como uma lembrança do que já foi, mas como prova de que ainda estamos aqui. Que carregamos dentro de nós o legado daqueles que perdemos.

E agora, mais do que nunca, entendo a oração de minha mãe:

"Oh Deus, vamos chegar ao Ramadão sem perder ninguém ou nos perdermos."

Mas desta vez, eu sussurro de forma diferente.

Oh Deus, vamos chegar ao Ramadão... sem perder mais ninguém. ”

A liberdade que brota das ruínas tem futuro


segunda-feira, 3 de março de 2025

OS BANCOS - Armando Silva Carvalho


OS BANCOS

 

Era bom descolar dos bancos, erguer o olhar acima

das cantarias, deste peso rotundo,

desta massa de cifras, destes arranjos de papéis abstratos,

destes homens que sou obrigado a ler e ouvir

como tributo ao facto de ainda estar vivo.

Tudo isto e o futebol

e os seus comentadores de camisa aberta, 

deprime a minha idade, mata-me

mais cedo.

 

Eu descubro a febre antes dela me chegar aos membros, 

olho-me ao espelho e pareço um cientista ambulante

desses que ganham prémios

e só lhes falta fixamente o próximo

para alcançarem o cómodo lugar de santos laicos.

As doenças estendem-se nos mapas,

as pestes são como as mariposas, 

e tudo parece esvoaçar na febre programada. 

 

Mas melhor mesmo era descolar dos bancos, 

subir acima do mármore, adormecer sem idade nem estrela,

ou descer tão baixo que a água não consiga encontrar-me,

e os vermes duma beleza estranha, azul, tão movediça,

venham beijar-me os poemas, discípulos de morte.

Sim, descolar dos bancos, encher a boca de terra,

enfim, saber dormir. 


Armando Silva Carvalho


sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

"As Últimas Palavras de Spartacus"- Amal Dunqul

 

"As Últimas Palavras de Spartacus"

(Primeiro Verso)

Glória a Satanás... o ídolo dos ventos,

Que disse "Não" à face daqueles que disseram "Sim",

Que ensinou o homem a rasgar o nada,

Que disse "Não" e não morreu,

E permaneceu um espírito de dor eterna!

(Segundo Verso)

Estou suspenso na forca do amanhecer,

E minha testa - pela morte - está curvada,

Porque não a curvei... enquanto vivo!

Ó meus irmãos que cruzam a praça martelando,

Descendo ao final da tarde,

Na rua de Alexandre, o Grande:

Não se envergonhem... e levantem os olhos para mim,

Pois vocês estão suspensos ao meu lado... na forca de César,

Então levantem os olhos para mim,

Talvez... se seus olhos encontrarem a morte nos meus,

A aniquilação dentro de mim possa sorrir... porque vocês levantaram suas cabeças... uma vez!

"Sísifo" não carrega mais a pedra em seus ombros,

Ela é carregada por aqueles que nasceram nas deceções da servidão,

E o mar... como o deserto... não mata a sede,

Porque aqueles que dizem "Não" só bebem de lágrimas!

Então levantem os olhos para o rebelde enforcado,

Pois vocês acabarão como ele... amanhã,

E beijem suas esposas... aqui... à beira da estrada,

Pois vocês acabarão aqui... amanhã,

Pois a curvatura é amarga...

E a aranha acima dos pescoços dos homens tece a decadência,

Então beijem suas esposas... deixei minha esposa sem uma despedida,

E se vocês virem meu filho que deixei em seus braços sem um braço,

Ensinem-no a se curvar!

Ensinem-no a se curvar!

Deus não perdoou o pecado de Satanás quando ele disse não!

E os bons suplicantes...

São aqueles que herdam a terra no final do caminho,

Porque... eles não se enforcam!

Então ensinem-no a se curvar...

E não há escapatória,

Não sonhem com um mundo feliz,

Pois atrás de cada César que morre: um novo César nasce!

E atrás de cada rebelde que morre: dores sem proveito...

E uma lágrima desperdiçada!

(Terceiro Verso)

Ó grande César: Errei... confesso.

Deixe-me - na minha forca - beijar sua mão,

Eis que beijo a corda que envolve meu pescoço,

Pois é sua mão, e é sua glória que nos força a adorá-lo.

Deixe-me expiar meu pecado,

Eu lhe ofereço - após minha morte - meu crânio,

Forje dele uma taça para sua bebida forte.

Se você fizer como eu desejo...

Se eles perguntarem sobre o sangue do meu mártir,

E se você me concedeu "existência" apenas para me roubar da "existência",

Diga a eles: Ele morreu... sem guardar rancor de mim.

