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quinta-feira, 22 de julho de 2010

Aquilo Que Um Dia Você Chamou de Amor

Dos amores idos, nem sempre esquecidos.

Soundtrack :José Gonzalez - Heartbeats



Aquilo que um dia você chamou de amor bateu na minha janela ontem à noite, acometido de uma palidez que me surpreenderia se eu já não o soubesse meio borráceo como um desenho velho de giz, os olhos atônitos desprovidos do brilho que costumavam ter, um desassossego fosco, uma ausência súbita e irreversível. Não sei explicar, mas algo havia de tão comovente ali, naquele conhecido há tanto tempo distante e que reaparecia diante de mim de forma assim inusitada, que eu não soube o que fazer. Desejei convidá-lo a entrar e fazer perguntas calorosamente desnecessárias, um “como vão as coisas” ou “chá ou café?” ou ainda assentir, por educação ou amizade, que sim, me recordo de coisas que absolutamente já não me dizem coisa alguma; ou lhe perguntar se estava tudo bem, se tinha onde ficar, se desejava passar a noite ali pois eu ainda me lembrava: aquilo que um dia você chamou de amor tinha aversão a frio e, de fato, suas mãos tremiam, enluvadas pela temperatura incerta daquele reencontro. Desejei coisas tantas, todas tão cordiais. Aquilo que um dia você chamou de amor estava parado do lado de fora da minha janela no meio da noite e, pasme, embora tão dissolvente, ainda se parecia tanto com você. E eu, que há muito tempo deixara de parecer comigo e me espantara muito com o fato de que ele me reconhecera em meio às tantas outras “eu” que já haviam passado por mim, nada fiz. Nada disse. Apenas o olhei de frente, longamente. Como alguém que oferece, ao punhal, o peito e uma rosa. E anônimo, confuso, quieto, aquilo que um dia você chamou de amor se afastou com a dignidade dos que não pertencem mais ao seu próprio passado e a segurança dos que desconhecem seu próprio destino, sem olhar para trás. E acredite: já não tremia.



sábado, 3 de julho de 2010

Algo Parecido com Você

Cadê eu?

...perguntava-me.

E quem respondia era uma estranha que me dizia fria e
categoricamente: tu és tu mesma.

(Clarice Lispector)

Soundtrack: Natalie Walker - Urban Angel






Fazia tanto tempo que eu não saía para andar à toa. Desde você. Nem lembrava mais como era essa disciplina de um passo de depois do outro sem necessariamente precisar de direção, a cidade estava lá, inteira, eu só lhe roubaria algumas ruas e ela nem daria falta e eu sou ainda muito justa: empresto, devolvo, intacto. Como no dia em que emprestei seu carro e saí sem fazer barulho para comprar cervejas. Dezesseis para as quatro, se não me engano. Descalça. Clichê, enrolada no cheiro do seu sono. Tarde quente aquela, como nunca houve outra desde que descobri que era uma catarse ver você dormir com os lábios quase imperceptivelmente entreabertos de quem balbucia um desejo sonhado. Energia medida em quanta. Ainda hoje eu não teria coragem de interromper seu sono; a gente dorme, acorda, dorme, acorda, dorme e tudo que quer é desentender que a vida é paga com juros e parar de lembrar de despedidas, o sino da igrejinha velha, lembra?, acabou de tocar, sete badaladas – sete horas, sete dias, sete anjos, sete selos, sete palmos, uma alma vai, outra vem; sete e um. Escurece por onde volto sob um tempo que se fecha e fica tão bonito assim, cinza, sempre gostei de exceções. Ouvi dizer que vão cortar o pinheiro da rua de cima porque cresceu demais e pode desabar, tudo o que cresce demais vira uma ameaça – é assim com saudade, raiva, medo, amor. Amor. Você cresceu demais mas não me importo, portanto desabe sobre mim e outra vez me acaricie as costas com o peso de toda história nossa que cabe nas suas mãos sem medo de me machucar, sou forte o suficiente para você. Para nós. Para quem fui, para quem me tornei – algo parecido com você, sempre que me lembro, e me lembro sempre do seu modo de segurar a xícara e de caminhar de manhã e de abrir um livro numa página qualquer e de, e de, e de. E de. Está tão calmo aqui. Volto para casa debaixo de uma chuva fina, abro a porta, olho o relógio na parede, sete e meia, noves fora zero e resta um: eu. Ainda faltam cinco minutos para mim.

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Depois de um hiato de 4 meses - em que estive ausente curtindo a gravidez e tocando projetos profissionais - eis que o "Sabe de uma Coisa?" está de volta. Agradeço a todos que permaneceram visitando este espaço mesmo durante o tempo de quiescência, aos que mandaram mensagens de "volta, Flávia!" e àqueles que, mesmo distantes, sempre curtiram este blog tanto quanto eu. Obrigada, e bem-vindos todos!


domingo, 11 de outubro de 2009

Madrugada

Ele disse que aquilo não se repetiria. Por isso, quando, interrompendo o silêncio sonolento da madrugada, o telefone tocou, senti o corpo estremecido pela sensação brusca da iminência desagradável de nossos pés nos levando em direções opostas.

"Você é a mulher da minha vida."

Esperei que ele não atendesse; ele atendeu. Levantou-se da cama e, em pouco tempo, vestiu-se e apanhou suas coisas. Observei-lhe a movimentação enquanto o ouvia dizer que alguém, um amigo, precisava de uma carona.

- Você volta?
- Preciso saber o que fazer com ele, instalá-lo, essas coisas.
- Você volta?
- Volto. Só não sei a que horas.

"Você tem um rosto lindo. Mas visto daqui, desse ângulo... é o rosto mais lindo que já vi."

- Agora já é 01h30min.
- Não sei quanto tempo vai levar.
- Pra instalar alguém?

"- Escuta, me responde uma coisa.
- Claro.
- Casa comigo.
- Caso.
- Falo sério.
- Eu também. Mas se for pra casar, que seja agora.
- Ok.
- Ok. Dá a sua mão.
- Mas não temos aliança.
- Dá a sua mão."

- Já conversamos sobre isso.
- É.

