27.1.18

LIVROS PARA DEITAR FORA

Por Alice Vieira
Confesso: não sou capaz de deitar livros fora.
De resto, eu pertenço a uma geração que tem muita dificuldade em deitar fora seja o que for. Por isso os objectos se vão acumulando e eu perguntando-me “o que é que faço a isto?”. Já pensei em fazer uma trouxa e ir vendê-los para a Feira da Ladra, mas os meus horários não me permitem ficar lá uma data de horas à espera de ver aparecer multidões interessadas em galhardetes, quadros com o brasão de juntas de freguesia de terras que nem sei onde ficam, frascos de perfume há muito vazios, amostras de tecidos, restos de lãs que nem para quadrados de mantas de patchwork já servem, etc.
Mesmo assim, de vez em quando tapo a vista com a mão, encho-me de coragem, e reúno sacos a abarrotar de lixarada, e venho colocá-los à noite ao lado dos contentores, não vá passar alguém que ainda lhes descubra serventia.
Mas livros é que não.
Livros não sou mesmo capaz.
O pior é que, para lá de receber muitos livros (os meus amigos pertencem quase todos ao ramo…), eu ainda sou uma compradora compulsiva! Compro livros porque são de autores de que eu gosto, ou porque li uma crítica que me entusiasmou, ou até — assumo…— porque têm capas que são um espanto… Mas às vezes, prometem muito e dão pouco.
Então, periodicamente, encho caixotes de livros que vou enviando para bibliotecas ou escolas: livros que sei que nunca mais vou reler, livros que tenho em várias reedições, ou até livros de que eu, pessoalmente, até posso não gostar mas entendo que outros amem de paixão.
Mas não é desses que estou a falar: refiro-me àqueles que não mereceriam (se eu fosse capaz…) outro destino a não ser o lixo. Tão maus, ou tão inúteis, ou tão fora de prazo que não me passa pela cabeça dá-los nem ao meu pior inimigo.
Nos primeiros tempos da revolução, quando, de repente, descobrimos que podíamos viajar para os países até então proibidos da Europa de Leste, era fatal: regressávamos todos de lá vergados ao peso de toneladas de volumes encadernados com todas as intervenções dos camaradas nos diversos órgãos de soberania dos seus países. E — requinte dos requintes! — muitos deles na língua original.
Lembro-me de ter tido de comprar um saco só para nele enfiar os discursos do camarada Jivkov, que me ofereceram na minha primeira ida à Bulgária.
Digam-me: o que é que eu lhes faço?
Contava o meu querido Alçada Baptista que uma das suas tias, ao ver-se confrontada com a pergunta de uma das criadas (“o que é que eu faço às listas velhas do telefone?”) terá respondido: “dê a um pobrezinho.”

Se calhar, vou seguir-lhe o exemplo. Tal como eu, ela também era de um tempo em que não se deitava nada fora.

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20.1.18

Alice Vieira regressa ao "Sorumbático"

Como já se percebeu, Alice Vieira retoma as sua publicações no "Sorumbático", onde já estão mais de 190 crónicas suas, a que se pode aceder clicando na Etiqueta "AV" existente em rodapé de qualquer uma delas.
A Alice tem também um blogue-arquivo onde se podem ver mais de 150 crónicas: as-madrugadas.blogspot.com

