Ao longo da vida fui ganhando a percepção muito clara de que se queres conhecer a ferida de alguém tens de a ver conversar com a sua mãe ou o seu pai, um ou o outro. No meu caso é a minha mãe. Quase não consigo conversar com ela. Fui o segundo filho e na minha cabeça edipiana cresceram nós, atilhos, apertos, cujo desfazer é coisa para uma vida inteira de intenso porfiar. Muitas vezes quando me quero acolher na minha árvore escondo o amor que lhe tenho atrás da admiração intelectual pelo meu pai. O meu pai embora fosse um homem ideologicamente muito conservador - formou-se em teologia e filosofia em Friburgo ( foi aluno e discípulo de Marcel Lefebvre) - e talvez pelo que sofreu, na família, na rua, no bairro, na vilória, na sociedade, quando deixou as vestes eclesiásticas para fundar a família onde moro, ensinou-me a tolerância, o paradoxismo (ao mesmo tempo parco em palavras afectivas aos dezoito anos ofereceu-me um livro, "Com a morte na alma", de Jean Paul Sartre, com uma pequena dedicatória, dizia: "Ao Quim Paulo, para ler e reflectir comigo"). Foi também ele que me contagiou na paixão pela escrita (ele escrevia sempre que podia, escrevia cartas, muitas cartas, contra tudo e contra todos, incluindo o Vaticano II, escrevia que se desunhava num jornal de Mafra (onde era o director, o cronista, o jornalista, o porteiro e o telefonista), a máquina de escrever era um instrumento central lá em casa, e já depois de se reformar deu à estampa dois livros, o último sobre o padre Abel Varzim. E se o meu pai é jardineiro do grande plátano à sombra do qual cresci imaginariamente, introspectivamente, a minha mãe, ainda hoje o assumo com alguma dificuldade, a minha mãe liga-se umbicalmente à minha rebeldia, ao meu desejo de trabalhar com e para os outros, à minha paixão pela pedagogia, ao meu incontrolável desejo de meiguice, de ternura, de bondade. Foi professora primária durante toda a sua vida, durante a minha infância ficava com a 5ª e a 6 ª classe . Cresci entre os seus alunos, que a admiravam. Andava no Ami 8 de trás para a frente por cada casa a falar com os pais, a ralhar com eles porque sobrecarregavam os seus alunos - eles eram em primeiro lugar seus alunos - com uma lide doméstica e agrícola que não os deixava entregarem-se à pintura, às artes plásticas, à música, à escrita, às ciências e humanidades a que tinham direito para poderem ser melhores pessoas. E eu ia com ela. Eu e os meus dois irmãos. Mulher muito ocupada, muito entregue à escola, às actividades fora da escola como a catequese, fez muitas vezes do Ami 8, mais tarde o Opel Kadet, o nosso pátio de brincar: "-Vocês fiquem aí e não abrem a porta a ninguém, eu já volto." Levava-nos para Lisboa quando vinha para o seu curso de Letras onde fazia em regime pós-laboral, íamos com ela quando ia entregar os trabalho de uma cadeira, foi assim que conheci pela primeira vez, em carne e osso, Vitorino Nemésio, seu professor. Num desses dias estava tanta polícia à porta da Faculdade, "O que é isto mãe, uma guerra?", que ela nos deixou dentro do carro trancado e foi, com o coração nas mãos, entregar o trabalho que tinha feito a desoras, pela noite dentro. Usava calças, fumava, conduzia, era uma mãe a sério, levava-nos à feira da malveira onde com a fruta da época fazia doces e compotas para o ano inteiro, aos meus sete anos, sentou-me a mim e ao João no colo e leu-nos um livro que dizia que a cegonha não trazia bebés nenhuns ( era o pénis que entrava dentro da vagina e depois deixava lá umas coisas que isso eu e o meu irmão logo nos esquecemos, mas era um nome dos grandes, fomos heróis durante uma semana no pátio da escola, toda a gente queria ouvir a grande revelação). Recusava-se a usar régua e por isso nunca a tinha na gaveta da secretária, o que lhe valeu uma reprimenda quando veio o senhor inspector. Quando veio a reforma do ensino atirou-se entusiasticamente às práticas pedagógicas e artísticas