Já havíamos conversado sobre tanta coisa. A verdade é que nenhuma daquelas tentativas de conciliação de ânsias e gênios nos levara a um entendimento real. Ele jamais cederia. Eu jamais me adaptaria. Conviver se tornara tenso, a lembrança da leveza dos primeiros tempos era tão sufocante quanto a certeza de que as coisas jamais retomariam aquele rumo. Eu não sabia o que ele estava pensando, eu não sabia o que eu estava pensando: o dia fora bom, mas tudo o que eu sentia era uma frustração estranha, cansada. Cansada. Eu estava cansada. Ele estava parado diante da porta, me olhando.

- Você volta?
- Venho de manhã. Cedo. Levo você para o trabalho.
- Não precisa.
- Eu disse que venho.
- Eu ouvi. E disse que não precisa.
- Você está começando tudo de novo.
- Não. Você está começando tudo de novo.
- Eu amo você.
- Você volta?
- Vou dizer pela última vez. Preciso atender o cara. Venho de manhã, tomamos café, levo você para o trabalho. Pode me esperar.
- Não precisa. De manhã, não precisa.

Ele deu meia-volta, entrou no carro e se foi. Eu também já havia partido.

sábado, 4 de abril de 2009

Para Quando Você For Embora de Mim

"Perdi um saco de cacos.
Quem encontrar, não precisa me devolver."

Patrícia Lage

Soundtrack: Duffy - Warwick Avenue





Para quando você for embora de mim eu guardei um tom lilás de mudança - qualquer coisa entre o azul e o vermelho, nem feliz nem triste, calmo. Tranquilo. Eu guardei uma paz sutil como a lucidez que se insinua cuidadosa entre as pulsações de um coração agressivamente cego, coração ferrão de vespa que investe e fere e se deixa ficar e nem sabe que é ele a causa e o efeito da própria dor. Eu não tenho mais sonhos de vidro, os deixei por aí - para que, quando você for embora de mim, eu não mais fira meus dedos com tantos cacos. Eu guardei, para quando você for embora, um sorriso intacto, de mim para mim, desmemoriado, de existência presente e egoisticamente apenas minha - que o que passou não existe mais; eu guardei, em algum lugar entre o azul e o vermelho da mudança lilás derramada sobre o dia, um instante que me revelaria ao pé do ouvido quando você já não estivesse aqui, e hoje eu ouço esse sussurro suave e lento feito canção.

Para quando você for embora de mim eu me guardei, inteira.

sexta-feira, 13 de março de 2009

Indulgência

Assim como nós perdoamos a quem nos têm.

Soundtrack: Garbage - Medication




Ele me perguntou se você me faria feliz. Respondi que não sabia, apesar de ter a certeza de que a resposta correta era "não". Então, ele sorriu, um sorriso cheio de dor - e me perguntou se era isso mesmo o que eu queria. E outra vez respondi que não sabia, e também na confissão dessa dúvida não fui sincera: se os meus sentimentos fossem lógicos, e o meu coração se acomodasse em coerências e acertos, seria ele quem eu escolheria. Eu apagaria você das linhas do meu corpo, eu ficaria atenta para o instante no tempo em que permiti que você se tornasse quem se tornou - a presença mais forte e mais instável dos meus dias, o foco dos meus absurdos, você é a minha cruz e a minha hóstia e eu me purifico nos seus pecados pois me entrego ao seu desejo quase com beatitude apesar da consciência do meu erro. E ele estava ali na minha frente com o coração queimando nos olhos ainda vermelhos das lágrimas que a minha leviandade lhe impusera mas de braços abertos para mim, e eu via refletido naqueles olhos o amor que jamais vi nos seus. E percebi que para ele sim, que, mesmo tendo errado tanto, eu era única e insubstituível, e confesso que me senti pequena e suja por machucar assim quem só me queria bem, e menor e mais suja ainda por não conseguir me odiar por isso.

Tão pequena e tão suja, eu, ele de braços abertos à minha espera, você em algum lugar do corpo de outras, eu nem única nem insubstituível, mais uma apenas, o que eu fiz? O que foi que eu fiz? Ele perguntando por quê, eu quieta, muda, fragmentada por dentro, você inabalável nos seus pés de barro, querido, você não é deus e um dia chega em que tudo vira pó, o meu dia é hoje, foi, será. Eu não sei o que eu fiz, ou sei, eu criei você e acreditei que era real quando soprei meu amor nas suas narinas e o seu primeiro fôlego bafejou morno e ondulante na minha pele mas foi você quem me ensinou a respirar, criatura que eu criei. Eu me moldei à sua imagem e semelhança, sou a estranha que me sorri no espelho, criatura que eu criei. Você em algum lugar do corpo de outras se derramando sobre elas, eu amanhecida, seca, marcada, você ainda deitado sob as minhas unhas, vá embora, não vá, fique, não sei mais o que estou dizendo. Vá. Vá, corra que o mundo é fora daqui. Ele me perguntou se você me faria feliz, eu sei que não mas ainda assim o deixei partir, e ele partiu, se foi; eu, ao menos uma vez, não fui egoísta. Eu o deixei partir. Um dia chega em que tudo, querido, tudo, tudo vira pó, criatura que eu criei, você não é maior que eu, ora, não é. Você ainda está aqui comigo mas amanhã restará menor, o meu dia é hoje, foi, será, eu te deixo aqui e te presenteio com a indulgência que é esquecer, que toda hora é para o fim quando é preciso renascer.

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Eternizando um trecho de uma conversa entre mim e a Sun a respeito dos fatídicos fatos verídicos ( e pretéritos) que deram origem a esse post:

Fla: - eu não me arrependo, porque fui honesta.
Sun: - então pronto.
Fla: - sou um caramujo que tem coração.
Sun: - quem não é, nesse mundo esquizofrênico, que pelo restinho da sua sanidade não rasteja atrás da felicidade?
Fla: - meu, que coisa linda isso.
Sun: acho que viajei fumando Lukcy Strike.

(Minha amiga, além de Uma Menina Com Uma Frô, é phylosopha.)

Beijos a todos!


domingo, 18 de janeiro de 2009

Obscurinfinitomeu

"Se o eterno retorno é o mais pesado dos fardos, então nossas
vidas contrapõem-se a ele em toda a sua esplêndida leveza.

Mas será o peso de fato deplorável, e esplêndida a leveza?"