E esta taça - cujos ossos eram seu crânio -

É meu documento de perdão.

Ó meu algoz: Eu o perdoei...

No momento em que você encontrou descanso de mim,

Eu encontrei descanso de você!

Mas eu o aconselho, se você quiser enforcar todos,

Poupe as árvores!

Não corte os troncos para fazer deles forcas,

Não corte os troncos,

Pois talvez a primavera possa chegar,

"E o ano é um ano de fome", E você não sentirá o cheiro de frutas nos galhos!

E talvez o verão perigoso passe por nossas terras,

Você atravessa o deserto, buscando sombras,

E você não vê nada além de aridez, areias, aridez, areias,

E sede ardente nas costelas!

Ó senhor dos mártires brancos na escuridão...

Ó César da geada!

(Quarto Verso)

Meus irmãos, que na praça cedem, curvando-se,

Descendo à medida que a noite se esvai,

Não visualizem um mundo de alegria...

Pois cada César caído dá lugar ao nascimento de outro.

E se em seu caminho você encontrar "Aníbal",

Diga a ele que esperei uma vida inteira nos portões cansados de "Roma",

Esperei os anciãos de Roma sob o arco da vitória, o vencedor dos campeões,

E as mulheres romanas adornadas,

Ansiosamente esperando a chegada das tropas...

Aqueles com cabeças atlânticas encaracoladas.

Mas os soldados conscritos de "Aníbal" nunca chegaram,

Então diga a ele que esperei... esperei...

Mas ele nunca veio!

E que esperei por ele... até me encontrar nas cordas da morte.

E à distância: "Cartago" queima nas chamas,

"Cartago", a consciência do sol: aprendeu o significado de ajoelhar-se,

E a aranha acima dos pescoços dos homens,

E as palavras estão engasgando.

Meus irmãos: A virgem Cartago está queimando,

Então beijem suas esposas...

Deixei minha esposa sem uma despedida,

E se você vir meu filho, que deixei em seus braços... sem um braço,

Ensinem-no a se curvar...

Ensinem-no a se curvar...

Ensinem-no a se curvar…

Amal Dunqul

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Tarefa - Geir Campos

 

Tarefa

Morder o fruto amargo e não cuspir
mas avisar aos outros quanto é amargo,
cumprir o trato injusto e não falhar
mas avisar aos outros quanto é injusto,
sofrer o esquema falso e não ceder
mas avisar aos outros quanto é falso;
dizer também que são coisas mutáveis...
E quando em muitos a noção pulsar
— do amargo e injusto e falso por mudar —
então confiar à gente exausta o plano
de um mundo novo e muito mais humano.

Geir Campos

(1957)

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

CORAÇÃO - Carlos de Oliveira

CORAÇÃO

1

Tosca e rude poesia:

meus versos plebeus

são corações fechados,

trágico peso de palavras

como um descer da noite

aos descampados.

 

Ó noite ocidental,

que outra voz nos consente

a solidão?

Cingidos de desprezo,

somos os humilhados

cristos desta paixão.

 

E quanto mais nos gelar a frialdade

dos teus inúteis astros,

mortos de marfim,

mais e mais, génio do povo,

cantarás em mim.

 

Carlos de Oliveira

(de “Mãe Pobre”, 1945)

 

domingo, 23 de fevereiro de 2025

Essa flor - Hejar

 

Essa flor

 

A essa flor
arrancaram as pétalas, mas está viva.
Esse coração
sofrido, se manteve firme.
Essa estrela
caiu, mas deixou um rastro de luz no bosque
como quem sabe morrer com um sorriso
quando abre suas asas
o vento das terras altas.
Eu os levo comigo
são as imagens
de não se render.

Hejar

(poema curdo)

 

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Se eu devo morrer - Refaat Alareer

Se eu devo morrer


Se eu devo morrer
Tu deves viver
Para contar minha história
Para vender meus trastes
Para comprar um pedaço de pano
E também umas cordas
(Uma pano branco com uma cauda
que alongaste)
De modo que uma criança, em
algum lugar de Gaza,
Que tenha o céu no centro de seu
olhar,
Esperando pelo pai que se foi num
arder de fogaréu,
Sem se despedir de ninguém,
Sequer de seu corpo,
Sequer de si mesmo,
Que ele veja este teu pássaro
voador bem no alto,
Que pense por um momento que lá
voa um anjo,
Trazendo o amor de volta.
Se eu devo morrer,
Que tal fado traga esperança,
Que se transforme numa história.