fazendo as várias formações que podia, era moderna, divertida, os alunos adoravam-na, ela confiava neles, muitas vezes íamos passar a tarde a casa de umas alunas que moravam na Carapinheira, na entrada da Tapada de Mafra, eles confiavam nela, tantas e tantas vezes fomos companhia no hospital a uma das suas alunas mais velhas que ficou doente, e nós lá íamos animá-la, dar-lhe mimo, aprendi com ela isso, a importância do mimo na nossa vida, da brincadeira, do ir e vir, passavam a vida a fazer excursões, onde não havia inventava, um dia trouxe os alunos todos para nossa casa para assistirmos a preto e branco ao Neil Armstrong a colocar a bandeira em solo lunar, havia poucas televisões naquela altura em Mafra, o meu pai quando chegou olhou, entre o contrariado e o feliz, era assim a sua Dida, petit nom que se soletrava melhor que o Gertrudes, a Dona Estrudes como ainda lhe chama hoje a empregada lá de casa. Quando eu disse a primeira vez que queria fazer teatro, tinha oito anos, disse-o para cativar as suas atenções depois de a ter ouvido, orgulhosa, contar que o meu irmão mais velho ia aprender a tocar violino. Andei ali desesperado uns tempos, como é que faço, também quero ser artista, uma ida ao Teatro Gerifalto a Lisboa, ao piolho no Monumental, para ver um Gil Vicente, inspirou-me, quero fazer teatro. O meu irmão nunca chegou a aprender a tocar violino mas eu, numa teimosia de que nunca soube, só anos mais tarde, muito mais tarde, não era mais do que a minha inequívoca necessidade da confirmação do amor materno, acabei por vir dar ao teatro, primeiro como actor, depois assim, novamente a escrita, sempre, escrevendo. Este amor desigual e na minha platonia edipiana não correspondido, formou-me. Aquilo que hoje chamamos grosso modo ciúmes, são, em mim, ligações invisíveis entre mim e essa sensação de insegurança que me acompanhou durante toda a vida e era sempre e em todos os lugares uma projeção dessa dor, dessa angústia, dessa ferida original. Claro que a minha vida é como a de toda a gente, por vezes parece que é maior do que nós, que vai cair sobre mim como o céu do Obélix e do Astérix, mas na maior parte das vezes em que olho a folha em branco, seja no caderno azul de linhas pautadas onde, aos quinze anos, escrevi, ao longo de quatrocentas e quarenta e sete páginas o meu primeiro (e único) romance, seja agora na blogosfera ou no facebook que tantas vezes me parece um trabalho penelopiano de fazer engolir a expressão no seu próprio exercício, apercebo-me que a minha árvore deu-me tanto a minha ferida como a maneira de a sarar e que é entre este ferir e curar que eu estou sempre de tal modo que a minha dor, sendo aquilo que me entretém, não me dói verdadeiramente. A dor, sendo que a dor não existe autonomamente da minha percepção dela, da relação que eu estabeleço com ela - os estóicos fizeram disso a a sua escola aliás - e esta é particular, cultural e ideológica. A minha relação com a minha mãe é simultaneamente a minha ferida e a minha redenção. Hoje, passados quase 52 anos de me ter parido, dei-me pela primeira vez, de uma forma autónoma e independente de uma necessidade qualquer, ao tempo de perceber todas as dimensões do profundo afecto e admiração que tenho por ela. A minha mãe é onde o amor em mim começa e acaba, comecei por escrever para título. Porque o amor - tal como o ódio - é uma viagem sem fim. Depois corrigi, a minha mãe é onde todo o meu amor começa. Depois, por causa da impossibilidade de nomear a palavra amor sem convocar toda a tralha ideológica que contamina o nome amor, risquei amor e escrevi novamente: a minha mãe é onde todo o meu ser em dádiva começa. É bonito, mas é pretensioso e eu quero voltar a esta ideia simples: o amor. Imagino que um dia, por acaso, nas suas viagens cibernauta, ela possa passar por aqui e não quero que ela tenha alguma dúvida sobre o que escrevi: a minha mãe é onde o amor em mim começa.