Milan Kundera, em A insustentável Leveza do Ser

Soundtrack: Vienna Teng - Gravity




Eu me lembro da primeira vez que lhe disse “acredite” – e os seus olhos deitados sobre o meu pedido eram tão nus e esquálidos que desejei vesti-los com os milagres guardados no fim de alguma estória contada pela metade, mas o fim não chegou porque a vida o partiu ao meio e o milagre ficou por acontecer, e quem sabe ele lhe servisse alvo e quente como uma luva. Quem sabe, é tarde, mas ainda há tanto chão sob essa paz esgazeada e nodosa que não é paz, é quase como o reflexo dos pecados do mundo nas contas de vidro do terço da mulher que, de joelhos, reza todas as tardes da boca para fora, é algo faltando, uma coisa mal expiada, fermentada, um jeito subalterno de ser feliz. O que, de fato, acaba não sendo jeito algum, acaba sendo só mais uma dolorosa iminência, e é aí que nos falta o ar porque a superfície se escondeu além das nossas, das suas narinas trôpegas, eu não me afogo nessa ausência, então você decide se vem comigo ou não – mas decida agora pois o instante seguinte não pode esperar. Porque eu guardo dentro do peito um lugar que até para mim é obscuro e onde cabemos os dois mas eu não vou pedir que você venha, eu não vou pedir nada, é a sua vez de cortar os pulsos e perceber que a dor não mata nem cega, tudo se refaz. É a sua vez de rasgar as próprias roupas e se cobrir das próprias nódoas e descobrir que elas já lhe não servem e sequer mascaram as suas aflições, elas apenas ditam roucas e obsoletas tendências, elas acanham e mutilam a sua necessária e mais íntima nudez, mas tem de ser agora. Tem de ser agora, que o instante seguinte não pode esperar. Eu poderia, eu posso, carregá-lo nos meus ombros quando você desfalecer de cansaço nesse caminho que é longo e demais acidentado, eu poderia, eu posso, subverter essa insegurança queimosa que lhe fere a boca de bolhas e não o deixa falar mais alto que a inércia. Mas sentar aqui nesse chão atapetado de juízos-perfeitos inodoros como flores de plástico, isso eu não poderia, não posso, é insalubre. É como correr em volta do passo em falso alheio, é estéril. Eu não respiro esse cheiro artificial de dia que se esconde supersticioso sob os degraus cobertos de pó por medo de estilhaçar o espelho e ferir-se todo com os cacos da própria imagem há tempos banida e enfim libertada, ainda prefiro meu peito rasgado sem dó, jorro vermelha e sangro até viver. Porque algumas delicadezas, na verdade, não passam de dissimuladas agressões.


segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Eu Hoje Passei Para Dizer "Bom Dia"

Oi.

Soundtrack: Adele - Chasing Pavements



Eu hoje passei para dizer “bom dia”. E não é que não haja mais nada a dizer, é que apenas tive vontade de bater na sua porta e interrompê-lo na leitura dos jornais ou no ritual de arrumar as fatias de pão na torradeira para dizer “bom dia” e, antes que você tenha chance de calçar os sapatos, ou de checar as horas no relógio da parede da cozinha pela terceira vez, ou de me olhar com cara de “que diabos você está fazendo aqui a uma hora dessas” eu digo: ouça. Porque eu passei para dizer “bom dia” mas eu, você conhece bem, nunca sei ao certo como dizer as coisas mais simples, essas coisas eu sorrio, ou assobio, ou as cometo indelicadamente com os cantos dos olhos e mordendo os lábios, você conhece bem. Não é? Você conhece. Então esqueça os ponteiros do tempo em meio à louça suja na pia e largue a desconfiança na calçada junto com o lixo da manhã, e ouça os meus gestos, ouça, me ouça olhar para você e falar pelos cotovelos assim, muda. Eu desisto de qualquer audácia que negue esse silêncio confessional portanto não olhe para a confusão que perpassa em cores estranhas pela sua cabeça, olhe para mim, para mim. Apenas para mim e para esse repente pontuado das vontades que antes secavam ao sol, eu as tirei dos varais antes que morressem e elas agora vicejam aqui dentro, você conhece bem. Não é? Você conhece.

Você conhece e, porque conhece, eu não preciso inventar uma maneira sã e razoável de verbalizar todas essas vontades que vicejam aqui dentro e irrompem um tanto quanto inapropriadas, mentira, eu não verbalizo porque, mesmo que quisesse, eu não saberia ou não quereria, tanto faz. Eu não tenho esse dom. Entende? Eu não sei dar nome ao que sinto sem que a minha língua se choque suicida contra a primeira vírgula, sem que os meus dentes imediatamente arranquem pedaços da minha voz. E eu não sei se isso é certo ou se é errado, se é bom ou se é ruim, sei que isso sou eu e até hoje não encontrei um jeito mais fácil de ser eu, um jeito que não seja essa combustão de sentimentos, eu não sou cerebral, o que sou é isso que está na sua frente – um emaranhado de intenções que saltam afoitas pelas polpas dos meus dedos em busca de tatear o sorriso que você está contendo por trás dessa amenidade quase formal e minuciosamente calculada, homem, eu também conheço você. Eu conheço e você me conhece, e você sabe que eu hoje passei por aqui para dizer “bom dia” mas que eu não vim dizer “bom dia” coisa nenhuma, que essas minhas pernas fincadas diante da porta estão esperando que você apenas cruze a linha, e que esse silêncio, olhe para mim, esse silêncio na verdade está gritando “que diabos você está fazendo aí parado do lado de dentro enquanto aqui fora o mundo espera pra ser seu e eu também?”


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Adele é uma jovem cantora britânica cuja voz forte chamou a atenção do publico e da crítica, levando a moça ao topo das paradas britânicas já no álbum de estréia, lançado em 2008 e intitulado 19, do qual faz parte a faixa Chasing Pavements. Entre suas influências musicais estão nomes importantes como Etta James, The Police, Marvin Gaye e Billie Holiday.

A vocês, meus queridos, bom dia - seja dia ou noite!

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Um Passo

Entra.

Soundtrack: Russian Red - No Past Land



Tu nem sabes, mas já te dei tudo que era meu.