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O Carro Azul

Por Alice Vieira
Às vezes penso no meu velho carro azul e sinto assim uma saudade estúpida como se de alguma pessoa amiga se tratasse e não de um simples automóvel, velho de muitos anos, completamente a cair de podre quando, há muito tempo, não tive outro remédio senão largá-lo numa oficina de sucata. O meu carro azul participou activamente nos momentos mais importantes da minha juventude: carregou toneladas de propaganda nas crises académicas, foi cúmplice de paixões proibidas, transportou este mundo e o outro, ouviu discursos de cinema e de literatura, lamentos de jornalistas em começo de carreira, quando a censura cortava o sangue que tentavam fazer escorrer pelas veias dos seus textos — ou muito simplesmente angústias banais do dia a dia lisboeta no princípio dos anos sessenta.
O carro azul, no fundo, pertencia um pouco a todos que lá entravam, uma sala comum onde tudo se discutia.
No entanto, embora pertencendo a todos, o carro azul pertencia sobretudo ao Luís Feist, meu colega de Faculdade.
O Luís era meu amigo.
Muito meu amigo.
Tão amigo que era o único — mas absolutamente o único — a quem eu passava o carro azul para as mãos.
Bastava que, no meio do anfiteatro da faculdade de Letras, ele se sentasse ao meu lado e murmurasse “precisava que tu...” — para logo eu enfiar a mão pela carteira e lhe entregar as chaves. Nunca me disse para onde ia, nunca lho perguntei. À hora marcada o carro azul estava sempre diante da porta da faculdade, com um ar completamente inocente, como se nunca dali tivesse saído.
Por isso o meu carro azul também teve uma outra vida que eu não conheci, e terá sido cúmplice de outros sonhos, ouvido outras conversas, assistido a outros encontros e desencontros.
Durante todos os anos que se seguiram, muito depois de ambos termos largado a faculdade, sempre que eu encontrava o Luís o carro saltava para o meio das nossas conversas, como se falássemos de um parente comum, que agora raramente dava notícias. Acho mesmo que foi o velho carro azul que nos manteve amigos estes anos todos, sem necessidade de nos vermos ou de nos falarmos muitas vezes, separados pelas correrias da vida e do trabalho.
Mas quando nos encontrávamos, era como se ele tivesse acabado de me entregar as chaves do carro, e se preparasse para as pedir de novo na manhã seguinte. Por isso quando li no jornal a notícia da morte do Luís, não acreditei. Deviam ter-se enganado de certeza.
A esta hora deve ele andar no meu velho carro azul por esse mundo a matar saudades.
Se nunca me disse para onde ia, também não ia dizer agora.
Do livro de crónicas Só Duas Coisas Que Entre Tantas Me Afligiram