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domingo, maio 04, 2014
terça-feira, fevereiro 28, 2012
Choque do Futuro
Há realidades para as quais nunca estamos suficientemente preparados. E eu sou daquelas pessoas que antecipa minuciosamente o futuro. Sempre fui assim, calculo ao pormenor tudo o que me pode acontecer, a mim, aos que me afectam. Por exemplo, quando passo ali na Av. Dom Carlos I e vejo venderem baldes de cerveja, caipirinhas, caipiroskas aos putos eu penso no meu filho e vou-me preparando para o momento. Não tenho uma estratégia definida mas vou-me preparando. Mas há pouco liguei o computador, abri o Skype e vi que a minha mãe estava na internet. Fiquei assustado, pensei, será que se está a sentir mal? Mandei-lhe uma mensagem a perguntar se estava tudo bem. Que sim, que tinha tido um jantar de anos e tinha chegado tarde. Disse-lhe, uma noite descansada, era assim que o meu avô se despedia. Passado cinco segundos, uma nova mensagem: "- Como é que sabias que eu estava na internet?". Eu senti na pergunta uma voz de criança apanhada em falta. Ainda estive para dizer que tinha adivinhado mas resolvi ser verdadeiro. Disse-lhe que o Skype me tinha avisado. Breve silêncio na resposta antes de um breve e sumido beijinhos e até amanhã. Amanhã vai-me telefonar impaciente, já com voz de mãe, a dizer-me que não percebe nada disto, como é que se faz para que ela não fique visível, e eu lá lhe vou explicar como fazer. Amanhã. Hoje, quando desligámos, fiquei com a sensação de já ter visto isto mas com muitos anos de intervalo, quando entrávamos em casa pé ante pé para não acordarmos os nossos pais e de repente um passo em falso, o tapete do corredor parecia uma selva perigosa onde todo o cuidado era pouco, um barulho inesperado acordava a casa e fazia com que se ouvisse aquela voz ainda estremunhada: "- Quem é que está aí?". E depois o ritual de acender a luz e ir ver quem tinha sido o refractário. Confesso que ainda estou a gerir este volte-face.
terça-feira, agosto 10, 2010
Ridículo, disse ele
Está uma noite memorável de Verão, ali, em Sintra. Passámos a tarde na praia das maçãs, tínhamos aflorado à praia grande mas a bandeira vermelha e uma língua diminuta de areia fez-nos dar a volta, a das maçãs deve estar amarela, calculamos, estava, banho de espuma, de areia, enrodilhados nas ondas, mas lá para o fim da tarde havíamos de nos vingar todos, dando voos sobre a água, como se fossemos peixes. Agora, já jantámos, cá fora, o tempo ameno ainda, manga curta, conversamos sobre os astros, sobre a ciência, sobre o que sabemos, sobre o que não sabemos. Ele tem cerca de dezasseis anos e nós os quatro, estamos todos nos fins dos quarenta. É um positivista, Comte haveria de gostar de o ouvir, na sua veemência contra a metafísica ou o que está para lá dos fenómenos. Diz que todas as metafísicas, todo o conhecimento não científico é ridículo, pede, de peito aberto, provem-me, provem-me. É difícil não acreditar na juventude assim, penso. Até que lhe digo, tenho uma má notícia para ti R., não é quando todo este conhecimento te conseguir provar que é válido que tu o vais aceitar, é quando descobrires que a ciência não te fornece todas as respostas, quando descobrires que ela pode ser tão ridícula como todas as outras formas de conhecer. E depois fiquei a pensar nisso, na verdade que para mim isso é. Sou o mais céptico dos homens. E quanto mais céptico sou, mais aceito que todos os mundos são possíveis. Todos. O meu agnosticismo tomou conta de todo o meu pensamento, tanto o físico como o metafísico. A única coisa em que acredito é nisto. Numa noite de conversa, num jovem de peito aberto cheio de bravata contra os ridículos do mundo.