E em troca eu quis apenas esse eco torto de felicidade que me alisa a pele estremecida e pelo qual quase deixo de respirar, me arrepio inteira, viro apenas um corpo quieto guardado sob a mão invisível feita disso que eu sinto e que entra pela minha boca e sai pelos meus olhos e por qualquer gesto meu rasgado no espaço, qualquer gesto meu me abandona e vira teu, eu já te dei. É tudo tão simples e silencioso, e tudo grita por dentro, e o que posso fazer? Eu deixo... tu nem sabes, mas enquanto ainda estás aí do lado de fora, parado, esperando que eu te abra a porta e diga qualquer coisa nessa língua muda que tu entendes tão perfeitamente e que tão perfeitamente nos cabe, eu já não estou aqui, já me transportei para o lado em que não há aqui nem lá - em que unicamente há uma história para dois em qualquer lugar para onde quer que se virem os meus pés afoitos, pequeninos pés sem memória buscando reinventar o chão. O calor que eriça teus pelos sob as gotas d’água também rodopia entre meus dedos numa felicidade corrediça e quente, e sei que estás aí sorrindo e eu estou aqui sorrindo e quase hesitando mas é tarde, eu já te dei tudo que era meu inclusive aquele passo que restava pesado e desinibiu-se e virou destino cumprindo-se em linha reta, tudo que era meu eu já te dei. E sei que estás aí parado, molhado, esperando, e que a chuva que cai sobre a tua cabeça é nada, como é nada tudo o que não é chuva, nem tu, nem eu, nem essa porta se abrindo para o que eu não sei o que é mas quero muito saber, então entra; vem. Eu tremo, sim, mas não é frio, é por não me restar nada que eu não queira absurdamente te entregar, toma.

Toma.

(Baseado em fatos inesquecivelmente reais)

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A espanhola Lourdes Hernández, mais conhecida como Russian Red, canta um folk suave e lânguido em inglês e vem ganhando espaço nas paradas européias. I Love Your Glasses, o álbum de estréia, traz arranjos bonitos, muito violão acústico e um clima summer of love acentuado por sua voz aguda, ao mesmo tempo macia e vigorosa, de cantora dos anos 70. Pra ser ouvido do início ao fim.





segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Inviolável Humanidade

Demasiadamente, embora.

Soundtrack: José González - Heartbeats



Entre todas as estranhezas que me fizeram te amar, eu talvez tenha amado demasiadamente mais a mais banal – aquela de cuidar a urgência como se fosse uma tua velha amiga que se achegava a ti mordendo o lábio provocativa, e que quase infantil deitava-se no teu colo e abraçava-se ao teu pescoço e se confundia inteira contigo a ponto de não se saber onde um começava e o outro terminava, a tua urgência sempre foi uma fêmea voraz. Eu, por isso, talvez, a tenha amado. Eu talvez a tenha amado porque ela te possuía, era incontida e maior que tu, era ela quem falava pela tua boca quando a tua língua se descontrolava e galopava frenética em frases despedaçadas por pequenas pausas delituosas – e, nesses silêncios pontuais, era a tua meteórica paciência pensando, pesando-me, eu sabia, eu sempre soube. Eu sempre soube que a tua pretensa força era o que te fazia sofrer. O que eu não soube, e sequer poderia – porque o caótico desalinho entre nossas expectativas nos fez verter dias afins em tempos antagônicos – é que o teu pretenso sofrimento era também o que te fazia forte.

Eu talvez tenha amado demasiadamente a mais banal, e amei em grande parte porque me assustam essas coisas raras que desaparecem com a mesma velocidade com que despontam e deixam esses ecos vazios na memória atônita, essas ranhuras cicatriciais que nunca fecham porque estamos sempre a esgarçá-las com os dedos sujos – de saudade, de desespero ou de algum outro desejo vão escondido sob as unhas, esperando a hora de se disseminar febril. Os meus dedos não conhecem sossego, a minha pele nunca está intacta, eu nunca estou intacta e, de fato, quem está? Eu demasiadamente amei a mais banal embora todas as tuas estranhezas me fizessem sentir uma mulher comum, mas extraordinariamente comum como nunca houve outra, eu era extraordinariamente única porque as minhas próprias estranhezas sobressaíam entre o que eu acreditava ser o meu melhor, embora não fosse – o meu melhor é o que veio depois, o que rasguei na carne quando num acesso de fúria espantei das vértebras as falsas virtudes que, como traças, me roíam os traços mais reais.

Os traços mais reais – embora essa vida seja uma ficção e a verdade se esconda em um canto inviolável da humanidade que nos cumprimenta zombeteira diante do espelho quando esquecemos a porta aberta.


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José González é sueco, filho de argentinos, canta em inglês e sua música lembra o que seria um folk à la Nick Drake com João Gilberto. Suas influências contemporâneas são Elliot Smith, Joe Pernice e Kings Of Convenience, mas sua voz evoca a de cantores clássicos da história da música pop como Mark Eitzel e Mark Kozeleck. A faixa Heartbeats integra o álbum Veneer, lançado na Suécia em 2003, ponto de partida para que González ultrapassasse a fronteira musical da Escandinávia e ganhasse as paradas da Europa.

Quanto ao texto, não custa enfatizar: FICÇÃO. E não tentem se - ou me - convencer do contrário!


segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Aquele Outro Caminho

Quando foi? Eu nunca aprendi.

