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quarta-feira, janeiro 31, 2018

A VIGÍLIA



(On Watch, Eilif Peterssen, 1889)


Começam primeiro a chegar os destroços
A madeira que fortalecia o casco
E adornava o olhar que pensava
Nos descobrimentos, as velas com o sal
Sem vento agora, depois virá
A saudade nas primeiras ondas
Porque o fundo do mar atrasa os desenlaces
E o luto, brota da água na praia onda após onda
Suavemente a flutuar, o amor do mar há-de
Lançar um corpo e outro corpo
Do fundo do oceano, vindos de um céu feroz
Ainda assim azul. Aqueles que amamos
Podem voltar, para guardarmos os silêncios.

31/01/2018

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terça-feira, agosto 30, 2016

AS PESSOAS NUM POETA NEO-REALISTA





Quarenta figuras humanas perpassam, ou melhor habitam, na poesia de Manuel da Fonseca. Quem fez o inventário foi o escritor e crítico ilhavense Mário Sacramento, no seu quase clássico “Há uma estética Neo-Realista?(1968:80).
Enquanto que palavras recorrentes na poesia de um autor se consubstanciam semântica e metaforicamente, vocábulos que vêm da matéria e do que é imaterial, ilidindo mesmo sujeito e objecto, por exemplo os da poética de Eugénio de Andrade, outros poetas informam sobre pessoas com nomes e existência concreta.

Podemos enumerar uma breve lista de palavras eugenianas: 
Mãos, dedos, olhos, rios, fontes, choupos, juncos, folhas, espigas, feno, erva, rosas, pólen, frutos, romãs, laranjeiras, aves, cavalos, lume, fogo, luz, verde, carmim, púrpura, brisa, dança, flauta, montes, nuvens, astros, estrelas, luas, charcos, a noite e a madrugada. (vd. “As mesmas teclas de Eugénio de Andrade”, in Blog Poeta Salutor (2010: 11/3)

Vejamos, por outro lado,  o que concerne ao poeta e romancista do neo-realismo e do “Novo Cancioneiro”, Manuel da Fonseca.
E por aqui eis-nos chegados à dialética da personagem, do sujeito poético, do nome, da actividade, do local de origem, das figuras humanas que estão nos Poemas Completos do poeta de Santiago do Cacém, falecido em 1993.

Maria Campaniça, Jacinto Baleizão, Zé Cardo, Toino, Rosa Charneca, Francisco Charrua, Zé Jacinto, Marianita, Zé Gaio, Julinho da ourivesaria, Zé Limão, Manuel da Água, e Mariazinha Santos;  malteses, vagabundos, mendigos, campaniços, guardas,  o coro de empregados da Câmara, António Valmorim, a Nena de Montes  Velhos,  o Terceiro Oficial de Finanças, entre outros nomes e vidas.

No poemário “Planície”, de 1941, no início da década fértil para a poesia neo-realista, embora o poeta José Gomes Ferreira tenha afirmado que “o social não era a característica principal da poesia do Novo Cancioneiro” (a Memória das Palavras), a verdade é que MdF traduz essa particularidade representativa das problemáticas humanas e sociais, do campesinato e da urbanidade, da seara e da fábrica, logo para o início daquele volume de poemas.

Um local: Cerromaior, que é também título do primeiro romance do poeta, é um lugar inventado que contém, no entanto, as realidades e as gentes, doutros lugares autênticos do vasto Baixo Alentejo – e.g. Cercal -, área predominante, senão mesmo exclusiva na poética do autor.
Depois, o lugar começa a revelar particularismos da vila, como tipicamente alentejana, o “Largo” de onde partem todos os “caminhos”, o “Largo” que era “o centro do mundo”, onde estão os “guardas” com a lei, mais adiante o “montado” genuíno, o “vagabundo rasgado”; ou a aldeia com “nove casas, / duas ruas, / no meio das ruas / um largo”, o “monte”. O tópos é fundamental na poética de Fonseca, como os Alentejo, “Beja, Cercal. Em alguns casos, especificamente, noutros como metonímia.
Poderia continuar pelo seu léxico fora. A própria dimensão do espaço, que às vezes é físico, outras psicológico, na poesia do autor de “Seara de Vento” é também recorrente na dimensão, por vezes, trágica dos nomes.

Na poesia ( como na prosa: conto e romance), “Manuel da Fonseca continua a existir com a sua frescura inicial e a sua energia, a sua capacidade de comover e seduzir” – escreveu  Mário Dionísio, há quase cinquenta anos.


30-08-2016


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segunda-feira, setembro 07, 2015

À ESPERA DOS OUTROS



“Toda a gente deveria ter um lugar para onde pudesse ir”
Ernest Hemingway


Não os esperávamos, os outros
chegam hoje, subiram com a madrugada.
Os sinos das igrejas os altifalantes das mesquitas
concebem apenas o silêncio.

