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domingo, abril 25, 2021

A não reciprocidade na relação



Uma das coisas deliciosas que me tem acontecido ultimamente é a de ver aquele homem maravilhoso em que o meu filho se tornou trazer-me uma daquelas conversas em que ficamos de dedo no ar a ver de onde sopra o infinito.

Por vezes entra-nos em casa e traz-nos perguntas a que julgávamos que a nossa condição de agnósticos nos tinham libertado. Como, "existe vida para além disto?" A morte, sempre. O facto de nós nunca nos relacionarmos directamente com uma pessoa, sim com a imagem que fazemos dela. Ou seja com um determinado objecto afectivo.

É uma mediação inevitável, é uma condição. Claro que o assunto dá pano para mangas, e não apenas entre pai e filho, no entanto não perdemos tempo a questionar está ideia, seguimos um determinado trilho, este, a daquilo que acontece quando a reciprocidade de uma relação termina.

Esta ideia já diz ao que vínhamos: para nós uma relação não termina com o fim da reciprocidade. E isto quer estejamos a falar de uma morte real, física, quer estejamos a falar de uma morte simbólica.

- Com o fim da reciprocidade as pessoas deixam de existir. Todas elas. As que morreram e as que muito simplesmente decidiram sair, seja unilateral ou bilateral o entendimento sobre o fim.

- Então o que é que fica? - perguntou ele.

- Fica o outro enquanto objecto. É talvez o equivalente ao esqueleto, às ossadas de base.

Ele riu, gostou da ideia. E surpreendeu-me:

- Quando as pessoas terminam uma relação porque morrem, é mais fácil. Parece que há um consenso ético que os mortos não podem reclamar da natureza da construção objectal que os sobreviventes fazem.

- Nem mais. Já os vivos dão mais trabalho, têm uma natureza fantasmática. É por isso que é tão tortuoso esse projectar. Nos primeiros tempos é quase inevitável que eles sejam uns "narcisistas de merda" e elas "umas grandes putas".

Fui longe demais no vernáculo, pede-me contenção.

- Mas há pessoas com quem o pai continua a falar...

- Pois há, felizmente a maioria, gerir uma casa de fantasmas amorosos seria um berbicacho. Na maior parte dos casos conseguimos construir novos objectos afectivos e fazer o upgrade emocional.

-E em relação às outras pessoas, aquelas que nunca mais querem nada a ter consigo?

- Tinha um professor de teatro que dizia: o tempo é uma ciência. O tempo nos apura, depura. É o grande escultor, como escreveu uma escritora que deves tentar ler ( é impressionante como Yourcenar saiu de moda). O mais importante é aceitares que agora que o outro simbolicamente morreu, a única coisa que resta é um objecto teu, só teu, que, por circunstâncias da tua vida, ainda necessitas para a tua sobrevivência emocional. O outro enquanto entidade psíquica está ausente. E se pensares assim, estes objectos perdem a sua dimensão fantasmática.

- Nós ainda vamos evoluir como espécie. Um dia não vamos precisar desses objectos...

Ia-lhe dizer, deus te oiça mas, lembrei-me a tempo, ele, enquanto objecto meu, não existe.

segunda-feira, janeiro 23, 2012

Um pai à beira de um ataque de nervos

Eu estava completamente enervado. Explodi com ele, várias vezes, como há muito, muito tempo não fazia. Era uma coisa de somenos. Tinha feito um hambúrguer com arroz e achei que ele poderia querer mais. Fiz-lhe um ovo e antes perguntei-lhe:

- Gostas de ovo estrelado?
- Sim.
Lá fiz todo contente o ovo. Quando ele chega à mesa percebo logo pelo olhar dele que vamos ter festa. 
- Eu não gosto de ovo estrelado, pai. O pai devia saber.
- Eu perguntei, Pedro. Eu perguntei.
Ele não desarmou:
- Está bem, eu fiz mal, não estava atento, mas o pai também fez mal, porque não se lembrou de que eu não gosto de ovo estrelado. 
Disse-lhe que não havia nenhuma hipótese de ele não comer o ovo. E que não ia para casa do amigo (estava combinado ele ir fazer um trabalho de grupo) e que no dia seguinte não íria à festa.
- O que é que preferes? Ficas contente?
Neste momento eu já sabia que me aproximava de uma zona perigosa em que, provavelmente, eu iria borregar. 
- Fico triste claro. Fico triste porque vou ter negativa no meu trabalho a ciências e o meu amigo também. E fico triste porque não vou à festa.
Estava quase a perder a cabeça. Eu estava muito irascível, o diabo de um medicamento que tinha tomado por causa de uma alergia provocada pela alimentação andava-me a fazer sentir muito instável, gritei com ele. A certa altura disse-lhe, tentando arranjar uma saída através do humor:
- Olha, eu vou-te colocar aqui o telefone da violência contra menores e depois vou-te agarrar no ovo e metê-lo na tua boca e vais ficar todo sujo e não podes ir à festa. E depois telefonas para a violência contra os menores e dizes para virem prender o teu pai.
Ele riu mas ao mesmo tempo senti que estava nervoso. Há uns cinco anos  num dia de desespero tinha-lhe metido a sopa pela boca abaixo. Esse dia ficou  marcado tanto para ele como para mim e só a simples evocação de que eu possa voltar fazer o mesmo coloca-o na linha de água. E digo, não há nada de mais horrível do que vê-lo chorar quando se sente ofendido. Não faz alarde. Fica muito sério, quase não se mexe, e de repente a água vem-lhe em jorros aos olhos. É tudo tão rápido que só nessa altura é que percebo que fiz asneira. Mas desta vez o ele rir-se pareceu-me estranho.
- Olha, Pedro, tu sabes que eu estou à beira de um ataque de nervos e que daqui a nada sou capaz de fazer um disparate e enfiar-te o ovo pela boca adentro? Tu percebes o quanto enervado estou? Estava a querer fazer tudo bem, fiz um arroz sopinpa, o hambúrguer é muito bom e agora estragamos uma refeição porque tu não consegues comer ovo estrelado? Tu percebes mesmo o quanto enervado estou
- Sei, claro que sei, é por isso que estou a sorrir. 
- É por isso que estava a sorrir?
- Sim. Para ver se o pai fica mais bem disposto.
- O que é que disseste?
- Eu percebi que o pai estava muito enervado e por isso é que estava a sorrir. Para ver se o pai ficava bem disposto outra vez.
Confesso que percebi logo que a história do ovo tinha acabado ali. Abraçámo-nos e pusémos um ponto final neste imbróglio todo. E fez-se mais uma vez luz sobre o veredicto de um amigo quando, no nascimento do Pedro, lhe telefonei desesperado,"é pá Manel, como é que eu faço para ser um bom pai". Ele, do outro lado, calmo: "o teu filho vai-te ensinar a ser bom pai".  Não sei se me ensina a ser bom pai. Mas melhor pessoa sem dúvida. 