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23.3.15

FALANDO DE FELICIDADE

Por Alice Vieira 
LI JÁ NÃO SEI ONDE que a Assembleia Geral das Nações Unidas decretou que o dia 20 de Março vai ser o Dia Internacional da Felicidade. A ideia partiu, ao que parece, do minúsculo reino do Butão que, em vez do PIB (Produto Interno Bruto), adota como estatística oficial a “Felicidade Nacional Bruta”. Isto em português soa um bocado mal, espero que em butanês (ou na língua que lá se fala) soe bastante melhor…
Que bom, num mundo com tanta tragédia, haver um dia consagrado à Felicidade. (E, já agora, um pequeno parêntesis perfeitamente pessoal: deixem-me felicitar quem teve a ideia de o colocar no dia 20 de março, dia em que eu faço anos, o que me vai dar, a partir de agora, ainda muito mais razões para o festejar... Adiante). No dia 20 de Março, como todos sabemos, acaba o inverno. O que significa também que a Felicidade vai ficar ligada à primavera.
E, em tempos de crise e de depressão, como a que vivemos, nunca é demais lembrá-lo.
Mas, deixem-me confessar, que também não me agradava lá muito uma felicidade como a que se vive no Butão.
Há dias, zapando pelos canais do cabo, vi um documentário sobre o Butão. O Butão é um reino minúsculo, completamente isolado e fechado ao mundo (o que as montanhas onde está instalado propiciam), onde as pessoas vivem da agricultura como na Idade Média, dividindo o seu tempo entre o trabalho na terra e as idas aos templos. Preservam esse isolamento para que, segundo afirmam, nada possa alterar a tradição e os rituais. Estrangeiro é bicho muito raro por lá.
Tem, realmente, uma paisagem deslumbrante, mosteiros magníficos - e uma única estrada a atravessar o país. Se calhar, a felicidade também tem a ver com um trânsito sem complicações, e o completo desconhecimento do que é hora de ponta. Praticamente não se usa dinheiro, não há consumo.
No Butão é-se feliz porque - convenhamos - também não se pode ser outra coisa. E é isso que me apavora.
Que mérito poderá ter a minha luta pela felicidade se não tenho de combater a infelicidade?
Que mérito terá a minha realização pessoal e profissional se não tenho muita coisa que me realize?
Como posso discutir ideias se não há nada para discutir?
E de que falam as pessoas quando se juntam — se não há dívidas do Passos Coelho, prisão do Sócrates, a Troika, a família Salgado a amar-se apaixonadamente, o Belmiro a ir para a reforma, o Porto a ver se chega aos calcanhares do Benfica, a canção que mandámos para a Eurovisão e que nem para ir ao Festival da Bandalhoeira servia (com todo o meu respeito pela Bandalhoeira, claro) - essas coisas que fazem a felicidade das pessoas à mesa do café.
Como se pode ser herói se não há obstáculos para vencer?
Como poderíamos desejar tanto a primavera, se não houvesse inverno?
É claro que é muito bom que se encontre um dia no ano para se questionar a nossa Felicidade (ou a falta dela). Mas aflige-me muita a felicidade por decreto.
Por isso, em vez de pensar no Butão (apesar da nossa crise brava e das aparentes maravilhas deles, a meio do documentário eu já estava completamente deprimida…), e no sorriso permanente colado à boca dos habitantes, prefiro, apesar de tudo, voltar à terra, a esta nossa terrível, desesperante, complicada terra onde vivemos, a braços com esta terrível, desesperante, complicada crise que ninguém sabe onde nos leva – e pensar antes na minha amiga Helena Marujo que acredita, contra ventos, troikas , BES e marés, que todos fomos feitos para a Felicidade.
A Helena Marujo é uma cientista conceituada, não escreve livros de auto-ajuda – e, com o marido, Luis Miguel Neto, fundou há uns dois anos, o Instituto da Felicidade. E uma das suas ações mais importantes foi a elaboração de um estudo sobre a felicidade dos portugueses – ideia que lhe veio quando andava a estudar as causas da depressão entre crianças e adolescentes.
 Eu sei que há dois anos ainda não estávamos tão mal como agora, mas a verdade — como de resto ela salienta logo no início — é que nunca estivemos bem… Fomos sempre o povo da desgraça, do fado, o “país cabisbaixo”, como lhe chamou o poeta Alexandre O’Neil. E o que é preciso — seja em que tempo for – é procurarmos novas perspetivas de realização, novas maneiras de viver o dia a dia, novos interesses, novas disponibilidades, um novo olhar para quem vive ao nosso lado.
Carlos Drummond de Andrade escreveu uma vez que “há duas épocas na vida, - a infância e a velhice - em que a felicidade está numa caixa de bombons”…
Pois é preciso saber encontrar, também para outras idades, a respetiva caixa de bombons…
Custa, eu sei - mas antes isso que ser feliz por obrigação legal.

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31.8.13

A memória apagada

Por Alice Vieira
HOJE, pela primeira vez na minha vida, sinto-me velha.
Tenho o telemóvel na mão e estou há horas a olhar para ele sem saber o que fazer. Acabo por largá-lo, aqueles para quem eu queria ligar já não me vão atender – e, para além deles, já não há mais ninguém capaz de entender a minha não sei se fúria, não sei se raiva, não sei se impotência. A minha — isso sei — grande tristeza.
Dói-me esta perda de memória que vai atacando a nossa sociedade a um ritmo cada vez mais vertiginoso.
Acabo de chegar da Escola Francisco Arruda, onde acho que já não entrava há mais de 40 anos. Ótimas instalações, tudo a cheirar a novo.
A escola Francisco Arruda foi o “sonho” de um homem chamado Calvet de Magalhães, um dos maiores pedagogos deste país que, nesses anos 50 da sua fundação, a transformou num oásis de educação e de cultura. Pioneiro de muitas causas (a integração de alunos deficientes foi uma das suas grandes lutas), foi sobretudo um animador cultural num tempo onde o desânimo imperava. A escola estava então rodeada de bairros de lata e, todos os sábados, ele abria as portas a toda a comunidade. E havia exibição de filmes, palestras, ateliers de olaria, histórias contadas aos miúdos, etc. Era uma maravilha ver aquela escola cheia de gente, que a considerava sua. (...)
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15.8.13

A LISTA

Por Alice Vieira
RECEBI ontem um postal de um amigo muito querido, que anda agora por terras de Espanha. Três linhas, não mais – mas o suficiente para me iluminar o dia que, diga-se, andava assim um bocado para o fusco.
Penso muitas vezes no que seria de mim sem esta presença constante dos amigos .
Amigos que escrevem cartas e postais: o Manel ensina-me o nome de todas as plantas que cultiva lá em A-dos-Negros, acho que ainda não perdeu a esperança de me ver ingressar no clube dos jovens agricultores; a Cristina manda-me desenhos e a luz da ria vem com eles; a Marina descobre verdadeiras preciosidades do tempo em que que éramos crianças; o António manda postais de todos os lugares onde faz exposições; o Eduardo fala-me do seu Porto que ele tão bem fotografou; etc… (...)
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1.8.13

Cá por mim

Por Alice Vieira
PELA primeira vez na minha vida faço parte de uma equipa que está a fazer nascer um novo jornal. Todos aqueles por onde passei tinham já dezenas e dezenas de anos de trabalho, tradição e público.
Desta vez é uma aventura.
E também, ao que se diz, este é um jornal destinado àqueles a quem já cantaram os “parabéns a você” muitas e muitas vezes.
Ótimo. Sinal de que estão vivos – coisa de que nem todos os vivos se podem gabar.
Mas esta coisa da idade é sempre muito relativa…”Coitado, já tinha uma certa idade”, diz-se normalmente quando morre alguém não muito novo.
Mas eu nunca percebi o que é ter “uma certa idade”.
Tenho sempre diante dos meus olhos – colado na parede onde também estão coladas as fotografias dos homens da minha vida, entre os quais os netos… - um postal que em tempos um amigo me enviou de Berkeley e que, numa tradução tão aproximada quanto possível, diz: “Que idade terias se não soubesses a idade que tens?” (...)
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31.3.13

O senhor que contava histórias

Por Alice Vieira 
HÁ MUITOS, muitos anos, eu tive a vossa idade. 
“Ainda havia dinossauros?”, perguntou-me há dias o meu neto mais novo.
Não, realmente JÁ não havia dinossauros. 
Mas AINDA não havia televisão, nem computador, nem telemóvel, nem iPOD, nem MP3,nem Playstation, nem uma série de outras maravilhas, indispensáveis na nossa vida actual.
Mas o facto de elas não existirem não impediu que – no meio de uma infância difícil, solitária e pouco afectuosa - eu fosse uma criança feliz. 
E essa felicidade devo-a aos livros que li — e, muito especialmente, aos livros de um senhor chamado Adolfo Simões Muller.
Adolfo Simões Muller sabia muitas histórias, e levou toda a sua vida a contar histórias. (...) 
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16.3.13

Um breve recado para as educadoras de infância

Por Alice Vieira
ELAS chegaram agora junto de ti.
Elas pensavam que o mundo cabia inteiro nas paredes da sua casa, e que quem lá vivia eram os seus únicos habitantes. Terás de mostrar-lhes que não é verdade.
Elas têm poucas palavras para nomear o que as rodeia. Terás de as ajudar a encontrar as que faltam.
Elas vão ver o mundo com as cores que tu puseres em cada som e em cada gesto.
Elas vão olhar para ti, aprender o teu nome, chamar-te por tudo e por nada, geralmente por nada. Que é sempre tudo. (...)
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8.3.13

Chá das cinco

Por Alice Vieira 
DIZEM que foi um imperador chinês que o descobriu. 
Preocupado com longas epidemias que assolavam o império, ordenou que toda a gente bebesse água sempre fervida. 
Um dia, estava ele à sombra de uma árvore e pediu água. Lá lhe trouxeram a água a ferver, e ele teve de esperar alguns minutos, pois até mesmo quem é imperador não aguenta água a escaldar pela goela abaixo. 
 Enquanto esperava, não reparou que umas folhas da árvore tinham caído para dentro do copo (chávena? caneca? malga?) e a água tinha ficado um bocado para o castanho. 
 O natural seria – sobretudo rodeado de epidemias por todos os lados… - que deitasse fora aquela mistela e voltasse a pedir mais água fervida, e nós nunca viríamos a saber de nada.(...)
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4.3.13