domingo, fevereiro 28, 2010
Santiago do Chile | Lisboa [Alívio]
Foi ao fim da tarde, pelo Skype, que o alívio chegou. A voz da minha cunhada explicando que fora uma televisão e alguns objectos caidos ao chão, não tinham mais nada a registar senão o maior susto das suas vidas. Lá em casa o tremor de terra foi sentido de maneiras diferentes. O meu irmão julgou que estava num barco, agitado pelas ondas. Nem acordou. A minha cunhada agarrou na filha que entretanto acordara, assustada, e, meio aos trambolhões contra as paredes, desceu ao rés-do-chão, precipitando-se para a rua. Ao abrir a porta e vendo o carro literalmente aos saltos percebe que não é boa ideia sair, pode ser apanhada por alguma fenda. Lembra-se daquele estado de não saber o que fazer. É o que custa mais, percebe-se. A minha sobrinha também tem a sua visão do que aconteceu: " mãe, o vento era tão forte que partiu coisas cá dentro de casa, não foi?" Foi assim o terramoto lá em casa, num bairro residencial de Santiago do Chile. A oitenta quilómetros, um dos armazéns em que o meu irmão trabalhava, desapareceu completamente. O outro tinha danos gravíssimos e não se sabia quantas pessoas podiam estar lá dentro e em que condições. A seguir aos dois minutos e pouco, que pareceram uma verdadeira eternidade, foi a debandada geral. Estavam a fazer o contacto telefónico com cada uma das famílias. É a minha cunhada que nos conta isto, entretanto toda a família está numa estranha conferência telefónica que cruza Lisboa e Santiago do Chile. Conferimos notícias, o tsunami, o abalo, o número e intensidade das réplicas,a casa sem nenhuma fenda, a parte mais velha da cidade muito destruída. De repente, quanto é a vez de nos despedirmos, ouvimos as vozes das crianças, numa triangulação entre Lisboa e a capital chilena. E aqueles risos das crianças, aquelas vozes, mesmo que meio deformadas pela linha skype, são tão importantes para restaurarem a ideia de que tudo pode mais uma vez ser recomeço.
sábado, fevereiro 27, 2010
Santiago do Chile | Lisboa [Angústia]
Momentos de verdadeira angústia. As linhas telefónicas estão totalmente ocupadas, uma, outra, e mais, sempre. Rede ocupada. Do outro lado ninguém atende. As primeiras notícias que nos chegaram por via indirecta dizem que só foi um susto, lá em casa, apenas um estremecimento, a trezentos e tal quilómetros. O facto de não haver até agora vitimas portuguesas a registar é um consolo temporário, até sabermos notícias de viva voz. Mas as imagens que nos chegam da destruição em Santiago do Chile fazem temer o pior. E o facto de por cá a Protecção Civil nos aconselhar a ficar em casa dá um estranho efeito global a este endemoinhar dos deuses do vento e da tempestade. Continuar à espera.
sexta-feira, julho 31, 2009
Out
Faltam mais ou menos quatro horas para fechar a loja, colocar o assistente para ausências do escritório e preparar tudo para irmos de férias. De regresso a Galamares, aos passeios de bicicleta, àquela noite fresca no quintal. A janela da cozinha que leva para outros lugares saloios onde já vivi. O tempo de trabalho que aí vem no regresso de férias afigura-se tão entusiasmante quanto trabalhoso, abrindo novas frentes, mais pessoais, retomando projectos antigos, criando novos e estes quinze dias aparecem-me como um bálsamo de afectos, de prazeres. Uma pessoa é daqueles que ama e nas férias há menos desculpas para não nos entretermos a namoriscar . Faltam menos de quatro horas entretanto e eu já não existo. Deixo-me envolver pelo calor dos seus braços, das suas mãos finas, da sua pele macia, são estas as minhas férias.
sábado, novembro 15, 2008
Dias
Da tristeza sem fundo vejo os campos de uma alegria sem fim. Telefono-te. Falas-me por monossílabos. Pedes-me para não fazer tantas perguntas. Deixo-te estar. Apetece-me chorar mas deixo-te estar. Chorarei depois sozinho. Sempre assim foi, sempre assim será. Sempre não. Começo a sonhar com o dia em que falaremos longamente sobre tudo. O meu dia é isto, sonhar com esse dia.
sexta-feira, novembro 14, 2008
Nós
Não fosse o Pedro puxar-me para o contacto com a minha família, e tudo seria ainda mais espaçado. E somos quase todos assim. Fazemos as festas, as do calendário e as dos anos, o que com a família a crescer aumenta um pouco as oportunidades de encontros, celebramos os baptismos e os funerais, de quando em quando aparece uma ocasião suplementar, não somos de muita regularidade no convívio. Mas quando elas acontecem estamos lá e somos outra vez nó cego.
