Se você tem filhos, provavelmente concordará com este texto. Se não tem e não pretende tê-los, também. Na verdade, quero falar com você, que ainda não tem filhos mas deseja muito ser mãe. Você tem ideia do que seja realmente a maternidade?
Antes de ser mãe, você deve lembrar que, a princípio e por um longo tempo, seu filho será um bebê - e bebês dão trabalho. Basicamente, bebês choram, mamam, fazem xixi e cocô e precisam dos cuidados da mãe 24 horas por dia, pois não têm horário para nada e a menor inobservância pode facilmente fragilizá-los ou adoecê-los. Enquanto tiver um bebê, muitas vezes você se sentirá exausta, confusa, sozinha (ainda que conte com uma rede de apoio), incompreendida. Você chorará de cansaço, de desespero, de solidão, de dor nos seios ingurgitados. Você cheirará a leite e fraldas e trocará almoço, banho, passeio ou qualquer outra coisa por algumas horas de descanso. Não se preocupe, tudo vai passar, e logo seu bebê terá se transformado em uma criança.
Antes de ser mãe, você deve lembrar que crianças também precisam de você em tempo integral. E que os filhos não são uma extensão da mãe e, muito menos, sua propriedade: são seres independentes, com personalidade própria e direito de se descobrir e encontrar seu lugar no mundo. Amar um filho não é projetar nele as próprias expectativas, mas acolhê-lo e respeitá-lo exatamente por quem ele é, com seus defeitos e peculiaridades. Você deve lembrar que crianças têm um potencial infinito de aprendizado, e que educar um filho não significa prover a melhor escola nem todos os cursos possíveis e imagináveis: educar uma criança exige que você seja seu maior e melhor exemplo, e isso só será possível caso você se esforce dia após dia para vencer seu pior lado a fim de se tornar um ser humano melhor. Criar um filho não é só colocar comida na mesa, roupas boas no armário, brinquedos caros na estante - é demonstrar interesse pela pessoinha que está ao seu lado, é não negar um abraço ou um sorriso, é preservar sua inocência, é lutar diariamente pelo seu direito à infância, é estar ciente de que os seus problemas de gente grande não devem ser transferidos para uma criança que não tem capacidade nem obrigação de lidar com eles. Antes de ser mãe, você deve lembrar que crianças não são robôs: elas fazem birra, testam sua paciência, levam você ao limite. O filho que você vai ter pode ser completamente diferente do filho que você sonhou. Contudo, você deve lembrar que nenhuma criança deve estar exposta à violência, seja ela física, psicológica ou verbal - pois há palavras, atitudes e omissões que abrem feridas tão profundas a ponto de uma vida inteira não ser suficiente para que cicatrizem. Mas não se preocupe: sua criança também irá crescer e, quando menos esperar, seu filho será um adolescente.
Antes de ser mãe, você deve lembrar que adolescentes também precisam de empatia. Você, muitas vezes, sentirá saudades do bebê fofinho e da criança espirituosa de antes, e chorará por não reconhecê-los no rebelde de hoje. Você deve lembrar que é indispensável muita disposição para orientá-los e que impor limites é necessário, e a melhor maneira de fazer isso é estabelecendo com os filhos uma relação de confiança e cumplicidade, porém nada disso é algo que se possa exigir automaticamente de quem quer que seja: confiança se conquista, cumplicidade se constrói ao longo do tempo. Você deve lembrar que é desde a primeira infância que se estabelecem esses vínculos. Ignorando a realidade, a adolescência do seu filho tem grandes chances de se tornar um martírio para vocês dois. Mas não se preocupe. Essa fase também irá passar, e seu adolescente logo dará lugar a um adulto.