Não estávamos à espera, mas chegam.
Colos de mães aflitas
perderam seus filhos nas praias
a memória guardada nas malas da noite.

Destinos dissolvem-se em comboios
esperança lenta, trazem os pés feridos
de muitas fronteiras, incapazes de erguer as mãos
aos altos muros de pedra. Chegam com o sangue

do coração escrito nos olhos, chegam
contra a apatia dos senados.


06-09-2015
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domingo, julho 05, 2015

EURÍDICE



 “De pé nas lages da entrada do Hades
Orfeu curva-se a uma rajada de vento” 
Czeslaw Milosz


 foi o amor um perigo mortal, tanto como foi belo
Orfeu estar de novo defronte do rosto de Eurídice,
depois de vencer o vento, ninguém pode
nem os deuses podem contra o amor
pensava Orfeu.

ousou assim entrar na morte e trazer a amada
amaciando o coração do Hades,
com os cristais do portal da vida quase à mão.

mas como a morte tem os seus caminhos,
foi o desejo que fez Orfeu perder-se
a olhar para trás, e assim perder para sempre
o objecto do amor.   

23-06-2015
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quinta-feira, maio 07, 2015

FELIS CATUS LUDENS



Põe o mesmo ardor para brincar
com o rato e com a folha de prata”

György Somlyó (Hungria, 1920-2006)



Em busca da felicidade da caça, o gato
Brinca com o papel de prata, o brilho
Apela nele instintos de beleza, como
Brinca com a mosca, é um ritual
De existência,  dar movimento a tudo
Mesmo com leves toques
O que está parado move-se.

Um frasco pode partir o perfume interior
Em mil asas pela casa, de cima da mesa
A maçã rola imprudente para o chão,
Um sofá muda de aspecto e mostra-se
Na sua nudez por dentro,
Os gatos repetem tudo,  podem repetir
Até sete vezes a vida.

07-05-2015

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domingo, março 29, 2015

BEFORE THE FALL








“A rebeldia –e o fruto”
John Milton(“Paraíso Perdido”)


 O fruto desenhava-se no ramo, o princípio
da esfera, maçã ou outro pouco importa,
o volume era o da esfera, permanente
circulo da vida para a morte, o fruto
preso  à gravidade da ciência
do bem do mal da tristeza de saber.
O fruto desenhava-se no ar fresco da tarde
e na noite de prata
mais para os olhos famintos do que os lábios,
até ao coração da mulher escarlate.


29-03-2015

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segunda-feira, fevereiro 16, 2015

MONUMENTO COM UM NOME





 Caminhar por Auschwitz  é andar no espaço
 Conseguido pela morte.
 No meio de barracões esculpidos de quietude
 Enganadora, a neve, falsa, se estendia
 Como roupa suja no chão.
 Não havia escadas para subir, no inferno tudo
 Era devolvido em cinzas. Sentem-se hoje
 Olhares perdidos ainda no passado. Um gato
 Com a sua inesgotável infância
 Alheio aos reflexos da vida.

16-02-2015

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Foto: Kacper Pempel/Reuters

sábado, fevereiro 07, 2015

POESIA PARA TRATAR FERIDAS


1.
Passar a ferro

Na “ars poetica” inicial do seu livro recente de poemas, João de Mancelos(JM) confirma o pensamento de Adolfo Casais Monteiro sobre a poesia ser cosa mentale, sem raízes no inconsciente.  A Poesia pensa-se, é acto consciente.
  Diz JM que “poema a poema” passa a alma a ferro:
os pequenos incidentes dos dias
não são mais do que dobras e vincos.
poema a poema, passo a alma a ferro.

Salvo melhor opinião, resolve problemas interiores, ontológicos mesmo,   através do poema que (se) escreve.

No presente livro, das Edições Colibri, Lisboa , 2014, JM  serve-nos um conjunto de 62 poemas límpidos, de uma claridade sem poeiras, mesmo aquelas que os raios solares podem salientar.

A simetria formal de cada poema, na primeira parte do seu livro, dispostos no papel graficamente sob a forma de tercetos, dão-nos essa medida da roupa, quero dizer do texto, desenrugado, bem engomado sem dobras nem vincos.

A forma aí é fundamental para dar uma estrutura a cada poema de texto ordenado, eximiamente ordenado, onde as palavras correm sem obstáculos
para usar a imagem do ferro de engomar.

Convém dizer, antes de escolher e salientar  três desses poemas da primeira parte do livro e outro da segunda, que em todo o caso estamos perante poemas de amor, de uma paixão contida, escritos de uma forma disruptiva quanto a esse amor.
Todavia, o autor não parece alimentar o amor, nem a paixão, nalguns casos – leia-se poemas- rasga-os mesmo.