quarta-feira, outubro 22, 2008
Manuvelho
quarta-feira, março 19, 2008
A minha mãe
Foi por acaso que fosse hoje que me decidisse a escrever sobre a minha mãe, o pai que me resta. Ontem fui jantar com ela. Telefonei-lhe à tarde, disse-lhe, vamos aí hoje jantar contigo. O pretexto era uma viagem, que ela ía fazer. Ando sempre de candeias trocadas com ela. A minha mãe irrita-me. Quando ela fala lembro-me sempre da imagem daquela personagem de Woody Allen que fazia de sua mãe, elevando-se nos céus de Manhattan. É uma dor minha, pessoal, pessoalíssima. Que quase nunca me deixa abrir a porta para a imensa ternura e admiração que tenho por ela. Lembro-me de tudo. De como ela era bonita na juventude. E divertida. Gaiata, a soletrar as histórias da casa grande de Elvas. A professora, a senhora professora da minha infância, a amiga preferida dos seus alunos com quem estabelecia sempre laços de amizade que nos envolviam a nós também. A professora que lia Piaget, Carl Rogers. Que era uma entusiasta da rubrica, Visitas de Estudo, onde cantarolava e ria com os seus alunos. Até perceber que o orgulho - e o retirar da dízima disso, como o andar de colo em colo das suas alunas - era mais cómodo e mais proveitoso, cheguei a ter ciúme dos seus alunos. Freud e todos os que se lhe seguiram explicarão certamente com eloquência farta este fenómeno de um filho desavindo com o afecto à sua mãe. Eu, que com ele convivo diariamente, só sei a angústia de ter há muito chegado à consciência de que quanto menos a amo, menos gente sou. Ontem fomos jantar com ela. Dois irmãos meus repentinamente do lado de lá do Atlântico fizeram-me pensar que lhe deveria alguma companhia. Eu sou assim, um falso samaritano. Só consigo fazer-me bem a mim próprio pensando que estou a salvar o mundo. E enquanto mostrava o albúm de fotografias que o meu pai tinha feito com a viagem que os dois fizeram em 77, e que retomava a que ele tinha feito em 57, quando fora estudar para a Suiça, percebo o quanto sou parecido fisicamente com a minha mãe. Ela, que doravante chamarei de meu amor, olhou para a minha mãe, olhou para mim, e sorriu diante da evidência. E depois, apaziguado, passámos a noite a ouvir as histórias dos seus pobres, dos seus necessitados. Ou a vê-la ligar para as suas irmãs, de uma confraria qualquer. Os seus santos são como os seus chocolates e os seus chocolates são como os seus irmãos. Estão por todo o lado. Há uma corrente solidária que une a velhice à solidão dos outros. Seja na cama de um enfermo, numa família carenciada ou num sem-abrigo. Ou naquela casa sem janelas onde ninguém vai. Quando me despeço levo num frasco um bocado da enxertia de uma raíz que é a minha própria história. Digo-lhe, voltaremos todas as semanas. Deixo-a com a vida de Assis, na televisão. De manhã, tenho um sms, lá por volta da meia noite e vinte, a dizer-me o quanto apreciou a nossa companhia. Não tenho por hábito, sou terno aqui entre palavras mas seco entre vivos, respondo-lhe, digo-lhe o quanto a amo e que faremos disto um fenómeno regular. Diz-me que sim, na resposta. Mando-lhe uma animação, um bonequinho a saltar de contente com um pequeno coração a salientar-se. Descubro que a tecnologia não tem idade e pode tratar coisas a que antes confiara um muro de pedra e de silêncio.