Antes de ser mãe, você deve lembrar que a gente cria os filhos para a vida. Não somos suas donas, apenas guardiãs temporárias. Amar um filho não é privá-lo de encontrar seu lugar no mundo, mas prepará-lo para alçar seus próprios voos, levando consigo a certeza de que sempre terá para onde voltar. Antes de ser mãe, você deve lembrar que um dia ficará novamente sozinha, pois esse é o ciclo da existência. Aconteceu com nossos pais, acontece conosco, acontecerá com nossos filhos. Todos precisam escrever sua história. E, fisicamente perto ou longe, você sempre estará ao seu lado, com o mesmo amor de quando se viram pela primeira vez.
Antes de ser mãe, você deve lembrar que esse texto não trata do lado ruim da maternidade, pois ser mãe não tem um lado bom e um lado mau. Maternidade é difícil, requer dedicação, abnegação, sacrifício, paciência, sabedoria e, claro, amor - um amor altruísta, diferente de qualquer outro sentimento, que nos dilacera ao mesmo tempo que nos edifica. Ser mãe é tão assustador quanto apaixonante. Se você leu esse texto até o fim e se encheu de coragem, vá em frente. Porém, se bateu uma pontinha de medo, talvez não seja a hora.
Filhos não são status, prêmios de consolação ou recompensa. São seres humanos. São presentes maravilhosos demais para virem ao mundo e existirem nele de qualquer jeito. Ser mãe não é fácil. Vai exigir o seu melhor e, mesmo assim, inevitavelmente, algumas coisas fugirão ao controle e darão errado. É uma luta diária. Eu, particularmente, não trocaria minha maternidade por nada. E se você, que deseja ter filhos, estiver realmente pronta para essa batalha, prepare o colo e o coração: não há nada nessa vida que mais valha a pena.
(Obs.: escrevi sob o ponto de vista de uma mãe porque não tenho total propriedade para incluir o ponto de vista dos papais, mas penso que, independente do laço parental, quando se tem amor e responsabilidade, as lutas e realizações são conjuntas.)
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domingo, 4 de novembro de 2018
sábado, 5 de novembro de 2016
o controle remoto do ar condicionado
fonte: Google (autoria desconhecida) |
O mundo é pródigo em lugares
misteriosos. A colônia de Roanorke. O lago Angikuni. O rio Azul, na China. Quem
nunca estremeceu ao ouvir falar, por exemplo, no Triângulo das Bermudas? O mais
intrigante, entre todos eles, tem como principal característica fazer as coisas
desaparecerem e reaparecerem em datas e locais inesperados – e nisso consiste sua alta periculosidade – e se localiza em território brasileiro, mais
especificamente em território paranaense: o buraco negro da minha casa, que já
tragou de tudo um pouco e teve como última vítima o controle remoto do ar
condicionado.
Há algumas semanas, aproveitando uma
frente fria que baniu temporariamente o calor insano típico do final do ano, meu
marido e eu resolvemos fazer um faxinão em casa. Arruma daqui, limpa dali,
esvazia acolá, ao fim do dia tínhamos a casa brilhando, todos os músculos e
articulações doendo, alguns itens para doação e cinco sacolas imensas de lixo
para descarte (eliminamos tantas inutilidades que, ao término do trabalho, era
possível ouvir um eco estranho reverberando pelos cômodos, que não sei dizer se
desapareceu ou se nos acostumamos com ele). A sensação de dever cumprido era
tão boa quanto a de uma massagem nas nossas costas destruídas.
Frentes frias são como paixões na
adolescência: vêm e vão. Interrompidos por um temporal, os dias amenos foram
substituídos por outros cada vez mais secos e abafados. Consigo tolerar o calor
durante o dia, mas minha ideia de um limbo espiritual pós-morte inclui dormir
suada, grudenta e com mosquitos em redor do meu desditoso corpo pelo resto da
eternidade. Meu marido, por conta de uma rinite alérgica, não é adepto do uso
constante de ar-condicionado; chegou, porém, o inevitável momento em que até
ele concordou em pedir uma mãozinha à tecnologia para driblar o imenso
desconforto causado pelo mormaço. Vamos ligar, pois, o ar condicionado. Mas,
ei, cadê o controle remoto?
