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quinta-feira, 21 de junho de 2012

Momentos de instantâneo chauvinismo

Acontece que, além de tpm e de outras maleitas e infelicidades bem femininas, não sou rapariga de fazer muitos disparates alegadamente atribuídos às mulheres. Tenho bom sentido de orientação, não conduzo mal, faço piscas e tudo, choramingo pouco, mas, há sempre um mas, ontem lembrei-me de ligar o carregador do computador ao contrário. Dizem-me e mostram-me até que a coisa tinha indicação de como devia ser conectada. E tinha. Não vi. E o computador esticou o pernil. Há que fazer coisas de mulher de vez em quando. Foi ontem o dia.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

A doce arte de dar cabo de tudo

Longe mas muito longe vão os tempos em que uma clicadela fora do sítio e eriçavam-se-me os ânimos, histérica e descontrolada perante um problema que não conseguia por meus meios resolver. Acontece às vezes. Gosto de ser eu a resolver os meus problemas e de saber que os posso resolver. Nem sempre posso e nem sempre os resolvo mas saber que os desígnios da minha vida repousam em mãos alheias não faz de mim uma mulher feliz e amarfanha-me esta mania da independência. Hoje pela tarde resolvi coisa pouca relativamente ao posterior desenrolar da mesma. Decidido estava que teria de preparar as aulas de amanhã, tarefa para a qual o computador passou a ser imprescindível, e que além disso pouco mais faria. Um chá sem biscoitos que me auto impus uma dieta ascética, para quê ainda não sei muito bem, e o remanso de aproveitar as últimas horas de paz absoluta. Ora nesse meu afã e sem saber muito bem como fui dar comigo a ajustar contas com o meu passado profissional e a rasgar o miolo de dossiers em morte cerebral. Uns papéis puxam os outros. Um crescendo de fúria na senda do despojamento total. E foi assim que incautamente terei arremessado algum dossier ou molho de folhas inúteis para cima do comando da televisão que se travou de razões comigo e me ofereceu uma imagem azulada sem retorno. Umas clicadelas depois e nada de regressar à vida. Estava uma tarde de sol e não me importei. Havia mais que fazer e não tenho paciência para amuos. Ora acontece que um tempo depois, resolvi imprimir um documento necessário para a aula de amanhã. Por solidariedade ou amuo, a impressora fez-se de morta e quase se rebolou de barriga para o ar quando a mandei mais uma vez imprimir o dito e absolutamente necessário documento contra o insucesso escolar deste país, a fórmula mágica cravada a negro num pedaço de papel branco, já se sabe. Nada. Coisa nenhuma. Liga e desliga cabos. Zero. Nem um estertor. Depois de ter dado cabo da televisão e da impressora, achei por bem esperar quieta. Nada de descontrolo ou megalomanias de resolver tudo por mim só. O jeito que esta tarde me deu. E o que eu aprendi.

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Caprichos de uma máquina de lavar louça

Corria o ano da graça de dois mil e dez, vigésimo quarto dia do décimo segundo mês do ano, a vida nem estava a correr muito mal, apesar do atropelamento recente da minha gata sénior, quando abro a máquina de lavar e constato que nada, nadica, rién, nicles. A dita cuja não tinha cumprido a tarefa para a qual fora adquirida há uma década. O coração acelera, cruzes canhoto, o efeito que estes bichos electrodomésticos têm sobre mim, e começo a praguejar furiosamente com os meus botões, capaz de lançar insultos ao animal prateado que me tem dado tanto descanso P*&#a da máquina. Seguem-se os trâmites de sempre A máquina da louça não trabalha! Não trabalha? Não, pifou. Mas pifou como? Não escoa a água. Ai cum caraças. Logo agora. Chama o homem. Qual homem? O da máquina de lavar roupa. Minutos mais tarde. O homem só pode vir na quarta-feira. Quarta-feira? Sim. Diz que tem muito que fazer. E assim voltei aos primórdios. Louça, louça e mais louça, porque, como se sabe, esta malta electrodoméstica é muito caprichosa e dá-se ao luxo de pifar precisamente no único dia em que não devia, exactamente na véspera de Natal. E eis que chega quarta-feira. O homem não pode vir. Diz que tem muito trabalho. Quinta-feira. O homem diz que chegou agora de Lisboa. Só pode vir amanhã. Entre as 11 e o meio-dia está cá. Sexta-feira. Aqui a moicana levanta-se e pensa, enquanto lhe dá a preguiça matinal, a última do ano em dia de semana em que pode deambular pela casa despreocupadamente, vir à net, facebookar sem constrangimentos de horas e obrigações a cumprir, Tenho de me arranjar, o homem está aí a chegar. Arranjo-me. Desço à sala. Lindinha, lavada e perfumada. E espero e espero e espero e desespero. Homem nada, nicles, rien, népia. Agarro-me ao telemóvel O homem não veio. Liga ao homem. Minutos depois, a boa nova, o homem só pode vir à tarde, entre as duas e as duas e meia. Chegam as duas, passam as duas e meia, as três, as três e meia e de homem nem sombras. Nada, nicles, rien, népia. Atiro-me aos sonhos, faço a massa tenra para as azevias, facebooko um bocado e a campainha toca. Era o homem. Portanto, meus amigos e leitores, eis que me encontro aqui neste ecrã em branco, sitiada na sala a passar as últimas horas de dois mil e dez, enquanto as entranhas da bicha caprichosa são revolvidas e o homem mais desejado dos últimos tempos leva a cabo a tarefa epopeica de ressuscitar a minha máquina de lavar louça ao sétimo dia, que isto de ressuscitar ao terceiro é só para gente especial.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Recordações da casa amarela