Alguns exemplos breves:

vivíamos trocando beijos envenenados/ e discussões em círculos/(…)// só tive saudades do ódio, / de que tanto precisava/ para poder dormir em paz( do poema “há mais de quinze anos”)

“não me procures, amor, / nos  lugares do desencontro: / estações, aeroportos, hóteis” ( do poema “nowhere”)

“hóspedes um do outro, / o seu amor consistia / no ranger das molas de um colchão.” (do poema “havia um casal”)

“só escutara a palavra amo-te numa canção da rádio” (do pungente poema sobre um suicídio “limbo”)

Claro que também existem poemas de perfeito amor, aquele que se diz em metáforas e com reflexos tão rápidos que podem fugir-nos – se concordamos com Freud quando reduziu a criação artística a um “reflexo” de condições fisiológicas - , a verdade é que são instantes que quase nos escapam, os seguintes:

“às vezes, depois do amor, / quando feras dóceis rondam o nosso sono”, “às vezes, quando me encosto à nudez, exausto”, “às vezes, quando me inventas um nome” (do poema “depois do amor”). Mas, quiçá os dois melhores poemas de amor do livro sejam estes:

três da manhã

o que a noite traz à costa é inesperado:
o teu corpo tão perfeito quanto um búzio
na primeira praia.
(…)
amamo-nos até os nós do sono desatarem
e dentro de ti o oceano exausto
chamar o teu nome secreto.
_____________________________________

com as mãos manchadas de azul

regressarás a mim com as mãos manchadas de azul
e os pés sujos de tanto correr mundo,
ignorando que aqui só ardem ruínas sem mãe.
(…)
pedirás que te ame, riso a riso, numa cama de folhas,
mas o outono passou há muitos anos,
e tem a idade da noite quando chove.

2.
Três poemas para a história da Literatura em geral

Não é para admirar que um poeta doutorado em Literaturas Comparadas e Norte-Americana, escreva sobre poetas de outras latitudes literárias.

Um poema como “pedidos de empréstimos”, abre-nos um caminho de reflexão sobre o que Harold Bloom escreveu acerca da “angústia da influência” e dos poetas precursores. 


“toda a noite, as vozes de poetas mortos
Me emprestaram versos e canções,
Numa insónia ardida até de madrugada.
whitman e pessoa, os mais insistentes”


O próprio poema que dá título ao volume “a sombra do pó”  ( “as memórias entram com o vento/ sob a porta, escorrem pelas vidraças, / pingam avulsas no lago”), sobre o pó do tempo no sentido do passado e das suas recordações/memórias, não deixa de me lembrar o romancista John Fante, americano,  e o seu “Pergunta ao Pó”.

Sylvia Plath aparece num belíssimo terceto que é uma fotografia da malograda quanto bela autora de “Ariel”: 

“quando nem os médicos nem os loucos nem os santos
a escutavam,
ela negociava o silêncio com as aves mais azuis.”

Finalmente, um poema sobre Emily, a Dickinson. E neste as metáforas assumem papel estruturante para nos abrir caminho à poética da estranha poeta norte-americana de Amherst.
“Aranha laboriosa” que tece poemas “em fios de noite”, versos que foram “um intranquilo fogo”, que amou homens e mulheres “escondida entre as palavras.” Poeta da solidão, Emily, como poeta de uma certa solidão ordenada em poemas, a de João de Mancelos neste seu livro de poesia para tratamento de feridas.  

Aveiro, 05-02-2015
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quinta-feira, janeiro 22, 2015

UMA BUCÓLICA MODERNA NOS ANOS 50


Arte: Uma Aldeia (Piodão)



Na pura fealdade dos campos que ficavam
por detrás dos prédios, ali
um circo trazia do ar a tenda enorme e os leões
suspiravam por África? ou nesse tempo talvez
os tigres por Emilio Salgari, eu
vivia uma história de infância sem grandezas


Logo que o circo levantasse a tenda, as janelas
do meu quarto ficavam no escuro
E agora aqui estou, um
Género de Prometeu em luta contra a águia
das memórias, com outro centro de beleza
para onde dirigir os olhos, os poemas


alguns estão no meu coração, dentro
do bolso num caderno, esperam desde a
madrugada, outros passeiam na rua
no ar azul, ou em casa nos livros de alguns
amigos,  até na fealdade dos campos,  ali
por detrás dos prédios, onde nada acontece.