Procuramos em todos os lugares: nas
caixas de brinquedos das crianças, nos armários, atrás dos livros da estante,
sob as camas, em cada bolsa/mala/mochila, na geladeira (houve um episódio em
que o buraco negro sumiu com meu smartphone e o fez ressurgir dentro dela), nas
gavetas da cozinha, nos sacos de lixo. Mapeamos a casa inteira, fizemos uma
retrospectiva do dia da faxina, identificamos os pontos estratégicos (leia-se:
os mais improváveis) e nos dividimos na busca pelo ouro.
– E aí,
encontrou?
– Nada. E você?
– Nada.
– Gente.
Os dias passaram. O calor se impôs com
uma intensidade sobrenatural. E o controle remoto havia desaparecido.
– Como está
quente hoje.
– Ô.
– Mas e o
controle remoto?
– Gente.
Tinha que estar em algum lugar.
TINHA QUE ESTAR EM ALGUM LUGAR.
– O cesto de
revistas, o sofá, o cafofo da Sushi. O que ficou faltando?
– Acho que nada.
A gente já olhou tudo.
– Gente. Não
pode.
– Não faltou
nada.
– Gente.
– Uma hora vai
aparecer.
– Não adianta
nada aparecer só no inverno. Tem que aparecer hoje. Sente só esse calor. Não é
de Deus.
– Tá quente,
mesmo.
Demos por encerradas as buscas e
decidimos comprar outro controle remoto, o que não saiu necessariamente barato
– mas valeu, pois o investimento pouparia uma família de ser carbonizada em uma
noite incendiária de verão. Não costumo me lembrar dos meus sonhos; no entanto,
docemente embalada pelo ambiente geladinho, devo ter sonhado, nesta primeira
noite de frescor após tantas outras de tortura, com anjos tocando flautas e
liras ao meu redor. Dia depois veio uma nova frente fria, o calor deu uma
trégua e o condicionador de ar ganhou alguns dias merecidos de folga, mas a
instabilidade climática provocou uma crise de asma no meu pequeno. Fui até a
caixinha de remédios, peguei tudo o que precisava, abri a caixa do nebulizador,
retirei o motor, as máscaras, as cânulas – e reluzente, enigmaticamente, o
controle remoto perdido.
Más línguas dirão que o problema da
minha casa é falta de organização. Não vou me deter a dar mais explicações na
tentativa de convencer os incrédulos, até porque nem tenho tempo hábil para tal:
dessa vez, o buraco negro sumiu com o carregador do meu notebook e a bateria
está por um fio, mas prometo que, assim que ele reaparecer, eu volto.
quinta-feira, 15 de outubro de 2015
Trivialidade.
Há alguns dias eu estava com um amigo na livraria de um shopping center, em busca de um presente para um outro amigo. Loja cheia, com mezaninos cheios e com a cafeteria igualmente lotada, coisa que definitivamente não é empecilho para dois alucinados por café. Escolhemos nossos livros, nos dirigimos até o balcão, fizemos nosso pedido e, enquanto esperávamos, Juliano avistou uma mesa com três lugares ocupada por apenas uma pessoa.
- Com licença. Você se importa de dividir a mesa com a gente?
O rapaz olhou para a cara do meu amigo um tanto surpreso, não sei se pela naturalidade com que a pergunta havia sido feita ou se por ser uma vítima estreante naquele tipo de abordagem – afinal, basta olhar para o lado onde quer que se esteja para reconhecer uma infinidade de “solitários por força do hábito”: no cinema, nos restaurantes, lanchonetes, ônibus, bancos de praça... o fato é que, refeito da surpresa, o tal rapaz concordou em dividir conosco sua mesa-para-três-ocupada-por-um.
O rapaz olhou para a cara do meu amigo um tanto surpreso, não sei se pela naturalidade com que a pergunta havia sido feita ou se por ser uma vítima estreante naquele tipo de abordagem – afinal, basta olhar para o lado onde quer que se esteja para reconhecer uma infinidade de “solitários por força do hábito”: no cinema, nos restaurantes, lanchonetes, ônibus, bancos de praça... o fato é que, refeito da surpresa, o tal rapaz concordou em dividir conosco sua mesa-para-três-ocupada-por-um.