sábado, novembro 20, 2010

A desigualdade e a injustiça

Há muito que ando a adiar esta conversa com ele. Explicar-lhe a desigualdade e a injustiça. Temo sempre que ainda não seja o tempo adequado. Hoje, não sei se por causa da proximidade com a greve geral, se por causa desta Cimeira da Nato e da repressão da liberdade de expressão que ocorreu, pensei que seria o momento mais oportuno. Já caía a noite na rua, abri a janela para o chamar. Cá em baixo brincava com os seus novos amigos. Dois rapazes e uma rapariga. Um dos rapazes é bastante mais novo do que todos os outros. Estavam a jogar às escondidas. O mais pequeno contava. Um, dois, três, quatro, cinco...até dez. Não sabia mais. Contava duas vezes. Os outros, entretanto, escondiam-se. Quando acabava a contagem, o mais pequeno tentava descobrir os outros. Descobriu o meu filho. Que nem fez muito esforço para se esconder. Mas o mais pequeno não foi ao muro dizer o seu nome, bater com a mão e dá-lo como morto. O mesmo aconteceu com todos os outros. Que se riam a bandeiras despregadas do mais pequeno a quem não tinham ensinado bem as regras. E retomaram o jogo, uma, duas, três vezes. É claro que o mais pequeno ficou sempre a apanhar os outros. Fechei a janela. Acho que cheguei tarde, demasiado tarde para lhe explicar o que é a desigualdade e a injustiça. Devia ter começado mais cedo.

segunda-feira, novembro 08, 2010

Trava-tempo

Ontem descobriu que, aqui na nova casa, ao fim de semana, há crianças que vêm visitar os avós e que podem ser amigos novos. Três rapazes e uma rapariga. Fez como fazem todas as crianças. Levou uma bola para a rua e ao fim de cinco minutos já estavam todos a dar pontapés nela. No fim, quando chegou cá acima, perguntei-lhe pelos nomes deles:

- É o Vicente, o Mário...e o outro não me lembro.

- Faz um esforço.

- Era o Filipe.

- E a rapariga?- insisti.

- A rapariga,pai?!

- Não te lembras do nome da rapariga?

- Claro que não, pai.

Sorri com este trava-tempo. Daqui a uns anos irá lá abaixo e, quando voltar, só o nome da Mariazinha será eterno nas árvores do jardim da Feira da Ladra.