Soundtrack: Ingrid Michaelson - Breakable



Estou estranhamente calma, tão diferente de antes, quando cada passo meu beijava o chão como um gemido enviesado de dor. Não há falta. O que há eu não sei, talvez de fato nem haja nada para saber e isso não é ruim, é como cair em um precipício em slow motion: não dói nada, não dói, nem cansa. E até já me desafeiçoei àquela mania de catalogar sentimentos por cores porque eles escorregam uns nos outros dentro do coração trespassado por uma flecha desenhado a dedo no espelho embaçado do banheiro, mas lembra, eu te havia mesmo dito que um dia tudo perde a cor - e tu, talvez, não me tenha compreendido porque falei com os olhos marejados de sussurros mas sem arriscar palavra, enquanto teus olhos injetados de algum sentido que eu não alcançava lambiam o dia volátil estendido diante da outra janela. Eu te havia mesmo dito que não precisava de ti para absolutamente coisa alguma mas que essa completa e lúdica inutilidade tua na minha vida só me fazia te querer mais, e era tão pateticamente bom, e foi nessa hora – tenho certeza – que todas as coisas que eu pretendia verbalizar se acotovelaram indóceis na ponta da minha língua e viraram um soluço fosco, e por isso eu disse apenas “me ajuda a te entender”. As perguntas que escondi sob o colchão permanecem lá, as respostas eu não sei; talvez perambulem sem se descobrirem respostas naquele outro caminho, o de antes, o que era meu e teu quando éramos tu e eu, e quando fomos tu e eu? Porque este caminho, este caminho atropelado por pequenos descuidos, este é ou meu, ou teu, ou da mulher que escarra esperanças viciadas na esquina de um amor que não veio, pobre mulher, quem sabe eu tenha te livrado de um mal maior. Porque essa vida, esse lapso de vida que nos ladeia hoje, é uma viela estreita, quase estrangulada, e não cabemos lado a lado sem nos ferir mutuamente – e aquele atalho que um dia risquei com os cabelos no travesseiro enquanto revisitava teu rosto antes de dormir se perdeu, desnorteava um pouco cada vez que outra saliva nutria tua boca e te acomodavas entre outras pernas, e que as minhas próprias pernas conheciam outras posses e eu alimentava ao seio outras sofreguidões, eu nunca aprendi a te ler.

Eu nunca aprendi. Quando foi que nos vimos pela última vez?


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Ingrid Michaelson é uma cantora e compositora nova-iorquina que faz um som indie-pop/folk e tem músicas nas trilhas sonoras de Grey’s Anatomy (olha aí os seriados médicos outra vez) e One Tree Hill. A faixa Breakable faz parte do álbum Girls and Boys, lançado em 2007.


sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

A Última.

Quando o que não se diz é o que fala mais alto.

Soundtrack: Noa - Eye in the Sky



Eu gostaria que esta fosse uma carta de amor. Gostaria de te escrever para contar da minha vida; para dizer que ontem entrei naquela velha loja de discos – aquela ao lado da padaria onde compraríamos pães de queijo e biscoitos de nata nas manhãs de sábado e domingo – e ouvi incontáveis vezes a música que escutaríamos juntos e que talvez embalasse nosso sono, nossas tardes de preguiça fazendo nada, fazendo tudo. Ou para dizer que, entre duas páginas do meu livro preferido, pude ver – em meio aos parágrafos e aos hiatos brancos, tímidos, do papel escorregado sob a negra tinta – as entradas do filme a que assistiríamos na noite em que o carro pifaria sem gasolina na esquina da tua rua e caminharíamos até a tua casa debaixo de chuva, de mãos dadas e rindo, brincando de chutar as poças de água, e estaria frio, muito frio, e nos aqueceríamos entre beijos macios e lençóis quentes, entre beijos quentes e lençóis macios. Para, talvez, te contar do meu emprego novo ou que me mudei outra vez – agora para a tal casinha pequena por fora e grande por dentro, com teto alto e janelões azuis encimando as jardineiras, do jeito que eu sempre quis – e que os móveis, surpreendentemente, chegaram na data prevista, uma segunda-feira, e que não precisei passar o resto da semana fazendo as refeições numa lanchonete embora não goste de cozinhar somente para mim.

Eu talvez te contasse que o cachorro enfim desistiu de esconder os chinelos inadvertidamente esquecidos pela casa e que, finalmente, as roseiras que plantei me deram alguns botões de rosa; vi essa manhã que haviam nascido, quem sabe se encorajem e virem flor – nunca soube quanto tempo levam para desabrochar, não sei se um dia ou dois, ou mais. Ou que o carteiro continua entregando minha correspondência na casa do vizinho – mesmo em novo endereço, algumas coisas nunca mudam. Ou que o médico indicado, naquele churrasco, pelo rapaz de óculos com cara de adolescente cujo nome não me recordo acertou em cheio no tratamento da minha insônia embora não seja neurologista ou psiquiatra, e sim cardiologista, e que não bebo mais tanto café. Ou que ganhei uma festa surpresa no meu último aniversário com direito ao bolo de nozes de que tanto gosto e velas assopradas num só fôlego depois de fazer um pedido, que não posso contar ou não se realiza e que eu, que tanto gosto de bolo de nozes mas não como doces, saí da dieta porque seria uma tremenda indelicadeza não provar um pedaço do meu próprio bolo de aniversário.

E nem sei quantas outras banalidades eu contaria; só sei que gostaria de não estar chorando dessa maneira enquanto te escrevo esta carta. E te escrever esta carta é tão doído porque, mesmo não sendo uma carta de amor, não deixa de sê-lo – e eu, que tanto te amei, e talvez siga te amando enquanto viver apesar de todos os amores que ainda virão, nem melhores nem piores, apenas outros amores com outras músicas e filmes e livros, e outras lembranças e nomes, gostaria de te pedir “fica”, mas não o farei. Eu gostaria que esta fosse uma carta de amor, mas esta carta – que nunca vais ler, pois a escrevo muito mais em mim do que para ti – é a maneira que encontrei de me despedir da parte tua que permanece comigo, pois nunca deixei que partisses completamente. E, agora, preciso que vás. Eu abdico do futuro que jamais teremos em nome de um presente que é apenas meu. A tua história já não cabe na minha; a minha história precisa voltar a caber em mim. Esta é a última carta de todas aquelas que nunca te enviei e que nunca lerás, a não ser no meu silêncio e nessa distância continental que se inscreve entre o que nunca nos dissemos, entre o que nunca faremos. Preciso que vás; eu fico – e, de certa forma, em outra direção, eu vou também.


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Um pequeno P.S. para o Sr. Anônimo que, nos comentários do post anterior, declarou que me adora mesmo com tudo que vem na mala (e eu espero que a "mala" não seja eu): a mesma curiosidade que matou o gato pode, fácil fácil, matar uma blogueira sem poderes adivinhatórios. Que tal voltar e revelar pra nós sua identidade secreta, hein? ;)

Ótimo fim de semana pra todo mundo!

E Edu, obrigada pela música :)


segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Primazia

"Deixe em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção, faça não
Pode ser a gota d'água..."