Confesso que me sinto pouco à vontade de me sentar com desconhecidos, e costumo resolver esse pequeno problema da forma mais simples possível. Apresentando-me. Foi exatamente o que fiz.
- Muito prazer, Flávia. E este é Juliano – e ambos, meu amigo e eu, estendemos a mão com um sorriso. O rapaz retribuiu na mesma moeda e, como há poucas coisas no mundo que um sorriso genuinamente simpático não resolva, em poucos minutos a conversa fluía como se fôssemos três velhos conhecidos. Entre goles de café, biscoitinhos amanteigados, gargalhadas, dicas gastronômicas, impressões sobre viagens e afins, 50 minutos se passaram num piscar de olhos. Nos despedimos de Elias – esse era o nome do moço – com abraços e satisfeitos por tê-lo conhecido, ainda que de forma tão inusitada.
- Cara bacana, né?
- É.
- Será que a gente ainda se vê?
- Não sei, quem sabe... o mundo é pequeno, né?
- É... – e, de braços dados, também deixamos a livraria, com a sensação de que levávamos conosco muito mais do que livros na sacola e um bom café no paladar.
E o que teima em não me sair da mente desde então é a expressão de surpresa no rosto do Elias, quando nos convidamos para dividir com ele sua mesa-para-três-ocupada-por-um. E me causa um certo desconforto, uma estranheza triste e reflexiva, a conclusão de que somos todos “Elias” em graus variáveis de solidão por opção. Talvez a correria do cotidiano tenha feito germinar nas pessoas um instinto subliminar de autopreservação diante da alucinada existência contemporânea, e isso tenha nos afastado uns dos outros a ponto de nos transformar em ilhas cercadas de ilhas por todos os lados. E nos esbarramos sem nos tocar, e nos olhamos de soslaio sem nos enxergar, e nos falamos sem nos dizer coisa alguma.
E assim, sem perceber, nos distanciamos de nossa essência gregária, e convivemos pacificamente com a ausência do outro, sem atentar para o fato de que essa é também uma espécie de “auto-ausência” – pois, ainda que neguemos consciente ou inconscientemente, carregamos conosco, ao longo da vida, a necessidade atávica de compartilhar, de dividir. A questão do espaço é relativa e, de certa forma, insignificante: há quem viva sua “vida-para-vários-ocupada-por-um” até mesmo no ambiente familiar.
Quem sabe um dia eu reencontre o nosso Elias em uma dessas esquinas da cidade – ou no cinema, ou num restaurante, ou num banco de praça, ou quem sabe naquela mesma livraria. Se o mundo é mesmo pequeno como dizem, não duvido que tornemos a dividir uma mesa e alguns bons minutos de nossas vidas. Enquanto isso, continuo acreditando que todo e qualquer lugar vazio é candidato em potencial para ser preenchido. E, igualmente, continuo acreditando que vale a pena preencher os meus – e os dos eventuais “Elias” que aceitarem dividir comigo suas tantas “coisas-para-muitos-ocupadas-por-um”.
(texto escrito em algum dia perdido de fevereiro de 2008. a lição da história, porém, permanece muito bem guardada comigo e ficará, ad eternum.)
- Muito prazer, Flávia. E este é Juliano – e ambos, meu amigo e eu, estendemos a mão com um sorriso. O rapaz retribuiu na mesma moeda e, como há poucas coisas no mundo que um sorriso genuinamente simpático não resolva, em poucos minutos a conversa fluía como se fôssemos três velhos conhecidos. Entre goles de café, biscoitinhos amanteigados, gargalhadas, dicas gastronômicas, impressões sobre viagens e afins, 50 minutos se passaram num piscar de olhos. Nos despedimos de Elias – esse era o nome do moço – com abraços e satisfeitos por tê-lo conhecido, ainda que de forma tão inusitada.
- Cara bacana, né?
- É.
- Será que a gente ainda se vê?