domingo, agosto 08, 2010

Um dia a nossa morte

Não penso muitas vezes na minha morte. Por vezes não lhe posso virar a cara, como ontem, quando fomos ao hospital visitá-lo e o vi, de peito aberto. Tem quase mais quarenta anos do que eu mas ao lado dele estava um homem muito mais novo, da minha idade, com o peito já fechado. Estranhamente o que me aproximou desse homem não foi a proximidade da sua idade com a minha, foi o estar de portátil ligado. Uma das coisas que mais me impressiona nestes lugares é o tédio. Uma televisão ligada num ponto que permite a visibilidade total vai vomitando generalidades. Das oito camas da enfermaria apenas três estão ocupadas. Os quotidianos. Levantar da cama, ir à casa de banho, ao refeitório, sentar na poltrona, sentar na beira da cama. Passar os dias. Dos cuidados intensivos para a enfermaria intermédia, da enfermaria intermédia para a enfermaria, da enfermaria para casa, a convalescença de um pós-operatório tem estas classes que permitem ao doente fragmentar o tédio. É impressionante o quanto os cuidados de saúde estão a mudar. Passados trinta minutos do final da operação veio logo o cirurgião ter connosco, era espanhol, muito simpático, a perguntarmos-nos se éramos a família do senhor V., éramos, explicou tim-tim por tim-tim os passos da operação, o modo como correra, os procedimentos e cuidados a ter, o percurso pós-operatório. Enquanto ele falava nós olhávamos as paredes à procura de uma câmara de tv, aquilo não parecia o filme da saúde em Portugal, mais se diria um daqueles muitos seriados televisivos americanos. E depois nos gestos do dia-a-dia, nos enfermeiros, nos técnicos que passam, nota-se um brio, uma humanidade que convence.
Mas estava a falar da minha morte. Já houve tempos em que tinha como mais recorrente este pensar sobre a morte, sobre a minha morte. Aterrorizava-me a ideia de morrer. Agora já não. É claro que gostava de viver muitos e muitos mais anos mas mentalmente penso em pequenas metas: não gostava de deixar esta vida sem concluir a investigação sobre a escrita teatral que vou começar agora, gostaria também de ter tempo para acabar uma história que comecei há poucas semanas e que poderá vir a ser o primeiro romance que escrevo, de poder fazer a encenação da Evaporação dos Pássaros, de escrever o texto para o espectáculo do Carlos Mendes que ele me pediu, de poder montar o trabalho que propus ao altaCena, de fazer um site com todas as minhas peças, os meus trabalhos, as minhas entrevistas, gostava de conseguir escrever e apresentar um espectáculo de stand-up que comecei a inventar há uns meses, mas isso tudo é mercearia pouca que se avia em dois ou três anos. O que mais me entristece na ideia de que vou morrer, porque aquilo que fiz está feito e não acredito que quando a morte me vier buscar não me encontre sempre com algumas coisas para fazer, é o faltar àqueles que amo.
Principalmente a ele, porque ela já trabalhou muito a perda para saber perceber que não vale a pena zangarmos-nos com o que nos acontece. Ao meu filho ainda acho que é muito cedo para me habituar à ideia de que lhe possa faltar. Sei o que é um filho perder um pai, e eu perdi o meu já na maturidade. No outro dia, ainda estava comigo há uns dois ou três dias das férias comigo, dei com ele assustado, a chorar, ao telefone, pedindo à mãe para o ir buscar. Contou-me depois, costuma sonhar que vão assaltar a casa, matar os seus pais. Queria ir para casa da mãe porque lá está mais habituado a tratar destes assaltos de pânico. Mete-se na cama da mãe e os medos vão-se embora.
"- Há coisas que eu gosto mais de falar com o pai, mas estas coisas eu costumo tratar com a minha mãe!"
Lá arranjámos uma estratégia para sobrevivermos àquela noite. E depois, às outras noites. Falámos muito sobre o medo. Por acaso um dos trabalhos que ele tinha que fazer era inventar uma história. Fizemos dessa história o palco dos seus medos. Foi ele que me propôs:
"- Pai, tenho uma ideia: vou escrever a história de um menino que quando sonho pensa que os seus sonhos são realidade."
Ñem mais. Temos dentro de nós um sistema imunitário não só para os ataques físicos, biológicos, também para os psíquicos. Falei-lhe dos meus medos de infância. Ah! Como é bom e delicioso falarmos, à distância de quarenta anos, dos nossos medos de infância.
"-O Pai também tinha medo que matassem os seus pais? também sonhava com mortes?Expliquei-lhe que sim. Eu tinha um medo terrível de fazer dezoito anos. De ficar sozinho no mundo, sair de casa dos meus pais. Era essa a minha imagem do que era fazer dezoito anos. Em vez de ter a minha mãe e o meu pai à beira da minha cama a darem-me os parabéns e a saudarem o meu primeiro olhar da manhã - e aquela bola de borracha com losângulos negros que fazia parecer ser uma bola de futebol a sério!- tinha os dois, com ar sério, mala feita, a dizerem-me, faz-te à vida, marinheiro, boa sorte. E eu ía para a guerra, para a guerra em África. Foi isso que me ficou de tanto julgamento da bandeira a que assisti, em frente ao Convento de Mafra, das tropas que seguíam para as antigas colónias. E sonhava com mortes claro. Com o ficar sózinho no mundo.
"- Eu às vezes consigo evitar o medo mas outras vezes não, ele fica muito forte, eu vejo mesmo as mortes!"
"- Sabes que isso tem uma coisa boa? Quer dizer que gostas muito de nós e que não nos queres perder.".
Não lhe disse, não me apeteceu, que era também uma forma, uma das muitas oportunidades que ele iria ter de "vivenciar" a nossa morte para se preparar para ela. Abraçámo-nos. A morte, a ideia de que vamos morrer, de que não vamos ficar eternamente a aturarmo-nos um ao outro, uniu-nos num nó cego.

domingo, março 28, 2010

Sonho possível

Os fins de semana mais curtos têm uma desvantagem, deixam-se coisas por fazer, brincadeiras por tecer. Mas sabem melhor na hora da despedida: o adeus é mais forte, mais amigo, mais fazes-me falta puto! Ontem fomos ver todos o Sonho Possível. Era ele que estava com mais receio de não ser para a sua idade. Curiosamente a única vez que lhe pedi para olhar para mim e não para o écran foi num anúncio da Sagres. Um acesso repentino de puritanismo. E, quando o Big Mike volta ao seu bairro e dá uma tareia no dealer lá do sítio, o barulho, a perspectiva de violência que as armas potenciavam, fez com que protegesse a vista, escondendo-se em mim. Foi só um instante, o único. Até porque depois concordou que na sua play station, nos seus vídeos de desenhos animados, há muito mais violência do que naquele repente de fúria do Mike.