Chico Buarque - Gota D'Água


Soundtrack: Dionne Warwick - Walk on By



Eu te amei com todas as minhas forças e todas as minhas fraquezas. Escancarei a nudez da minha alma diante dos teus olhos, te entreguei meu corpo de dama e meu cio de besta. Confessei-te meus segredos, adulterei minha pouca razão e desalinhei-a para caber sem temores entre as tuas carícias. Sim, eu rompi com todas as minhas premissas, porque te amei – e, porque te amei, morri e vivi desse amor tantas e tantas vezes, e em todas as vezes cri que fosse a última e me surpreendi ali, continuamente morrendo e vivendo, continuamente morrendo e vivendo, continuamente morrendo e vivendo. Porque te amei.

E esse amor, onde ficou? Desalentado, esquecido atrás da porta, enquanto apagavas as luzes para reacender teus olhos em alguma esquina furtiva do teu labirinto de desejos, em algum encanto barato e fugaz. Perdido entre os cacos da última garrafa de vinho, um tanto ébrio, borrado ainda do violáceo dos teus beijos frios. Ressequido. Esse amor ficou vagando atônito, a passos pequenos, descrevendo círculos estéreis por entre os “não” que a tua inconstância deliberou cravar entre nós dois. Esse amor se desfez do abraço frouxo de amor que cinge uma inexistência e cruzou os braços – cruzou os braços. E amor de braços cruzados esquece de si, amor, ou se faz esquecer – porque vive de tempo presente, desentende, ignora o depois.

Esse amor não ficou, amor. Esse amor, aquele amor, se foi.

E tu? Por onde vais agora, sem vinho e sem esquinas?


segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Dos Amores. Dos Dias.

"O amor nunca morre de morte natural.
Morre porque nós não sabemos reabastecer sua fonte.
Morre de cegueira e dos erros e das traições.
Morre de doença e das feridas;
morre de exaustão, das devastações, da falta de brilho."

(Anais Nin)

Soundtrack: Carla Bruni - Qualqu'un m'a a Dit



Ele nunca disse que me amava. Nunca me disse, e também nunca perguntei – não porque tivesse medo da resposta, mas porque instintivamente a conhecia e isso fazia de qualquer prova verbal uma desnecessária redundância, então cada uma daquelas pequenas banalidades diárias soava como amor inequívoco e explicitamente declarado. Como quando me puxava os cabelos de leve para em seguida afrouxar os dedos e escorregá-los pelo meu pescoço, era amor que havia naquele deslizar de dedos. Como quando surgia à porta e ali ficava parado, mudo, e no olhar havia um misto de admiração e desafio e obscenidade carinhosa, e aquilo tudo invariavelmente terminava entre arquejos e suores entrelaçados repousantes na exaustão lânguida das nossas bocas ainda coladas uma na outra. Ou, simplesmente, como quando dizia meu nome – pronunciado em passeios demorados por todas as oscilações de tons, e eu tinha a nítida sensação de ouvir seu coração bater mais doce em cada uma delas. Ele era inteiro um mundo de coisas não ditas que se diziam por si mesmas e eu aprendera a ler naquele silêncio claro e eloqüente, eu embora oposta e dizendo amor com olhos e boca, e corpo, e todo o resto e a todo tempo, e era como se, a cada vez dito, esse amor se superlativasse dentro de mim.

E não sei se foi intencional – se foi justamente a perfeita simbiose entre o seu silêncio e a minha capacidade de traduzi-lo que me fez mergulhar na negação. Mas, naquela tarde, quando ele surgiu à porta – e o rosto que me fitava já não era o mesmo, como para ele já não era a mesma a mulher de pé à sua frente – percebi que era chegada a hora. E dessa vez fui eu quem não disse nada, simplesmente esperei. Foi a minha vez de ficar ali parada, olhando. Apenas e interminavelmente olhando. Porque não havia mais nada a fazer, e eu soube disso no momento em que o ouvi balbuciar meu nome naquela meia-voz reticente, naquele fio de voz. Era outro o bater do coração. Então, pela primeira vez, ele não me pôde olhar nos olhos – e nesse exato instante eu soube que, na cabisbaixeza do olhar que ineditamente evitava o meu, havia um murmúrio dolorido de despedida.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Carta Para C.

Dos invernos rigorosos.

Soundtrack: Jet - Look What You've Done



Hoje acordei sem vontade de trocar as flores na janela. Vejo-as murchar e perder o viço, percebo seu olhar quase como um clamor; ainda assim, permaneço impassível diante da vida que lentamente se esvai diante de mim.

O jardim está cheio de mato, o verde daninho se confundindo com os amarelos, azuis, carmins e violetas que, um dia, fizemos germinar com o calor de nossas mãos. Há beleza mesmo nessa desordem – a mesma desordem que se insinua no meu espírito como um ladrão à noite desde que seu sorriso se transformou em simples e desconcertante lembrança. É a primeira primavera sem borboletas. E, dentro de mim, esse inverno teimoso e interminável me gela a alma.

Desta janela posso observar as roseiras. Não há mais perfume; o aroma fresco e inebriante, aquele aroma adocicado que nos arrebatava para além de nossos sentidos, se foi. Resta um rubor pálido nas pétalas ressequidas pela tua ausência. Teu olhar contemplativo, tua inquietude, tua melancolia adoravelmente única eram o orvalho fértil que as fecundava de amor.

Os espaços parecem multiplicados por dez, por mil. Meu corpo é como um templo vazio: belo, suntuoso, de existência inútil diante do não te haver a me habitar. Que faço com todas as horas, e sonhos, e tesouros que guardei para ti? Que faço com esse jardim que era teu muito mais do que meu, visto que cada botão de flor era nada mais que um sorriso teu a brotar em mim, eu, que sempre fui terra sequiosa de tuas sementes?

Não irei à tua procura. Tampouco espero que retornes. És agora como a sensação leve e palatável de um delírio. És agora minha contradição, minha ausência mais presente, a realidade perfeita como um sonho, o sonho imperfeito como a realidade. As flores na janela, o jardim, a primavera, as borboletas, o inverno, o inverno, o inverno. Não espero teu retorno. Apenas espero.


Publicado originalmente no extinto blog Cotidianidades
em setembro de 2007. Ficção. Eu-lírico, gente, só ;)

terça-feira, 3 de junho de 2008

Caminho

Carpe Diem.