- Não sei, quem sabe... o mundo é pequeno, né?
- É... – e, de braços dados, também deixamos a livraria, com a sensação de que levávamos conosco muito mais do que livros na sacola e um bom café no paladar.
E o que teima em não me sair da mente desde então é a expressão de surpresa no rosto do Elias, quando nos convidamos para dividir com ele sua mesa-para-três-ocupada-por-um. E me causa um certo desconforto, uma estranheza triste e reflexiva, a conclusão de que somos todos “Elias” em graus variáveis de solidão por opção. Talvez a correria do cotidiano tenha feito germinar nas pessoas um instinto subliminar de autopreservação diante da alucinada existência contemporânea, e isso tenha nos afastado uns dos outros a ponto de nos transformar em ilhas cercadas de ilhas por todos os lados. E nos esbarramos sem nos tocar, e nos olhamos de soslaio sem nos enxergar, e nos falamos sem nos dizer coisa alguma.
E assim, sem perceber, nos distanciamos de nossa essência gregária, e convivemos pacificamente com a ausência do outro, sem atentar para o fato de que essa é também uma espécie de “auto-ausência” – pois, ainda que neguemos consciente ou inconscientemente, carregamos conosco, ao longo da vida, a necessidade atávica de compartilhar, de dividir. A questão do espaço é relativa e, de certa forma, insignificante: há quem viva sua “vida-para-vários-ocupada-por-um” até mesmo no ambiente familiar.
Quem sabe um dia eu reencontre o nosso Elias em uma dessas esquinas da cidade – ou no cinema, ou num restaurante, ou num banco de praça, ou quem sabe naquela mesma livraria. Se o mundo é mesmo pequeno como dizem, não duvido que tornemos a dividir uma mesa e alguns bons minutos de nossas vidas. Enquanto isso, continuo acreditando que todo e qualquer lugar vazio é candidato em potencial para ser preenchido. E, igualmente, continuo acreditando que vale a pena preencher os meus – e os dos eventuais “Elias” que aceitarem dividir comigo suas tantas “coisas-para-muitos-ocupadas-por-um”.
(texto escrito em algum dia perdido de fevereiro de 2008. a lição da história, porém, permanece muito bem guardada comigo e ficará, ad eternum.)
aqui tem
Amizade,
Cotidianidades,
Crônica,
Pessoalidade,
Vida Real
terça-feira, 1 de setembro de 2015
Um quarto cor-de-rosa.
Estou fazendo um quarto cor-de-rosa para minha filha.
Faço um quarto cor-de-rosa para minha filha sem sequer saber se ela gostará de cor-de-rosa. Eu mesma não gostava. Não sei se fez diferença na minha vida não ter tido meu quarto cor-de-rosa, e também não sei se fará diferença na vida dela. Mas faço um quarto cor-de-rosa para minha filha porque é o que as mães fazem: tentar construir um lugar bonito, seguro e colorido para os filhos, para onde eles possam voltar sempre, mesmo quando alguns sonhos e esperanças desbotarem e a vida parecer um filme melancolicamente preto-e-branco.
Faço um quarto cor-de-rosa para minha filha porque, um dia, ela crescerá – e desejo que jamais se esqueça de que será sempre a minha menina. Faço um quarto cor-de-rosa para minha filha porque sei que o mundo não o é, e a tratará com rigor e a fará chorar, e desejo que as lembranças de sua cama quentinha, suas bonecas e, sobretudo, do amor incondicional que lhe dedicamos desde o instante em que soubemos que seríamos abençoados com sua chegada sejam como um doce beijo de boa noite a apaziguar diuturnamente seu coração. Faço um quarto cor-de-rosa para minha filha porque não espero que minha filha seja uma princesa – embora, para mim, seja exatamente o que ela sempre vai ser.
Faço um quarto cor-de-rosa para minha filha, porque minha filha está construindo um quarto cor-de-rosa dentro de mim, repleto de lindezas e doçuras e sonhos. Faço um quarto cor-de-rosa para minha filha porque não posso fazer um mundo cor-de-rosa para ela e, mesmo que pudesse, não o faria – o que posso, e farei, é estar ao seu lado e segurar sua mão mesmo quando ela imaginar estar sozinha em sua caminhada, pois há jornadas que não podemos cumprir pelos filhos, ainda que sejamos capazes de dar um braço ou uma perna para poupá-los de certas dores. Faço um quarto cor-de-rosa para minha filha porque, além de beijá-la, abraçá-la, amá-la e estar/ser com ela incondicionalmente, é o que posso fazer. E porque fazer um quarto cor-de-rosa para minha filha é como erigir um lugar sagrado onde estaremos sempre juntas, resguardadas pelas ternas memórias dos nossos momentos lado a lado nessa existência.
Estou fazendo um quarto cor-de-rosa para minha filha. Não julgue, amigo querido, uma mãe por se esmerar em coisa tão aparentemente inútil e boba. Mães são assim – estão sempre a se esmerar em coisas bobas e inúteis para seus filhos amados. Construímos quartos cor-de-rosa a cada sorriso de um filho, a cada passinho, a cada vitória dele. Somos meninas aprendendo a crescer através do amor que a maternidade nos descortina, dia após dia. Talvez o quarto cor-de-rosa que estou fazendo para minha filha seja, de fato, para mim. Para você. Para todos nós. Como amor de mãe, que se irradia até onde entendimento humano jamais alcançará.
sábado, 5 de setembro de 2009
Entre Tantas, Uma História
Do que existe, e do que não se vê.
Soundtrack: Suzanne Vega - Luka
Soundtrack: Suzanne Vega - Luka
Ao me ouvir chamá-lo, o menino de sete anos abriu a porta do consultório feito uma ventania e se atirou no meu pescoço, “oi, tia”. Estava mais corado e bem mais desenvolto que na ultima consulta. Contou-me animado a respeito da escola nova; mostrou com orgulho a ponta de um dentinho permanente rasgando a gengiva, diminuindo o perímetro da janelinha sobre a qual eu brincara quando nos conhecemos. Foi essa a quarta vez que vi A.; na terceira eu lhe havia solicitado uns exames de rotina e, na segunda, ele comparecera para realizar uma lavagem de ouvido.
O tio de A. o levara até mim porque o menino, além de queixar-se de dor nos ouvidos, parecia ter um certo grau de hipoacusia – era preciso que o chamassem várias vezes até que ele atendesse aos comandos e, na casa dos avós, onde ele passara a morar desde que a mãe perdera sua guarda, os familiares, atentos, perceberam que o que parecia teimosia ou distração poderia, ao invés de algo puramente comportamental, ter uma causa orgânica. A palidez de A. me impressionou tanto quanto seu silêncio; segundo o tio, ele sempre fora uma criança quieta, mas, para mim, acostumada que sou com crianças de todas as idades e classes sociais, aquela inatividade toda era mais do que uma questão de temperamento – certamente havia por trás algo que ia muito além da dor física ou da contenção de travessuras infantis. A. não me olhava nos olhos, e respondia minhas perguntas com gestos e acenos de cabeça. O exame físico me deixou assustada: alguns hematomas e cicatrizes pelo corpo, e uma quantidade de cerúmen nos condutos auditivos que eu jamais havia visto sequer em ouvidos de adultos. Fiz a prescrição do medicamento a ser usado durante a semana, marquei a lavagem para dali a cinco dias e fui pra casa com aquilo no pensamento.
O que encontrei durante o procedimento nos ouvidos de A. me deixou chocada. Era realmente uma quantidade inimaginável de cerúmen, mas não apenas isso: ele tinha pequenos fragmentos de plástico e papel em ambos os condutos auditivos. Para quem não sabe, a lavagem otológica é realizada com soro fisiológico aquecido – ou seja, a temperatura do líquido deve ser rigorosamente monitorada a fim de retirar o cerúmen sem provocar queimaduras; é praticamente impossível um paciente não esboçar reações caso ela esteja ao menos ligeiramente acima do tolerável, lembrando que o epitélio do ouvido interno é extremamente sensível a variações térmicas. Apesar disso, A. não mexeu sequer um músculo da face. Cheguei a pensar que a indiferença dele se devesse a algum provável problema neurológico, o que justificaria o comportamento quase glacial mas, ao ser indagado se o líquido estava quente demais, ele respondeu “sim”.