21-01-2015
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segunda-feira, janeiro 05, 2015

ALMOÇO CAMPESTRE


(Edouard Manet, "Almoço na Relva", Louvre, 1863)


Tal como Manet os fez, um mundo perfeito
sentados sobre a relva, numa relação directa com
o solo, um pouco menos mortais
do que a flor que mal nasce morre
sob a sombra das árvores, pousados como pássaros
distribuídos do alto cume azul, enchem os olhos
da fragrância de um corpo nu, eles
contudo indiferentes, conversam como dois
discretos cavalheiros que esperam o crepúsculo
cair como o fresco véu da tarde.

01-01-2015
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segunda-feira, setembro 01, 2014

PEDE-SE RIGOROSO SILÊNCIO



Há silêncios que enchem nossos ouvidos
mais que o trovão, Antígona
a conspirar vingança é um clássico
do silêncio, o silêncio do verso que começa
a costurar o melhor tecido que há em nós

Há muito silêncio no odor a colinas queimadas
o perfume das rosas é um silêncio às cores
o silêncio das janelas que se entregam à noite

Um iluminado silêncio
quando um fósforo vence o vento
e irremediavelmente arde, nas mãos
existe o lugar preferido dos silêncios

E não se pense que o que ocorre numa
estante não é o silêncio, Ulisses fatigado
das lágrimas na praia de Calipso
é um silêncio no Canto Quinto

E o silêncio que durante algum tempo sustemos
num haiku, o silêncio
é um vazio de tudo.

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sexta-feira, julho 18, 2014

MADRID, 1936



Com um fuzil apagado nas mãos
morrer em Madrid, as casas sólidas
a caírem do pó,  os pássaros
caídos das janelas, para morrerem
em Madrid, os filhos
presos aos cabelos das mães
Morrer em Madrid
com um cravo roto nos olhos.

18-07-2014

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quarta-feira, julho 16, 2014

DEVASTAÇÃO, Inédito de Rui Miguel Duarte



"And the dead tree gives no shelter, the cricket no relief"
“E a árvore morte não dá abrigo, nem alívio vem do grilo”
T. S. Eliot, de "Waste Land", secção I v. 23


as árvores escondem o que há de cinza
avessas ao vulgo, ao desenfado profano
só lhes dava o sol, de manhã,
e têm frio
(quanto mais lhes dá mais frio têm)

não procures indagar para onde
te eleva o voo da locusta
para onde a mancha dos grilos
que do céu galopa sobre a terra
eles não adivinharão  nada do mistério
do dia e da noite,
ou o marulhar potente do exército de pedras

só um vento vermelho
que te descascam as folhas até à solidão
até ao vazio das palavras

o que vês do alto da tua copa
é o oceano seco que tuas raízes jorram
roídas

ainda que o fruto minta, mente
o rio do olvido vem reclamar
os fardos das árvores: que dispam
os seus troncos
assim entoarás louvores à nuvem que
passa

Rui Miguel Duarte
15/07/14


quinta-feira, julho 10, 2014

FERIA DE SAN FERMÍN




É terrível a sombra de toiros negros
a rolar pelas paredes um rumor como o chão em pânico  
é terrível
como se tremessem as janelas das casas hirtas
e o medo nas vozes tremesse é terrível
 a tarde incendiada por laços vermelhos
no pescoço ao vento que os toiros negros deixam
ao passar é terrível cada corpo a cingir-se contra as paredes
é terrível as costelas a baterem umas nas outras
castanholas partidas é terrível
com a respiração do toiro sobre o corpo.

10-07-2014
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terça-feira, julho 08, 2014

Inédito de José Brissos-Lino




Sento-me num livro

Sento-me num livro e espero as contingências 
do sol da manhã
percorro-lhe a alma vagarosamente
com a gentileza de um piscar de olhos 
ao virar da página
e depois custo a despegar os olhos
e o sentido 
da corrente de vida
até que desague 
na última capa.

7/7/14 
© José Brissos-Lino

quarta-feira, julho 02, 2014

BLUES PARA UM FUNERAL








                                          
Wystan Hugh Auden ( W.H.Auden, Inglaterra, 1907-1973)

Parem os relógios, cortem o telefone,
atirem ao cão um osso sumarento,
um lençol de silêncio sobre o piano e os tambores
precedam o caixão, com carpideiras.


Que os aviões, gemendo por cima do cortejo
rabisquem no céu a mensagem Ele Está Morto.
Ponham laços negros no pescoço das pombas
e os polícias respeitem o dia com luvas brancas


Ele era o meu norte e o sul, meu leste e o oeste,
minha semana de trabalho e meu domingo,
era o meu dia e a noite, a minha voz e o meu cântico;
eu pensei que o amor era eterno: E enganei-me.


não procurem mais as estrelas, apaguem-nas,
empacotar a lua e desmantelar o sol é o que resta,
despejem os oceanos e derrubem as florestas;
pois nada mais será bom como foi antes.

01-07-2014
                                                                                
© Versão livre minha