Refaat Alareer

(O último poema que escreveu, Casado,

Alareer deixou esposa e seis filhos.)

 

domingo, 16 de fevereiro de 2025

VERDES ANOS (A Carlos Paredes) - Manuel Simões

 

(1925 – 2004)

VERDES ANOS

(A Carlos Paredes)

 

Era um tempo dividido:

manhãs de cinza, tardes de euforia.

Era um tempo de litígio:

noites clandestinas, sinais de asfixia.

Como esquecer-te guitarra de verdes

ramos rompendo a monotonia,

dor do passado, saudade do futuro,

ferida aberta em som tão puro.

Verdes anos que a música prometia:

como ave antiga, o canto nos trazia.

 

Manuel Simões

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Cheirado, Cheirado na ONU - Mohammed El-Kurd

 



Cheirado,

Cheirado na ONU,

A data de hoje marca alguma década,

de uma longa e prolixa articulação.

 

Fora do edifício,

o embaixador israelita

protesta-me

com um enorme cartaz.

 

Eu não fiquei surpreendido

com os lavatórios manchados de sangue

na casa de banho

ou com os Camaleões

por toda a parte.

 

Pela quinta vez

mostrei aos meus seguranças

o meu passaporte,

senti-me como uma ameaça natural.

 

Pedi para falar

onde os presidentes falaram.

 

Sem fato, sem gentilezas.

 

Sim, é política e ótica

mas, principalmente,

eu tenho aula depois disto

e um professor dececionado.

 

Sem tempo para engomar

tecidos ou teatralidades.

 

Apenas apertos de mão fugazes,

apenas poemas vencidos.

 

Irei em seguida.

 

Agora, há uma criança no pódio

que gesticula para os seus membros,

que leiloa a sua humanidade.

 

O representante de um estado chora,

outro masturba-se.

 

Para o discurso,

vejo Kwame Ture.

 

Para o jornal,

eu escrevo o mesmo artigo

com antecedência.

 

Pontos de discussão centenários,

a sua atual relevância assustadora,

o roubo, não a rotina

implacável.

 

Esta manhã,

o genocídio continua

entre o rio

e o mar.

 

O vocabulário não é genocida.

A aniquilação é.

 

Desequilíbrio de poder.

 

David contra Golias,

não Maomé contra Moisés.

 

Uma nação sob vigilância.

Outra em psicose.

 

David contra Golias,

não Maomé contra Moisés.

 

Uma nação sob vigilância.

Outra em psicose.

 

Eu quase mergulhei

de cabeça

do palco

para uma orgia de diplomatas.

 

Olá. Bom dia,

emprego atrás de emprego,

tenho desprezo por este conselho.

 

E de forma mais contundente,

desprezo pela lata.

 

Eles só vão parar

o círculo vicioso e idiota

quando os recintos irromperem

em chamas.

 

Parti um membro

nas manchetes, aparentemente,

deixei uma faca no lugar

e os políticos com narizes vermelhos.

 

Na televisão

o comentador elogiou-me

com adjetivos

mas a minha mãe não está orgulhosa.

 

Ela queria que eu tivesse penteado o cabelo.

 

Procurei sem sucesso

hematomas no status quo

enquanto o táxi se afastava.

 

Procurei sem sucesso

hematomas no status quo

enquanto o táxi se afastava.

 

Muitos telefonemas

e agradecimentos

mas eu sou ingrato

e estou atrasado para a aula.

 

Tapo os meus ouvidos para os aplausos.

 

Não se pode liderar sem pisar

traindo os esqueletos

no seu caminho.

 

Sento-me com o cotovelo na mesa.

Ambições humildes.

 

Fora da janela

um mundo grandioso

e eu não quero nada disto.

 

Mohammed El-Kurd


A 29 de novembro de 2021, antes de se apresentar perante a Assembleia Geral das Nações Unidas, o jovem poeta palestiniano Mohammed El-Kurd disse, em tom sarcástico: “Olá comunidade internacional. Obrigado pelos magníficos discursos. Tenho a certeza de que as autoridades da ocupação estão realmente preocupadas neste momento.”

Há dois anos falei na ONU [Organização das Nações Unidas]. Fiz um discurso na ONU por esta altura [do ano], no dia de solidariedade com o povo palestiniano. E ao observar como a ONU, o TPI [Tribunal Penal Internacional] e todos esses espaços têm operado, és recordado de como eles são completamente inúteis. Então eu escrevi este poema sobre discursar na ONU e estou muito interessado em ver como o tradutor interpretará a primeira linha: