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segunda-feira, 9 de setembro de 2013

A Cultura do Jeitinho

Dia desses, em meio a uma polêmica suscitada por uma discordância entre condutas profissionais, ouvi de uma colega de trabalho a assertiva “pode ser ilegal, mas não é imoral”. A discórdia que deu origem às discussões era, basicamente, o quanto um determinado hábito, arraigado há muito e perpetuado a fim de facilitar algumas coisas, pode ser nocivo mesmo que sua intenção seja dar um jeitinho de resolver eventuais problemas. Passei dias matutando a frase da moça. E não consegui chegar a outra conclusão senão esta: em tudo se pode dar jeito – mas nem tudo se resolve dando um “jeitinho”.

Diz-se que o Brasil é o país do jeitinho – e é verdade: dá-se um jeitinho para fazer um favor, para sair de um aperto ou, mais frequentemente, em causa própria. Há quem dê jeitinho por compulsão – de fato, deve haver quem seja viciado em jeitinho. Não se sabe como começou, mas o jeitinho virou uma coisa tão tradicional para o brasileiro quanto a feijoada dos fins de semana, a camisa verde e amarela da seleção ou errar a letra do Hino Nacional. Quem renega o jeitinho é chato, caxias, maniqueísta. Quem pratica é querido, esperto, prestativo. Fazemos parte de uma cultura na qual quem se nega a dar um jeitinho nas coisas frequentemente é interpretado como disfuncional e antipático. O jeitinho brasileiro é conhecido mundo afora. Quem tem DNA brazuca faz, e isso tem seu lado bom – o jeitinho brasileiro é uma das maiores expressões da criatividade que nos permite dar a volta por cima em situações altamente desfavoráveis, e isso é necessário e saudável, e tão automático que, embora seja quase sempre uma atitude lúcida, às vezes acontece de maneira até inconsciente. O lado ruim do jeitinho é que, cada vez mais, se cruza uma fronteira delicada quando a prática deixa ser exceção para se tornar a regra: seja por comodismo, viés de planejamento ou porque “isso aqui não dá nada”, entre jeitinhos e “jeitinhos”, o que é lícito e ético, e o que deixa de ser?

Dar um “jeitinho” – assim mesmo, entre aspas e com jeitão de gambiarra – não é simplesmente feio. Soltar um pum e colocar a culpa no cachorro é feio. Quando, ao dar um “jeitinho”, há a intenção de obter alguma vantagem, paralela ao fato de que alguém, direta ou indiretamente, em diferentes escalas, arcará com o prejuízo – seja financeiro, moral ou emocional, consciente ou não – o “jeitinho” deixa de ser inócuo e vira uma praga. Senão ilegal, no mínimo, imoral. Sendo assim, não há diferença entre quem sonega impostos ou o centavo de troco daquilo que custa 1,99, ou entre aquele que chega atrasado e fura a fila para ser atendido primeiro e quem rouba no peso do quilo da cebola, ou quem superfatura nota fiscal, ou quem adultera atestado documentos, ou quem finge doença pra passar uns diazinhos em casa. Dá um “jeitinho” quem faz gato na rede elétrica, quem rouba o sinal da tevê a cabo do vizinho, quem delega suas responsabilidades a terceiros com o objetivo de tirar vantagem. E dá um “jeitinho” quem se acumplicia com o jeitinho alheio, mesmo ciente de que sempre haverá alguém para pagar o pato. Ninguém conseguiu, até hoje, foi dar um jeitinho para acabar com o “jeitinho”. E, embora tantas discussões, cada vez mais calorosas, a respeito de moral e ética, a prática segue inversa à teoria.

Diz-se que o Brasil é o país do jeitinho – e é verdade. O que não quer dizer que, individualmente, o brasileiro não tenha solução: aquilo que praticamos no dia a dia e o quanto somos capazes de nos portar corretamente quando ninguém está olhando dá o tom de quem realmente somos. Que o jeitinho brasileiro, um dia, deixe de ser sinônimo de gambiarra e passe a ser visto como uma das nossas qualidades mais notáveis. Até lá, o jeito é praticar o desapego do tal “jeitinho” e demonstrar que sabemos arrumar a casa sem jogar a sujeira debaixo do tapete. Porque pode até ser que ninguém saiba que ela está lá – mas sempre existe um dia de ventania, e aí...


segunda-feira, 21 de abril de 2008

Milagreiro

"Um dos maiores milagres de Deus é permitir
que pessoas comuns façam coisas incomuns."

(H. Jackson Brown)

Soundtrack: Jeff Buckley - Hallelujah*


Ninguém jamais soube ao certo qual a origem daquele menino. Não veio de lugar algum; apareceu, apenas. Foi Zé da Pedra quem o encontrou ali, nas proximidades da Pedra do Arco, brincando de enterrar os pés na areia sem se importar com a madrugada fria anunciando o nascimento de mais uma manhã, o corpo resguardado somente por uma bermuda rota de chita. O velho pescador não entendia como uma criança tão mirrada podia suportar assim o frio se ele, homem feito e acostumado com intempéries, sentia doerem os ossos com aquele tempo terrível. Zé da Pedra aproximou-se do pequeno, perguntou-lhe o nome. O menino, alheio, continuava a brincar na fina areia branca. O pescador insistiu; o garoto buscou com o olhar os olhos do velho, o mutismo se transformando em um sorriso doce e desconcertante, sorriso de quem é imune aos males do mundo, invadindo o coração do homem como uma lufada de serenidade branda e sem pressa. Zé da Pedra observou cuidadoso que o menino tinha o corpo úmido; preocupado, decidiu levá-lo para casa e deixá-lo nas mãos de dona Teresa, até que um adulto aparecesse para buscá-lo.

Dona Teresa o recebeu como a um filho, o menino era um anjo, o sorriso tranqüilo pairando no rosto feito maresia. Mas estranho, não falava sequer uma palavra, apesar de compreender absolutamente tudo que lhe diziam. Ainda mais estranha era sua capacidade de se fazer entender apenas com o olhar, suas maneiras delicadas, sua serenidade inexplicavelmente contagiante... a mulher arrumou-lhe roupas e um lugar para dormir; como os dias se passassem sem que ninguém surgisse à sua procura, Zé da Pedra e dona Teresa não viram mal em ficar com ele, a quem já havia se apegado irremediavelmente. Porque não sabiam seu verdadeiro nome, e porque sua aparição se dera justo no dia desse santo, passaram a chamá-lo de Jerônimo.

Jerônimo era o sol que aquecia o casebre do pescador e sua esposa. Acompanhava o velho Zé da Pedra todas as manhãs até a Pedra do Arco e aguardava seu retorno à tardinha. Permanecia sentado sobre as rochas, observando os barcos de pescadores em seu balé sobre as ondas; às vezes fechava os olhos e, como que absorvido pelo cheiro do mar, parecia hipnotizado por uma espécie de transe. Foi assim que dona Teresa o encontrou no dia em que descobriu que o menino mudo sabia cantar. E cantava bonito de se ouvir, bonito de se sentir... Cantava e seu canto ecoava pelo mundo levando consigo a pureza da alma do menino. Dona Teresa o ouvia estática, silenciosa, entre lágrimas. Ele calou, abriu os olhos, sorriu para ela, a envolveu em um abraço terno. Voltaram para casa e as palavras eram desnecessárias.