Soundtrack: Frou Frou - Let Go




Quando o dia lhe sorriu, ela soube: era chegado o tempo de colher nos lábios o gosto das risadas semeadas durante as longas noites adormecidas em silêncio. Abriu os olhos, cravou os sonhos na palma das mãos abertas para acariciar a manhã. Esqueceu-se das beligerâncias; as casmurrices, as trancou na gaveta de miudezas sem uso e jogou a chave fora. E o riso saiu lépido, batendo portas e escancarando janelas, agitando os varais, pendurando-se nos cílios e nos cantos da boca úmida de acordes inventados.

Enfeitou-se de olhares de seda e voz de veludo, descalçou os pés e os motivos para pisar macio as rotas do pensamento. Misturou-se às gotas de música que sapateavam em passos desmanchados sobre os braços abertos, ofereceu o rosto à vontade mais próxima, fez-se oceano de compassos – seus, inéditos, vibrando no ritmo daquele corpo quente embalado de cor.

Despediu-se das velhas lembranças com um beijo de gratidão, abraçou-se às notas nascentes no seu coração de gente-quase-nuvem e desceu a rua, bailante por dentro, ao som do sol que girava vermelho na sua saia rodada - ouvinte de cores, amante dos próximos passos, as pernas prenhes de estrada. Sem “entretantos”, que a volta é caminho sem ida; era acordada que sonhava.


E hoje tem novidade no Espasmos de Riso! Tem a estréia do novo layout e, como não poderia deixar de ser, um post da Anne explicando o porquê dessa mudança. Esperamos vocês por lá para um café fresquinho na casinha reformada, acompanhado de boas gargalhadas!

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Correspondência

R.S.V.P.
Soundtrack: Rita Lee - Cartão Postal


Quando aquele cartão escorregou pelo vão da porta – sem remetente, mensagem ou assinatura – a intenção primeira foi largá-lo ignorado em meio à confusão de papéis sobre a mesa. Ela então não sabia que algumas pessoas tinham o poder de, disfarçadas de postais, cruzar o espaço para se materializar diante de outras; se deu conta disso quando, ao reter nas mãos aquele pequenino retângulo de papel, se surpreendeu com a nítida sensação do corpo arrepiando-se, solicitado pela carícia inusitada das mãos do outro. Sorriu diante da sua momentânea ingenuidade – ele, que tanto já se metamorfoseara em música, intenção e memória, por que não haveria de chegar até ali sob aquela forma tão insuspeita e, ao mesmo tempo, tão incontestavelmente característica? Estava lá, se impondo sobre o que, à primeira vista, era não mais que uma reprodução da paisagem do Jardim Botânico, os detalhes inconfundíveis lhe saltando aos olhos, tomando corpo, criando covinha no queixo, barba por fazer, camiseta branca, tatuagem no peito. Sardas, muitas sardas, nos ombros, nas costas, como pequeninos beijos fincados na pele. A risada contida e o meio-sorriso. Despropósito dos despropósitos, mas perfeitamente possível.

Observou o cartão com minúcia desapressada, deixou que os dedos deslizassem com carinho pela superfície lisa, uma, duas, três, muitas vezes. Nenhuma frase, nenhuma palavra. Desnecessárias, ambas; o que havia de ser dito, fora dito naquela fotografia – uma cidade, um destino. Sem carimbo do correio. Sem intermediários, entremeios, entrelinhas, subterfúgios, subliminariedades, mas com endereço certo: ele. Sentou-se diante do computador, ensaiou escrever um e-mail, desistiu logo em seguida, tantas coisas queria dizer e as palavras parecendo inapropriadas, insossas, furtivas. Então rabiscou um bilhete imaginário, perfumou-o, beijou-o demorada e cuidadosamente – para que nele ficasse o desenho dos lábios pintados com o batom preferido – e lançou ao vento a inusitada correspondência onde se lia, em letras caprichadas: “Sabe vontade? Além.”

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Movimento Rápido dos Olhos

Das realidades sonhadas.

Soundtrack: Sonic Youth - Superstar


Deitou seu corpo pequeno de mulher sobre a cama atapetada de roupas despidas e lembranças úmidas, desprovidas de pudor ou culpa. De olhos fechados, deixou-se acariciar pelo cheiro dele, cheiro que ficara fresco, atrevido, nas suas pernas e braços, transfigurado em dedos, e afagos, e lábios... o beijo foi inevitável, a língua seguiu tácita e desimpedida tecendo rastros sobre a quentura da pele já ferida de vontades, indo segredar seu gosto rubro em orelhas e boca e nas sinuosidades ofegantes da respiração entrecortada pelas palavras nascidas naquele silêncio de comunhão.

Ele a chamara furacão, ela era brisa se desmanchando naquele peito de ausência tão presente. E havia a necessidade veemente e imediata de se entregar à urgência do corpo que emergia da quietude da noite para, incontido e crescente, apossar-se do seu. Havia a necessidade, e ela não se opôs às mãos imaginárias que vorazes a alcançavam inteira, nem se furtou ao seu ímpeto; ao torpor daquela fúria doce submeteu-se obediente, lânguida, as pernas se entreabrindo submissas, caminho e destino que eram do seu desejo.

Ele a fez sua num possuir de corpo todo, entre membros confundidos e a agonia de prazeres entrelaçados. Exausto, tomou-a nos braços, lhe acariciou o ventre com os dedos ainda trêmulos; a qualquer-coisa dita ao ouvido num sussurrado preguiçoso a fez sorrir. Então aconchegou-se-lhe ao seio e retornou para aquele peito inteiro morada sua. Ela virou-se de lado, se abraçou espreguiçante ao travesseiro e adormeceu. Um beijo invisível lhe veio pousar sobre o suor tranqüilo da face.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Um

"Tu porém, terás estrelas como ninguém...
Quero dizer: quando olhares o céu de noite,
(porque habitarei uma delas e estarei rindo),
então será como se todas as estrelas te rissem!
E tu terás estrelas que sabem sorrir!
Assim, tu te sentirás contente por me teres conhecido.
Tu serás sempre meu amigo (basta olhar para o céu e estarei lá).
Terás vontade de rir comigo.
E abrirá, às vezes, a janela à toa, por gosto...
e teus amigos ficarão espantados de ouvir-te rir olhando o céu.
Sim, as estrelas, elas sempre me fazem rir!"