terça-feira, março 16, 2010

O meu falcão

O novo blogue ali na estante dos blogues, o meu mundo aos nove anos, vai obrigar-me a algumas mudanças. Já o avisei para não dizer aos seus amigos que o pai tem um blogue. Porquê?, é segredo? O pai ás vezes escreve umas asneiras, respondi. A sua cara de reprovação é o meu novo programa. Mais do que a asfixia democrática, aquilo que me vai condicionar mais é tentar depurar a minha escrita daquelas indecências de um livre escriba. E a colocar moderação nos comentários. E vocês podem perguntar, perante tanto condicionamento, estás a sorrir porquê?

segunda-feira, março 01, 2010

Superlativo absoluto sintético

Sei tão pouco sobre tudo. O meu pai sabia todos os nomes silvestres. Uma vez escreveu um livro sobre a sua terra e eles brotavam do texto, os nomes. Os nomes silvestres. O Apicultor sabe os nomes dos pássaros. Ainda andávamos na escola, nos Olivais, já ele ía para o Mouchão do Tejo, nas noites mais frias do ano, observar pássaros. O D. sabe as músicas todas dos Pearl Jam e de todos os cânticos da nossa melhor juventude. O Zé descodifica o alfabeto de todas as engenhocas do mundo. O meu sogro sabe tudo sobre tudo. Tem 87 anos, queixa-se de que a memória está a abandoná-lo, mas sabe tudo sobre tudo. Às vezes surpreende-me no meu próprio campo: no outro dia contou-me que ele e o Bernardo Santareno tinham sido colegas de faculdade. Tinham um interesse comum pelo universo das doenças tropicais, que o levou a ele até aos mares da Argentina, do Brasil, ao Santareno até aos mares da Terra Nova (onde recolheu informação para O Lugre). Ela, ela sabe também um conjunto de coisas inacreditáveis, coisas da vida prática. O porque é que as coisas acontecem de uma certa maneira. Eu não sei nada, nunca soube nada. Não estou cá quando me perguntam, nem estou cá quando respondo. E por isso a ideia de envelhecer agrada-me. Já não tenho que me chatear por não saber coisas, por não as perceber. Quando era miúdo, tinha medo de fazer dezoito anos. Via os soldados fazerem juramento em frente ao Convento de Mafra, antes de partirem para a guerra, e planeava que antes de fazer dezoito anos escavaria um poço tão grande no meu quintal que iria por ele for e só sairia quando acabasse a guerra. A guerra acabou afinal antes, muito antes, de eu fazer dezoito anos e de eu ter tempo para terminar o túnel. Mas só nesse dia, do dia do meu décimo oitavo aniversário, perdi o medo de fazer dezoito anos. Lembro-me que pensei, emocionado, isto é que é viver! Espero isso do tempo, perder o medo, perder o verdadeiro medo. Perder os grandes e os pequenos medos. Eu não sei nada, nunca soube nada. Por vezes só sei espantar-me. Ainda há poucochinho: acordou a suar, de um pesadelo, veio à sala, voltou para trás, não sabia se estava a dormir em pé, se precisava de mim, disse-lhe, se me pegares na mão sei que queres que eu vá ajudar-te a adormecer. Ele pegou-me na mão e eu soube. Espanta-me como sei tão claramente isto, mas sei. É um conhecimento que entrou dentro de mim e não me abandonará enquanto o espaço vazio entre as minhas moléculas continuar a existir e a permitir que elas, efervescentes, se agitem, em ebulição. Ele é o melhor de mim. E é muito melhor do que eu. Estivemos a estudar este fim de semana o comparativo e o superlativo. Era aquilo em que estava pior, foi ele que pediu. E antes foi estudar os nomes das flores, das plantas. Era a parte do estudo do meio, que eu sabia menos pai. Deixa-me sempre a sorrir por dentro. O meu superlativo absoluto sintético ainda tropeça, por vezes, num superlativo relativo mas, como o avô, que nunca conheceu senão por aquilo que dele eu lhe transmito, aventura-se pelo reino das coisas silvestres.

domingo, fevereiro 21, 2010

Conspiração

Não sei se é ele, se é o tempo, que conspira, e, ambos, a meu favor. É já muitos dentro de mim. Desde aquela pequena bola rechonchuda que eu agarrava e levantava no ar, com os dois braços esticado, os dois a rirmo-nos, até ao Peter Pan, ou ao meu parceiro de bola; áquele que me dá conselhos de vida, o que já fez o luto da sua ideia de pais juntos e enfia o braço no braço dela; o que já me deixa namorar com ela sem nos vir abraçar aos dois, com medo de ficar de fora, até ao mais recente, o que escreve e canta canções com trejeitos na voz que imita sei lá eu onde. Ou o que já criou um endereço gmail, o que me manda milhares de emoticons numa única frase que diz, porque é que não estás aí, pai?. O que ainda há pouco tempo dizia, o meu pai é muito bom a jogar à bola e que ontem, quando um amigo dele me perguntou se eu sabia quantos metros tinha uma baliza de futebol, antes de eu responder, ajuizou logo, o meu pai não percebe nada disso, obrigando-me à desforra de ter de dizer em que lugar do campeonato é que estavam o Benfica, o Braga, o Sporting e o Porto, coisa em que falhei redondamente. Por vezes não sei onde vive. No reino de Bakugan, onde cada linha de código é uma história que ele fantasia, no seu colégio de meninos-protegidos-do-real-a-sério (mas não estamos todos?!), no seu quarto onde crescem peixes, na sua mesa de cientista onde faz trabalhos e perguntas cada vez mais complicados, não sei.
Não é literatura ou é a literatura a fazer de vida: há um não-saber que sei cada vez mais.