As coisas estavam diferentes desde que Jerônimo chegara, dona Teresa agora percebia. Os homens voltavam do mar com as redes transbordantes de peixe; há tempos ninguém caía enfermo, as desavenças, outrora corriqueiras, faziam parte do passado. As crianças nasciam saudáveis, as mulheres tinham bons partos, os homens andavam apaziguados. Até o tempo, tão atroz naquela época do ano, subitamente se transmutara. Diariamente Jerônimo presenteava a vila com sua voz encantada – e era ele, dona Teresa tinha certeza, o responsável por aquela enxurrada de bênçãos. O dom do menino igualmente não passara despercebido aos demais habitantes do povoado – as pessoas afluíam à casa de dona Teresa à sua procura, muitas das vezes apenas para serem tocadas por ele. Seguiam-no até a Pedra do Arco para se embriagarem com seu canto feiticeiro – e choravam diante dele, se abraçavam uns aos outros, sentiam o amor fluir por entre seus corpos de gente crédula.

Houve dias a fio, porém, em que o pequeno silenciou. As redes retornavam vazias do mar; a discórdia insinuava-se sorrateira no coração das gentes, as moléstias ressurgiam impiedosas, tornando a castigar a carne de moços e velhos. O povo, possuído por uma irritação nervosa e insana, não compreendia o porquê daquele mutismo – e, em uma tarde de incontido desespero, invadiram a casa de Zé da Pedra em busca do menino milagreiro. Dona Teresa insistia em dizer que Jerônimo desaparecera, o choro lhe embotando a voz e as idéias, o nervosismo se agigantando diante da fúria dos invasores. E, de repente, o canto... o arrebatamento indescritível se apossando de suas almas através daquela voz devastadoramente bela.

Guiadas pelos sons as pessoas o encontraram na Perda do Arco, os olhos fixos no mar, os últimos raios do sol que se deitava no horizonte refletindo-se na sua tenra e alva pele de criança. Zé da Pedra fez menção de aproxima-se; o menino, com o rosto transfigurado por uma expressão de bondade infinita, sinalizou para que o velho pescador permanecesse onde estava. Um misto de medo, respeito e encantamento tomara conta daquela gente. O menino fechou os olhos e, instintivamente, todos os outros repetiram o gesto. E então Jerônimo cantou... doce, sublime como jamais havia cantado, sua voz lhes invadindo corações e mentes, mudando suas vidas para sempre. Durante uma fração incalculável de tempo permaneceram entorpecidos por aquele encanto; ao abrirem os olhos, porém, perceberam que o menino havia desaparecido.

Foram dias, semanas, meses de incessante e vã procura. Dona Teresa amofinou, quase morreu de tristeza; Zé da Pedra, melancólico, atracou o barco na praia e deliberou não mais entrar no mar. O povo da vila se uniu nas promessas, orações e nos desvelos com o velho casal. As coisas lentamente entravam nos eixos; as pessoas, aos poucos, percebiam a herança do menino. Era a solidariedade a semente que aquela criança havia plantado, e que só agora, na sua ausência, começava a dar os primeiros frutos.

Jerônimo jamais tornou a ser visto. Uns diziam que era anjo; outros diziam que era sonho. E aquela vila de pescadores jamais tornou a ser a mesma: seus habitantes haviam, finalmente, aprendido a se amar. A vida havia se tornado próspera, o mar era pródigo e farto, Deus os abençoara pela generosidade que agora era autêntica e gratuita. Quem passa por lá ainda ouve falar nos milagres do menino – e na doce voz que, todas as noites, acalenta o sono daquele povoado.


* Jeff Buckley (1966- 1997) foi um cantor, compositor e guitarrista norte-americano. Conhecido por seus dotes vocais, foi considerado pelos críticos umas das mais promissoras revelações musicais de sua época. Seu trabalho e seu estilo único continuam sendo admirados por fãs, artistas e músicos no mundo todo e, apesar da morte prematura, Jeff Buckley vem cada vez mais conquistando novos admiradores. "Grace" - o primeiro e único álbum de estúdio oficial e completo de Jeff Buckley, lançado em 1994, da qual faz parte a faixa Hallelujah, composta por Leonard Cohen em 1984 e considerada a melhor composição canadense da história - é constantemente citado como um dos melhores álbuns de todos os tempos.