- E porque você não disse nada?
Ele baixou a cabeça e pareceu receoso de responder alguma coisa. Por fim, balbuciou “eu posso?”, e isso me desnorteou. Pedi ao tio de A. que me dissesse afinal o que era que estava acontecendo ou eu teria de chamar o Conselho Tutelar; o rapaz, então, contou que o menino fora retirado do convívio com a família por ser vítima de abusos constantes por parte do padrasto e que, muitas vezes, era espancado apenas por ter feito alguma pergunta ou mínima queixa. Nas últimas semanas, A. levava surras constantes porque não atendia aos chamados, o que era classificado como rebeldia e desobediência pelo agressor – e isso causara no menino um pavor que ele transferia inconscientemente aos outros adultos de seu convívio: A. não se queixava para não ser agredido, mesmo que se encontrasse no limite da dor física ou psicológica. As feridas emocionais de A. eram tão profundas que anestesiavam sua capacidade de expressar reações comuns às outras crianças.
Há 5 meses A. é meu paciente. Hoje, o garoto é uma criança diametralmente oposta à de antes: brinca, tagarela e o mais importante, se sente seguro e amado por aqueles que assumiram a responsabilidade de cuidá-lo. O final feliz da história de A., no entanto, é exceção – a regra continua a ser a existência dolorosa e anônima de um número incontável de crianças vítimas de toda sorte de abusos físicos e psicoafetivos. Tão frágil quanto essas pequenas vítimas é a efetividade com que é combatida a violência infantil no país; apesar de patente, as estatísticas relacionadas ao assunto estão muito aquém do real. A distorção no registro desses números está diretamente relacionada ao velho conceito, ainda em voga, de que é melhor fechar os olhos para o que acontece na casa do vizinho e fazer de conta que F. realmente quebrou o braço porque tropeçou no carrinho e caiu da escada, ou que os hematomas nos braços e pernas de N. surgiram de um tombo de bicicleta, ou que foi o próprio A. quem picou os pedaços de plástico e os inseriu dentro dos ouvidos. É mais fácil, é mais confortável acreditar que o que não se vê, não existe. Só que violência infantil existe, e não é prerrogativa apenas de quem a executa com as próprias mãos: é de quem silencia diante dela também.
terça-feira, 12 de maio de 2009
Sobre Febres e Antitérmicos
Mens sana in corpore sano.
Soundtrack: Chico e Lucinha - História de uma Gata
Tenho um gato vira-lata.
Eu estava realmente planejando ter um gato, mas um de raça, peludo, de pedigree assepticamente puro - só que esse bendito gatinho vira-lata atrapalhou meus planos quando cruzou o meu caminho feito a pedra do Drummond. Feio. Microscopicamente feio, com uma crosta antiga de sujeira sobre a pelagem branca, sujeira velha mesmo para um animal com menos de duas semanas de vida. Manco. Olhudo. Levei-o comigo enrolado numa camisa e dei casa, comida, roupa lavada, CPF, RG, uma vida dentro das CNTP e amor desbalanceado, pendendo sempre para a ultrapassagem do limite superior da normalidade (mas reza a lenda que amor que é amor é sempre plus ultra). Em troca, ele usurpou a minha família, meu iogurte desnatado e o meu coração. E o último item, o tal que para ser o que é deve ser plus ultra, ele retribuiu, como retribui até hoje, igualmente sem medida, e o até então pretendido gato de pedigree asséptico virou poeira cósmica sapecada em algum lugar da minha memória de peixe.