Ruy Belo

Por Alice Vieira 
CONHECI o Ruy Belo quando ambos entrámos para a Faculdade de Letras de Lisboa, em 1961. 
Eu era uma jovem ainda a cheirar à infância do liceu; ele, dez anos mais velho, já tinha uma série de cursos no currículo, um doutoramento feito em Roma, um livro de poemas publicado. 
A princípio fazia-me confusão que uma pessoa como ele ainda insistisse em estudar mais, e se tivesse de novo matriculado numa faculdade, e andasse ali junto dos caloiros (e todos juntos estaríamos quando, pouco tempo depois, rebentou a greve académica, que nos uniu ainda mais.)  (...)
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22.12.12

Os gladíolos

Por Alice Vieira
NEM SABIA bem por que ali estava. 
Vingança, raiva, ou nenhuma razão em especial. Tinha dado de caras com a notícia no jornal, enquanto bebia o café e, de repente, vê-se a pagar a bica, a correr até à praça de táxis mais próxima, enfiar-se no carro, fechar os olhos, e deixar-se embalar até ouvir o homem dizer “cá estamos, minha senhora”. 
Na rua em frente da igreja há uma florista. Pede gladíolos, mas dizem-lhe que já tiveram mas já não têm. Compra uma rosa. A igreja está cheia, como já esperava que estivesse. (...)
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8.12.12

Um Número Diferente

Por Alice Vieira 
ESTE É o n.º 500 da “Audácia”. Este é um número muito especial e, por isso, estamos todos em festa. A “Audácia” nasceu em Novembro de 1966 - o que significa que está quase, quase a fazer 46 anos. O que significa que os seus leitores atuais ainda nem eram sonhados quando ela apareceu. E, se calhar, nem a maioria dos pais. Em 1966 o mundo era outro. Nós éramos outros. A maneira de fazer revistas era outra. Nada destas máquinas sofisticadas que agora nos poupam tanto trabalho e tantas horas de esforço.(...)
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27.11.12

As saudades da casa

Por Alice Vieira
E DE REPENTE a casa voltou a ficar silenciosa.
De um momento para o outro, os objetos regressaram todos ao seu lugar habitual, o piano fechou-se, deixou de haver sapatos largados pelo meio da casa de banho e dos quartos, acabaram-se as risadas à meia noite (“meninos! Já deviam estar a dormir há que horas!”), o frigorífico readquiriu o seu ritmo pacato e parou de ser esvaziado de cinco em cinco minutos, a despensa readquiriu o seu ar honesto e saudável, sem pacotes de batatas fritas nem garrafas de coca-cola, os livros de histórias encontraram de novo o seu lugar na estante, os “Simpsons” e a “Family Guy” desapareceram dos serões televisivos (...)
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20.10.12

Manuel António Pina


Por Alice Vieira
AS NOVAS tecnologias têm isto de bom: quando estamos longe e temos saudades dos amigos, elas se encarregam de nos aproximar.
De cada vez que eu estava fora do país, mandava um sms ao Manuel António Pina. Porque normalmente estava em congresso, em encontro literário, em escola ou biblioteca e queria trocar impressões, género “já cá estiveste?”, “O que é isto?”, etc. Porque, normalmente, por razões daquilo que escrevíamos, eu e o Pina andávamos pelos mesmos sítios.
Um dia — vá-se lá saber porquê…- eu aterrei na cidade francesa de Périgueux, num Encontro de Literatura Gourmet!!!
Sms logo para o Pina: “o que é isto?”
Respondeu-me que também já lá tinha estado e até tinha gostado, — e faz-me um estranho pedido: “por favor, vai à Rua tal, é uma rampa e mesmo no fim, à esquina, há uma casa pequena, há de estar uma velha à porta com uma gata castanha, diz-lhe que lhe mando um abraço.
Pensei que estava a brincar comigo mas, num intervalo do congresso, lá fui.
Encontrei a rua, a rampa, a esquina, a casa, a velha, a gata.
Tudo como ele tinha dito.
Lá lhe expliquei a história (“sou portuguesa, e um escritor português meu amigo pediu-me…” etc…) — e logo a velha se abre num enorme sorriso: o Pina tinha estado em Périgueux há uns tempos e, nos seus passeios pela cidade, tinha-a visto à porta com a gata. Parou no passeio, foi ter com ela e ali tinham ficado tempos infindos, a conversarem…sobre gatos.
O Pina adorava gatos.
Espero que o céu esteja cheio deles.
NOTA (CMR): procurando uma fotografia para ilustrar as palavras de Alice Vieira, encontrei esta, [aqui]. Acho que fica bem…