terça-feira, janeiro 02, 2007
O meu avô
Francisco António Figueira, meu avô, que era um homem piedoso e bom, tinha a letra miudinha e impecavelmente justa de comerciante meticuloso. À grafia dos homens e das fêmeas juntei eu outra, a dos comerciantes. Porque é que escreves assim, vô?, é para as pessoas confiarem em mim, respondia ele. Começou cedo no meu mundo a aprendizagem de que a triversidade do mundo não se esgotava no género masculino e no feminino. Sendo que estes entendia-os como uma (im) posição com que a Natureza escrutinava os vivos. Havia também o género ausente, o género que, na ausência de género, está no principio deste mundo da representação. Não é uma escrita oblíqua e tortuosa como um esconderijo dos homens feridos, não é uma escrita aberta e elegante e dócil como a das fêmeas. É uma escrita que se escreve assim ou assado para que tu confies nela. E confiavam. Vá-se hoje ver os livros de capa negra, com um traço a azul e a vermelho, o deve e o haver, o razão, da Congregação do Bom Senhor da Piedade, na Igreja de Elvas, e lá deve estar o traço fino e apurado com que Francisco António Figueira encomendava a confiança do mundo. Era um comerciante respeitado e respeitador e eu gostava de passear com ele pelas ruas de Elvas. Garboso, alto, magro, cuidadoso e meticuloso na roupa, no aprumo, no modo como segurava o chapéu, como levava a mão à testa enxugando a testa do suor, a canícula em Elvas é um tormento, homem de poucas falas, mas com os verbos certos. Costumo dizer de um homem, de uma mulher, excepto de um canídeo, que o vejo bom e confiável quando vislumbro nele a sua infância. É uma mania que tenho, a de descascar a pele a um gentio prescrutando na epiderme visível o infante, devo assumi-lo. Abri apenas em toda a minha vida uma excepção. E foi, justamente, para o meu avô, Francisco António Figueira. Nele, o que mais se impunha era a sua juventude de aprendiz de armazém, de rapaz sem estudos, que foi progredindo por si mesmo, que tomou em mãos a loja onde trabalhou como fiel a mando de outrém, imagino-o sempre com aquela bata de fazenda, sempre meia suja meia limpa, mas nunca nem vergonhosa nem calaceira, imagino-o sempre com os seus sapatos martirizados pelos joanetes, em toda a minha vida nunca vi ninguém a usar joanetes como ele, pensava até que era uma coisa especialmente inventada para o meu avô, imagino-o a abrir a loja, entravamos pela rua das Arcadas, e a loja abria-se na Rua do Arco da Cadeia, um dia falarei desta loja, dos cheiros, das cores, dos recantos, dos dias, das horas que ali passei, dos caramelos espanhóis, não falarei dos sugos, dos sugos de hortelã pimenta não falarei. Francisco António Figueira era um homem raro. A cabeleira alva, fina e delicada, lavada com vinagre. O meu avô tinha as mãos compridas e ágeis com pequenos nódulos nos artelhos, nunca vi ninguém a manejar tão bem o rolo de fio branco de atar maços, ora aqui está uma prática desaparecente, em algumas pastelarias ainda há quem o saiba fazer, era uma arte. O licor Figueirinha, os paios de elvas, os figos, as ameixas, as receitas por todos cobiçadas. Como eu gostava de ir pela sua sombra, o Sr. Figueira. Comecei este texto pelo avesso da sua conclusão, na minha cabeça o texto que se impôs era: O terceiro género era o dos contabilistas e comerciantes. Escreviam para confiar neles e nada há de menos confiável que um merceeiro, do que um contabilista, do que um comerciante. Emendo a mão, a mesma mão que segurava os seus dedos nodosos, o seu olhar suave mas tão firme. Tão firme. Nunca que me lembre lhe disse não. Talvez lhe tenha dito, mas não me lembro e isso diz tudo, também sobre a memória, como nos lembramos ou olvidamos, mas essencialmente daquele homem sempre vestido de três peças, sapato preto, mãos carinhosas e afectuosas. Ás vezes encontro em mim um afecto que não sei de onde vem, que me parece estranho, excessivo, feito de canícula e regard. É um afecto que me vem do Sul, que me leva para o Sul, lá, quem ama o longe perto lhe parece, é uma afecto que me trespassa aquela mão, esqueci-me de muitos dos nomes, recordo apenas o olhar de respeito e afecto por aquele homem alto, garboso, de cabelos alvos e tão macios, perfumados a vinagre e sabão azul e branco. Como eu gostava de ir pela sua sombra, penso, enquanto emendo a conclusão do texto: O terceiro género é o dos contabilistas, merceeeiros e comerciantes. Escrevem para confiar neles e se não tivesse havido aquela mão e dentro dela o meu avô, eu nunca teria percebido a diferença -aquela diferença que anos mais tarde me permitiu subir a um palco e regressar sem me tresloucar - entre acreditar e confiar.
[A recuperação de uma fotografia antiga criou a ocasião para voltar a este post. já publicado, aqui, escrito na sequência dest'outro. ]
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