sexta-feira, fevereiro 19, 2010

salto no vazio

todos os dias 18 de Fevereiro, há nove anos, são, para mim, dias santos. satisfaz-se com pouco: "amanhã vai partir um bolo com os amigos. ele disse que gostava muito que fosses", recebo num sms na véspera. atrasei-me uns minutos. ao entrar no portão vem ele a correr para mim e, como tanto gosta de fazer, dá um salto no vazio em direcção aos meus braços. faz isto há tanto tempo. e eu sempre a pensar, como será, se um dia me faltarem as forças e não conseguir segurá-lo? ele confia em mim. já me critica, já me diz que eu errei, mas no salto para o vazio, ainda é em mim que acredita. é desta santidade que se fazem alguns dos meus melhores dias. enquanto houver esta corrida e eu for vontade, estarei lá.

segunda-feira, dezembro 07, 2009

Ando há muito tempo para escrever sobre isto, o excesso de espírito competitivo nas crianças. Começaria mais ou menos por aqui: Só querem ganhar, ganhar, ganhar. No meu tempo não era assim. Não precisávamos de ganhar para sermos gente, para sermos pessoas. Brincávamos com flores, com plasticina e poesia.
Ando há muito tempo para escrever sobre isto. Hoje, tinha finalmente arranjado um bocadinho para dois dedos de prosa, quando ele me pediu para ir montar a pista de carrinhos e jogar um pouco com ele. Não sei como eu, um escritor de posts, acedi. Já devia saber o quanto são desastrosas estas incursões no real. Antes não o tivesse feito. Quando acabámos de montar aquela mini-pista de carros, comprada a 9 €, depois de darmos uma volta à pista, aquecendo os motores - a ideia foi minha, assumo - começámos a corrida. Dez voltas. Ainda não tinhamos dado cinco voltas e já, pelos meus gritos, pelo meu nervoso miudinho, pelos nomes que lhe tinha chamado, percebi que ainda não é desta que vou escrever o post sobre o meu tempo e a incrível tendência para a competição das crianças de hoje. Não que não tivesse tempo. Ainda antes de acabar as dez voltas fui despedido do quarto com o epíteto, o pai é um batoteiro, e de volta à sala poderia finalmente escrever o tão almejado post. Se não me tivesse passado a sobranceria.

sexta-feira, julho 31, 2009

Out

Faltam mais ou menos quatro horas para fechar a loja, colocar o assistente para ausências do escritório e preparar tudo para irmos de férias. De regresso a Galamares, aos passeios de bicicleta, àquela noite fresca no quintal. A janela da cozinha que leva para outros lugares saloios onde já vivi. O tempo de trabalho que aí vem no regresso de férias afigura-se tão entusiasmante quanto trabalhoso, abrindo novas frentes, mais pessoais, retomando projectos antigos, criando novos e estes quinze dias aparecem-me como um bálsamo de afectos, de prazeres. Uma pessoa é daqueles que ama e nas férias há menos desculpas para não nos entretermos a namoriscar . Faltam menos de quatro horas entretanto e eu já não existo. Deixo-me envolver pelo calor dos seus braços, das suas mãos finas, da sua pele macia, são estas as minhas férias.

sábado, junho 20, 2009

Porque é que tenho que fazer isto, Pai?