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8.10.12

Museu de Cera

Por Alice Vieira

HÁ MUITO tempo que não subia aquela rua.
Durante muitos anos trabalhara ali perto, conhecia-lhe os cantos e recantos, tascas e cafés, mercearias onde tudo se vendia, alfarrabistas e casas de velas, tabacarias a transbordarem de revistas de croché e de culinária, num tempo em que o jet-set ainda não tinha sido descoberto.
Há muito lixo pelas esquinas e, nos degraus das portas, garrafas vazias de cerveja marcam o rasto das noites. (...)
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10.9.12

A dor de cabeça

Por Alice Vieira
NEM SABIA há quanto tempo não entrava naquele jardim, perto da casa onde nascera. Ou antes: do sítio onde nascera, já que a casa há muito se transformara num stand de automóveis.
Uma vez passou por lá e ficou feita parva a olhar para a montra, pensando se o lugar da cama da mãe seria ali onde então se exibia um Aston Martin em todo o seu esplendor, ou, se calhar, lá mais para o fundo, onde se situava a secretária do vendedor.
Riu-se e o vendedor, lá de dentro, franziu os olhos, certamente nunca devia ter visto ninguém rir diante da montra, e ela desceu logo a rua, não fosse ele chegar à porta e perguntar “deseja alguma coisa?”, e ela “nasci onde o senhor está sentado.” (...)
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3.8.12

As Naus das Descobertas

Por Alice Vieira

TINHA sido um verdadeiro sufoco, ela na rua e de repente a pensar 
“esqueci-me das chaves e do telemóvel em casa”.
A quem pedir ajuda, e como pedi-la? Mesmo com cabines telefónicas nos passeios e moedas nos bolsos, desde que se inventaram os telemóveis que ela nunca mais soube nenhum número de cor, está tudo na memória, ela a viver pela memória de uma máquina, ao que isto chegou.
Mas foi sufoco breve, felizmente não estava longe de casa quando deu pela falta, e pôde rapidamente voltar atrás e entrar no café, que desde sempre guarda uma cópia das suas chaves para uma qualquer emergência. Como esta. (...)
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17.7.12

Férias grandes

Por Alice Vieira
JÁ NÃO sabia as vezes que tinha feito, desfeito e refeito a mala.
- Raio de tempo… - murmurou.
O marido largou o jornal e as palavras cruzadas e sorriu:
- Ninguém te entende…Se chove é porque chove, se faz sol é porque faz sol…
Deixou-se cair no sofá. Não era nada disso e ele sabia.
- O que eu queria era o tempo certo. Fiável. Dantes, quando íamos de férias no verão, levávamos roupa leve, um guarda-chuva, vá lá, por mera precaução, mas nunca enchíamos a mala de camisolas, casacos, meias… (...)
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9.7.12

A praia, há muitos anos

Por Alice Vieira 
MUITAS vezes penso como foi que nós – ou seja, todos os que já temos para lá de 50 anos – conseguimos sobreviver. Como foi que conseguimos ser crianças, adolescentes, andar na escola, aprender. Como foi que conseguimos ser gente sem nos terem levado ao psicólogo. Como foi que crescemos mais ou menos saudáveis, sem ficarmos traumatizados por esse tempo pré-histórico em que – segundo os padrões de hoje – nada havia. (...)
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