(Aintoine de Saint-Exupéry em O Pequeno Príncipe)

Àqueles cuja amizade me faz crescer a cada dia.
Amo. Infinito.



Buscou-se ainda uma vez mais no coração outrora seu, que agora era do outro; viu no rosto inteiro sorriso-olho-imensidão-azul a posse de que já não dispunha, que fora dada de vontade própria e descalçada de reservas – e por que haveria de retomar para si aquele tolo, insensato coração que, assombrosamente, tão feliz batia acolhido em peito alheio? Deixou que ficasse lá, que um dia haveria de voltar – no fundo não o querendo mesmo novamente consigo, tão bonito era olhar para si e se encontrar em outra gente.

Tão bonito. Tão bonita, tão bonita aquela existência híbrida. Partira-se ao meio, o coração lhe saltara inopinadamente das mãos indo parar naquele outro ser que se escancarava afeto, virando coisa a princípio coexistida e logo depois inteiramente abdicada, tamanho o aconchego dos braços abertos da alma destinatária. Confiança desinibiu-se, entrelaçada nos dedos da alegria enfeitada de cumplicidade irmanada no amor. Tão grande e irmão amor que se fez soar individido, neste peito e naquele – e o que, outrora, fôra um, era agora parte: metades viventes uma na outra. Corações trocados, transfusão de vida. Caminhar sincronizado, passos enlaçados de amizade pura e simples. Notas consoando inteiras num sereno e retumbante bater em uníssono.


P.S.: queridos meus, tem postagem fresquinha da Anne no Espasmos de Riso - um "causo", digamos... de urgência urgentíssima... quase um alerta vermelho pra quem gosta de chocolate Charge... não deixem de conferir. Beijos a todos!

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Sete Segundos

"Era como o som dum sino que,

de vibração em vibração, sobe do vago ao apogeu. "

(D. H. Lawrence em O Amante de Lady Chatterley)

Ao som de Elliot Smith - Between the Bars

Quando aqueles dedos entrelaçaram-se nos seus cabelos – a princípio hesitantes, confusos, quase a desculparem-se pela invasão súbita e deliciosamente não resistida – o corpo todo estremeceu esparramado em êxtase, macio, como os fios a se impregnarem do cheiro amadeirado daquela mão poderosa; a cabeça, surpreendida pela repentina sensação de repousar nos braços de tão suave toque, derreou-se mais e mais sobre a languidez encantada daquela carícia inesperada.

Permitiu-se encontrar, submissa, pelo dedilhar deslizante a lhe buscar, vez ou outra, os ombros displicentemente resguardados pelo tecido fino da blusa, já completamente entregue à mão que escorregava, sorrateira, enrubescida por ousadia crescente, para a confluência de seus desejos. A cabeleira vasta, densa, assim tão subitamente penetrada, espreguiçada inteira sobre a pele pulsante do outro, ávida daquele contato tão novo e, a despeito disso, tão irracionalmente vital, derramava-se obediente e desapressada por sobre o encosto encarnado da poltrona, rasgando o espaço como um par de olhos em súplica. Nem viu-lhe o rosto, nem viu-se em outro instante a não ser na palma da mão daquele carinho-posse, posse-carinho, corpo e coração sabendo o que era, razão não querendo saber, sintonizada no desalinho dos cabelos dançantes naqueles dedos como encaracolada e castanha ventania.

Deixou-se ficar ali, soçobrante no carinho genuíno e intenso, voluntariamente subjugada pela intimidade despretensiosa nascida de tão simples gesto; até que, em um movimento imprevisível de audácia involuntária, não mais que um dedo pousou-lhe beijo leve na nuca – e o arrepio que se seguiu a esse sutil contato lhe abraçou o corpo inteiro de forma tão violenta, que os músculos todos se contraíram em um espasmo único de indescritível prazer, e os olhos se fecharam umedecidos de larga e confessa ternura. Virou-se em vontade, e vontade tamanha que se impôs sobre a lógica: ali permaneceu sonho interminado, dona de um universo particular e conhecido apenas seu, carícia jamais se desfazendo, olhos jamais se abrindo, sentimento todo do mundo nela enredado, fio a fio atados no sempre, e quem dirá que existe o sempre. E quem dirá que não existe.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Mosaico


Porque as amizades são assim.
Nascem aos pedaços,
vivem aos instantes,
e existem
existências cosidas de detalhes e memória.


Flores. Girassóis. Se eu plantar a semente, será que nasce uma cerejeira? Sorvete, bombom sonho de valsa, doce de leite, pêssego. Outras delícias.

Asas do Desejo. Vou desenhar você. Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças. Tudo bem. Desenhos. Desenhos. Desenhos. Não consigo dormir. Música. Imagem. Música. Poesia. Música. Neruda. Música. Vou plantar um pé de cereja pra nós dois.

Violão de três cordas. Leonor. With or Without You. Não discuto com doida. Somos assim, sempre cuidando um do outro. Vou enfiar o dedo no seu nariz. Conversa. Música. Fotografia. Música. Choro. Música. Wish You Were Here.

Tatuagem. Espoleta. Sorrisos.Você tá estranha hoje. Brócolis. Cevada. Se adivinhar te dou um doce. All Star. Meu sorriso é o teu sorrindo. Caneca de porquinho. Oinc oinc. Infinito. Infinitos de infinitos.

Jim Morrison. Por que ainda fala comigo? Mike Patton. Quero sumir. David Gilmour. Desmantelada. Robert Plant. Você tá bem? James Hatfield. Se eu fosse um doce, seria de quê? Joey Ramone. Ai. Eddie Vedder. Pára.

Você tá cheirando meia. Beijos muitos. Não há falta na ausência. Beijos outros. Essa música me rasga. Beijos tantos.

For every minute you’re angry you lost 60 seconds of happiness. Quintana. Te pego, dedo no nariz e chinelada. Cachoeira. Chata. Churrasco. Banho + música = Terapia. Nunca estou ocupado pra você. Sorrisos que não cabem. Te gosto. Você não existe. Senti sua falta. Senti sua falta. Senti sua falta.


Hoje tem postagem também lá no Palavras para Aquecer. Tem também postagem nova e cantante no Espasmos. E tem eu, todo dia 25, com conto inédito no site Novas Visões - convido o pessoal pra passar lá e conferir.

Beijocas!