Morrem em mim todas as imagens quando de repente me dou conta da viagem que há entre aquele desabafo com que acolheu o meu pedido para que fosse pôr a mesa e desligar a televisão, e a minha própria adolescência, os meus pais. Morrem e o que fica é apenas um continuum que me faz ficar a pensar. Eu sei onde estava há trinta anos. Cinco minutos depois quando abro a porta da cozinha para lhe lançar um berro e dizer-lhe que ninguém é seu criado, a luz branca da televisão já não atravessa a sala e o pano está sobre a mesa. Encontrou uma aliada e como adora fazer coisas com ela até se esqueceu do desabafo rebelde. Eu volto para a cozinha para acabar o jantar e já vou a sorrir. Há trinta anos estava no meu quarto, a querer escrever o meu romance e ele, esse mundo de fantasia couraçado ao real era invadido por um
quim, vai buscar ...
ou então não havia romance, havia apenas um cigarro, eu a querer fumá-lo, e aquela possibilidade de me interromperem, de serem donos de mim era tão forte que eu já me vi, na pré-história dos meus argumentos com o Pedro a tentação de dizer o é assim porque eu mando, porque sou eu que pago as contas, porque sou mais velho, e eu sem me ter dado conta naquela altura, já passaram uns anos, que queria dizer apenas, é assim porque eu amochei e agora amochas tu, é assim porque eu também me sacrifico por ti e tu tens de, até aos dezoito anos, de amochar ao que eu digo, ao que eu penso, ao que eu quero, porque eu sou teu dono, eu mando em ti, e se me chateias muito devolvo-te à rua, aos ciganos que andam aí a pedir, ao homem do saco. foi preciso um
O pai não manda em mim,
para eu perceber que aquele recalcitrar era também uma ponte por onde eu podia passar para tentarmos en conjunto reaprender o que é que é o poder, o que é que é mandar, o que é que é obedecer, o que é que é crescermos os dois para a liberdade, sim, não me caiem os tomates no chão se eu tiver que reaprender isto tudo com um gaiato de oito anos, o tempo não quer dizer nada, o que quer dizer tudo é o amor e eu amo-o, amo-o muito, todas as noites que ele está cá não há nenhuma noite em que não lhe diga, esta casa ainda fica com mais luz quando estás cá, amo-te muito, eu sei que no outro dia li, ouvi, um pediatra de voz doce e melosa dizer que os pais não são amigos, são pais, e eu a mandá-lo foder cá por dentro, a pensar, vou ser teu amigo sempre, não preciso de ir para as tuas festas, brincar com os teus amigos para ser teu amigo, só preciso que saibas que eu não sei, não vou deixar de não saber só porque tenho de te dar a semanada, comprar a tua roupa, ajudar a pagar as tuas despesas, isso não atrapalha a minha amizade, agora não contes comigo para te enfiar dentro da tua pequena cabeça de marfim uma data de porras que na minha humilde opinião não te servem para nada e qualquer polícia sinaleiro te pode transmitir com muito mais convicção do que eu,
é por isso que eu detesto pediatras de voz doce e melosa, não porque desconfie deles, da sua voz, quem sou eu, apenas porque me dão cabo do zen, começo logo a praguejar, a esquecer-me de onde ía, neste prazer que eu nunca tive com o meu pai ou com a minha mãe, o de lhes dizer como tu me dizes,
o pai vai ser sempre o meu melhor amigo,
porque de facto a minha mãe, o meu pai, o meu avô, os meus tios, as minhas professoras primárias, até a dona yolanda ou a dona maria amália eram as melhores pessoas do mundo, mas por causa do mundo onde tinham sido criados não tiverem esta oportunidade que eu tenho de pegar na mão de um puto de oito anos e ser eu outra vez de novo, psicodrama em movimento,
e perceber a raíz do mal,
este mal que me carrega, esta dor de pensar que há qualquer coisa que me impede de ser eu mesmo e não perceber que isso não está fora de mim, nos gritos de uma representação da autoridade, o que me impedirá de ser aquela gente que as minhas moléculas mais desprevenidas, mais desacreditadas, ainda querem ser, sou eu, a minha circunstância, mas eu, eu mesmo.
E eu que sou ainda novo mas já não tenho o tempo suficiente para recriar dentro de mim a exaltação da paz, da bonomia, da serenidade, para me libertar do ódio que fui acumulando, como se fosse um pús que febra dentro de mim, tenho ainda uma chance, a de o tentar ajudar a crescer para a liberdade como um homem livre.
E se um dia eu morrer, porque como dizia o agostinho da silva quem é que em vivo sabe se morre?, ele, nos seus passos, há-de ter um pouco desta minha birra, desta minha teimosia de me estar a borrifar para os deves ser assim, para a mimetização e a repetição automática dos padrões de poder que temos dentro de nós,
eu não me importo que se um dia ele perder o norte possam dizer que foi por culpa do pai que não lhe transmitiu aquilo que não podia porque ele próprio não sabia. A verdade é essa. Não sei nada sobre o poder, sobre a autoridade, sobre como a devo exercer, em que alturas, com que modos, com que modos sei - amáveis, amáveis, a amabilidade, amo desvairadamente, escancaradamente, infielmente, intangivelmente, impossivelmente, a amabilidade dos nossos dias, das nossas vidas, das nossas palavras -
o resto não. O resto, se ele é uma pantalha onde eu projecto os meus piores filmes, não sei.

segunda-feira, abril 27, 2009

Histórias com umbigo

Ontem a propósito de uma gravidez que lhe é muito próxima tropecei de repente diante de um tema que - eu vejo-o já tão homenzinho! - pensava que estava resolvido. De repente um porquê desprevenido atirou-me para o real. O meu filho não é um homem, tem oito anos e ainda sorri envergonhado com anedotas e histórias que metam a palavra pila. Tive de lhe perguntar:
- Tu sabes que os bebés nascem na barriga das mães, não sabes?
- Claro, eu sou crescido.
- E como é que eles nascem?
- Da barriga das mães, já disse.
Pois já disseste. E eu aqui a andar para trás e para a frente e a pensar, a minha mãe resolveu isto melhor do que eu.
- Mas sabes que os pais também colaboram nisso?
- Sim, sei, claro.
Ganhei coragem. A coisa faz-se pensei.
- E como é que é?
- Então, pai, não sabe?
- Diz lá...
- Então pai, os homens encostam o umbigo deles ao umbigo das mulheres e depois passam a sementinha que têm para dentro da barriga das mulheres.
- Ah!
-Não sabia que era assim?
Deixei mais um bocado de estrada interpor-se entre nós. A certa altura lembrei-me novamente da história dos meus oito anos, tinha que lhe dizer:
-Olha, a tua história é muito mais bonita do que a minha.
- Qual história?
- A de como nascem os bébés. E por isso vamos ficar com ela mais uns tempos. Eu depois, um dia, quando já estivermos cansados da tua história, conto-te a verdadeira história sobre o nascimento dos bébés. É também muito bonita mas a tua é mais fantástica.
Lá mais para a noite fiz finalmente juz à minha raíz. Contei-lhe com naturalidade. Talvez demais. No fim, ficámos os dois a sussurar pela poesia que tinhamos antevisto naquele leve encostar de barriga que provocava um rolar de uma semente que, durante nove meses, iria crescer até ser este ainda hoje incrível e maravilhoso mistério que é ser pessoa.

sábado, abril 25, 2009

E sempre que Abril por aqui passar...