Pois bem: há um tempo, coisa de um mês, minha irmã caçula me telefonou preocupada e meio chorosa para contar que o gato estava doente e que veterinário algum descobrira o mal de que o bichano padecia. Não comia. Não miava. Não brincava (sim, meu gatinho brinca e pasmem, abana o rabo, convencido talvez de que, equivocadamente ou nem tanto, existe um gene canino no seu DNA). Não "nada". Mas o que mais impressionava era a febre: um febrão digno de uma legião de microvilões estafilocócicos destruidores de gatinhos, no mínimo uma nada inofensiva sepse. S-E-P-S-E. Meu gatinho vira-lata, o tal que com duas semanas de vida sobrevivera no mundo em condições inóspitas e se salvara graças a seu charme e inteligência, estava prestes a ser derrotado por uma bacteriazinha chinfrim. Corre que corre com ele de veterinário em veterinário, vão-se amostras de sangue, vêm hemogramas e... surpreendentemente nada, nadinha, nem um leucócito a mais, nem a menos. O veterinário, então, bateu o martelo: febre emocional. A prescrição: atenção, em altas doses, seguida à risca, e em menos de 48 horas o animalzinho estava serelepemente curado.
E se alguém estiver se perguntando "e o que é que eu tenho a ver com isso?" eu respondo: nada. Mas quem é que que nunca teve uma febre emocional na vida, uma febrícula que fosse? Quem é que nunca se deixou atingir pelo tal virusinho ou bacteriazinha que deixa a gente com aquela terrível sensação de sei-lá-o-quê? Não existe influenza que seja páreo para a melancolia, porque tristeza não é imunomodulada - a gente não produz anticorpos contra ela, mas é cientificamente comprovado que a severa inflamação espiritual decorrente desses estados sorumbáticos é perfeita e eficazmente combatida com outro tipo de manifestação flogística: o calor humano. É uma delícia ser lembrado e receber um carinho apenas porque batatinha-quando-nasce-se-esparrama-pelo-chão. É bom, é inexplicavelmente bom ouvir um inesperado "te gosto", ou "que saudade de você", ou aquele mutismo de olhos derramados com cara de cafuné, ou sentir o toque daquela mãozinha - ou mãozona - pousando na pele ou nos cabelos apenas porque deu vontade. É inexplicavelmente bom mas não apenas inexplicavelmente bom: é necessário. Porque cada um de nós é, no fundo, aquele fulano que passa distraído e sem querer querendo se deixa cativar pelas surpresas do caminho. E cada um de nós, no fundo, é exatamente como um gatinho vira-lata, com nódoas no pedigree, cruzando o caminho de alguém para carinhosamente lhe atrapalhar os planos, olhudo, manco e faminto, esperando para ser enrolado numa camisa e num coração. Plus ultra.
Você já abriu seu coração hoje?
P.S.: pessoas, esse é meu Theo.
P.S. 2: vocês se lembram o que são as tais CNTP, não lembram? ;)
segunda-feira, 27 de abril de 2009
F.
Acontece que, no meu plantão de sábado à noite no Pronto-Socorro, fui chamada às pressas no meio de um atendimento para socorrer uma garota vítima de agressão física. A moça me aguardava na sala de sutura, trêmula, pálida do susto e da perda sanguínea importante, com as roupas ensanguentadas e a camiseta rasgada, o trapo de pano que envolvera a mão direita largado sobre a maca enquanto os enfermeiros tentavam limpar o ferimento e estancar a hemorragia. Ao me ver, ela esboçou um sorriso e me olhou como se pedisse desculpas por estar ali me dando trabalho, pois ela mesma, uma vez, me disse que eu deveria trabalhar menos e descansar mais - F. é minha paciente no programa Saúde da Família e, aos 17 anos, é mãe de um bebê de 6 meses, de quem também cuido no programa de puericultura. Perguntei-lhe o que havia acontecido; ela contou que fora agredida pelo marido a golpes de facão e, ao tentar se defender, a lâmina atingiu em cheio a mão direita, seccionando vasos, nervos, músculos e tendões do segundo, terceiro e quarto dedos.
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