Nunca me opús a que o meu filho fosse baptizado, porque a mãe dele me assegurou que nunca esperaria de mim que eu fosse um garante da sua educação cristã. Foi um acordo verbal só oficializado na altura do divórcio em que ficou determinado em notário as obrigações da mãe e do pai: à mãe caberia educá-lo dentro dos preceitos da santa madre igreja, enquanto que a mim me cabia explicar-lhe tudo sobre o 25 de Abril.
Iniciei as minhas actividades pedagógicas o ano passado e hoje queria levá-lo à festa.
- Ó pai, eu acho que é boa ideia e eu adoro festas à noite mas hoje não me apetece muito.
Fui então buscar o DVD do Público, em que há um documentário "As Armas e o Povo". Começa com Grândola, Vila Morena, de Zeva Afonso. Explio-lhe que o 25 de Abril começou na madrugada. Está impressionado com os tiros disparados pela Pide, com a multidão, com as forças armadas, com a história que eu lhe conto. Com o Teatro da Trindade ali no centro de todos os acontecimentos. Mais uma vez, diante de Salgueiro Maia curvo a cabeça, numa simples homenagem e digo-lhe, é um herói, é um herói deste movimento. Quer saber quem mandava, porque é que não havia liberdade para as pessoas dizerem o que queriam. Faz-me muitas perguntas, têm dúvidas sobre esta ideia de liberdade, de tirania. A seguir dá a saida de Caxias. E eu percebo que ao ver aqueles rostos felizes, em festa, a abraçarem-se, ele compreende num instante uma das dimensões mais importantes do que foi a revolução dos cravos. Depois, mais tarde, ao telefone hei-de vê-lo entusiasmado: - Sabe que hoje é um dia de festa porque as forças armadas libertaram o país? -

segunda-feira, março 09, 2009

Oitenta por cento

Enquanto espero pela aula das onze, hoje é a Personagem e a Vida Quotidiana, vamos até ao Campo Pequeno, andaremos por lá a observar as pessoas, não sem antes termos saboreado um naco de erving goffman, a apresentação do eu na vida de todos os dias, é um dos momentos de cruzamento entre as minhas vivências teatrais e a das minhas deambulações académicas pelas ciências da comunicação, momento em que a minha vida enquanto experiência me faz mais sentido, depois de ter revisto os meus apontamentos, concedo-me um segundo para mim próprio, um breve momento para mim próprio. Eu enquanto papel, enquanto homem, pai, filho, espirito pouco santo.
Ontem o Pedro foi nadar numas competições entre os miúdos que nadam ali naquela piscina. Coisa pouca, coisa muita, a transbordar de orgulho, foi o primeiro dos primeiros, em tudo, o manel foi também primeiro mas teve um empate, eu, que sempre achei que triunfar na vida era andar por ali, irmão, filho e pessoa do meio, pouco familiarizado com os primeiros lugares no pódium, a olhar para o seu entusiasmo e a dizer-lhe, o importante não é ganhar, e ele, logo, a não me deixar acabar, num tom monocórdico, a mostrar e a demonstrar que não era a sua própria voz que eu ouvia, eu sei, o importante é participar, e eu, não, o importante é tu divertires-te, gostares de estar ali a nadar, teres prazer a atirares-te à água, porque é isso que faz de nós pessoas melhores, ao contrário daqueles que só pensam em ganhar, às vezes quando queremos tanto ganhar, ganhar torna-se na razão mais imprtante e esquecemos tudo, até de termos prazer com aquilo que fazemos.
Assumo o hedonismo. Claro que há diversos tipos de prazer, e algum dele tem dor misturada. Muito dele terá dor, sangue, suor, lágrimas, misturado, mas assumo o prazer, o gosto, como medida de todas as cousas humanas.
Enquanto estava a ver o Pedro a saltar para a água juntei-me ao pai do M. , o seu melhor amigo. Temos um grande carinho pelos pais dos melhores amigos dos nossos amigos, já me apercebi. Confessei-lhe que estava preocupado com as birras que o Pedro fizera na festa do seu aniversário, que estava muito competitivo, que se zangara com os seus amigos. Falámos sobre isso. E ele a certa altura, sabes, no outro dia o director lá do colégio virou-se para mim e disse-me, esteja mais preocupado com o que faz do que com o que diz. E explicou-me, oitenta por cento do que eles absorvem é pela via do exemplo. Os outros vinte por cento são conversa, conversa no pátio, na sala de aula, nos corredores, nas vossas casas.
Corei. A ver o filme das piores coisas do Pedro. Quando ele grita, sou eu que grito através dele. Quando ele se impacienta, sou eu que me fervo no seu corpo, na sua voz, nos seus gestos.Confessei-lhe isto. Ele confirmou-me, não tenhas dúvidas. O único caminho é tentarmos ser um pouco melhores. Dei-lhe uma palmada nas costas, de cumplicidade. À homem. Os pais dos melhores amigos dos nossos amigos, nossos amigos são.
E à noite, estava tão cansado, foi logo para a cama depois de jantar, perguntei-lhe se queria que eu ainda lhe contasse uma história, sim, um bocadinho, comecei então a contar a história de um homem que tinha descoberto que ser pai era um trabalho para toda a vida. Ele já ressonava quando eu comecei a choramingar, comovido com a beleza desta tão simples, e profunda, história de dádiva.

segunda-feira, fevereiro 09, 2009

A minha festa

Vai fazer oito anos. Em 2009. Eu fiz oito anos em 1970. Fecho os olhos, tentando perceber quem eu era, tentando que nesse esforço possa compreendê-lo um pouco melhor. Às vezes tenho medo de me estar a esquecer de ser pai, de estar só a pensar em passar bons tempos com ele, a crescer com ele. O que é que eu queria do meu pai aos oito anos? Tenho tanto medo. Apetece-me, quando estou só, consumir-me, sem desânimo, no meu não acreditar, no querer ver para além da fé, mas de quinze em quinze dias tenho aqui este pequeno raio de luz e desfaço-me em promessas, em quereres, em desejares. Ele é a minha festa.

sexta-feira, janeiro 30, 2009

No outro dia perguntou-me pelo tabaco. Porque é que eu tinha deixado de fumar.
- Deixei de fumar porque me aconteceu uma coisa extraordinária.
- Foi?
- Tu nasceste.
- Isso não é uma coisa extraordinária?!
- Para mim foi.
Contei-lhe que o avô dele tinha morrido com um cancro no pulmão há uns anos atrás e que nem aí eu tinha sido capaz de deixar de fumar.
-Então?- perguntou ele intrigado com a escala de grandezas das coisas. - O pai estava com medo de morrer?
- Não. Lembras-te quando íamos à Biarritz e depois dávamos um passeio de mão dada?
- Íamos comer um queque.
- Era. Lembras-te?
- Sim mas então?
- Achei que era um estúpido se estivesse a fumar e com isso a contribuir para poder passar um pouco menos de tempo ao pé de ti. Eu ainda hoje quando olho para ti penso que gostaria muito de ter o meu pai aqui ao pé de mim.
Não disse nada. Ficou todo orgulhoso e contente. Abraçou-me.

terça-feira, setembro 16, 2008

Carta ao pai

"À mesa só se admitiam actividades relacionadas com a comida - mas tu cortavas e limpavas as unhas, afiavas lápis, limpavas os ouvidos com palitos. Por favor, pai, vê se me entendes bem: tudo isto não passaria de pequenas coisas insignificantes, que só se tornavam humilhantes para mim porque tu, o homem que era o meu exemplo maior, não obedecias aos mandamentos que me obrigavas a mim a seguir à risca. Com isso o mundo apresentava-se-me dividido em três partes: uma primeira onde eu, o escravo, vivia submetido a leis que tinham sido inventadas para mim e que eu, sem saber porquê, nunca poderia cumprir à risca; depois um segundo mundo, infinitivamente distante do meu o mundo em que tu vivias a comandar, a dar ordens e a irritares-te porque não te obedeciam; e finalmente um terceiro mundo, o das outras pessoas, que viviam felizes e livres de ordens e obediência"
Carta ao Pai, Franz Kafka
À primeira leitura pareceu-me um texto autofágico em que o autor se deixava engolir pela sua própria palavra. O livro é quase nada isso. O pai Kafka e a criança Franz quase desaparecem da leitura. Somos nós, os nossos filhos, como o foram os nossos pais, que, de uma forma ou de outra, estamos ali. São as nossas dedadas sujas de compota sobre o mármore da pedra da cozinha que saão imortalizadas por este instante, sei lá de quê?!, brutal. Estaremos preparados para reconhecer que as nossas famílias recriam, em ambiente de estufa, todas as barbariedades de que o ser humano consegue acudir-se para justificar esta jornada insanável que é a vida? Estaremos preparados, nós pais, para nos darmos conta o de quanto somos importantes para os nossos filhos? O de quanto somos modelares? Eu, que nem para mim mesmo sou exemplo de coisa nenhuma, às vezes custa-me. Atordoa-me a responsabilidade. E olho para trás pela milionésima vez: a perda real, física, do meu pai transformou-se numa outra perda. Deixei de o conseguir pensar como meu tirano. Como fazia quando tinha treze anos e, com a mesma dureza com que o meu filho me chamou cruel há dias, o chamei de fascista. Já não sei porquê mas não me custa reconhecer que o motivo era tão pueril como aquele que motivou aquele cruel do meu pequenitates. Ou quando a minha mãe quis consagrar a nossa casa ao Sagrado Coração de Maria e chamou o seu velho amigo, o bispo D. José Ribeiro, e numa cerimónia em que toda a família estava ajoelhada a minha mãe me foi buscar ao quarto e me obrigou a ir também ajoelhar-me, lembro-me que chorava copiosamente, sem compreender como é que um bispo de Deus consentia em tamanha violação de um espírito adolescente, como é que a própria Virgem Maria não saia do quadro e, tal como Cristo com os vendilhões do templo, não transformava as minhas lágrimas em pequenos raios de sol. Hoje aos quarenta e seis anos já me parecem histórias que eu ainda sei que são minhas, mas apenas isso, sei, não sinto. Esta Carta ao Pai de Kafka reaviva-me tudo isso, principalmente essa sensação de rebeldia, de querer ser uma criança insubmissa, contra a respiração oficial das coisas, o meu lema de juventude. E de repente entra aqui pela sala um cheiro a liberdade, a identidade, por breves momentos, que morrerão logo a seguir quando acabar este texto, sei de onde sou, com quem sou, contra quem sou.