Desta vez não foram os livros. Desta vez as citações dos livros ficaram arrumadas lá pelas gavetas em peças albergadas em corredores e secções. Desta feita foram os filmes. As citações que me iam bailando na cabeça ao ritmo da empreitada num dia de calor tórrido. E foi isto porque sendo adepta fervorosa de self-services em algumas ocasiões, uso-os frequentemente no pagamento do supermercado para não aguentar as caixas contrariadas, dirigi-me a um desses locais que todos conhecem mas cujo nome me recuso a escrever aqui para não oferecer publicidade gratuita aos senhores nórdicos, para ser fiel proprietária de uma série de objectos de arrumação que me faltam no lar. Assim sendo, passada a primeira incursão no corredor 1 secção x, onde se encontravam os inofensivos varões, deparei-me com uma outra onde os volumes além de imensos, pesavam toneladas, e foi aí que me ocorreu a primeira frase, logo que tentei mover um enorme rectângulo de cartão recheado de madeiras e aglomerados. Perante o pesadelo dos bichos encaixotados, logo dois, quilos e quilos de materiais recicláveis que me hão-de salvar do caos doméstico e de acordo com a cábula levada e cumprida meticulosamente, ouvi vindo das profundezas da minha alma May the force be with you. Bem precisa foi. A seguir vieram oito gavetas, uns animais mortíferos que se recusavam a encaixar na arrumação previamente feita no carrinho. Podia ser na vertical ou na horizontal sobre os monstros que jaziam indefesos. Fácil não era e urgia a rearrumação das peças. Que outra frase que não esta Houston, we have a problem? Logo depois e mediante a irresolubilidade da questiúncula, lá vieram as linhas de um dos filmes da minha vida – mau, eu sei, por esta hora estarão a pensar mas por que carga de água gosta ela daquilo? Gosto, confesso, gosto muito – mas soaram, ai soaram, soaram Look, I guarantee there'll be tough times. I guarantee that at some point, one or both of us is gonna want to get out of this thing. E queríamos, claro que queríamos. Um ou dois ou um de cada vez ou os dois ao mesmo tempo. Quanto mais depressa melhor. Por último, lá pela canícula do meio-dia, com as compras feitas, transporte e montagem contratados, extenuada, exaurida, exausta, transpirada, uma tarde de trabalho intenso à minha espera na escola e com uma garrafa de litro e meio de água na mão, ainda suspirei Esta loja não é para velhos. E pronto, era só isto que queria dizer. Until then, good night!

sábado, 24 de julho de 2010

Odisseias de um terraço desvalido

Ora portanto, são onze da manhã de um Sábado que me parece ensolarado, depois de uma noite óptima a ver Buena Vista Social Club com a grande Omara Portuondo no Jardim do Cerco aqui na terra, e eis-me agarrada ao computador ainda em pijama e gadelha desgrenhada, de óculos, é verdade sou míope e uso óculos aqui na intimidade. E perguntarão porquê. Que raio faz uma mulher logo pela manhã de um dia que se queria de descanso, de sol ainda por cima, depois de uma semana de caca que lhe sugou bulicamente energia a teclar furiosamente como se não houvesse amanhã.
O meu terraço que metia água e que me fez passar um Inverno de alguidares na cozinha e sentir-me a viver numa barraca como se estivesse no Feios, Porcos e Maus, apesar de ninguém me ter pedido para chegar para lá na cama que trazia uma amiga para a pernoita, o tal que me vai custar euros e impropérios, está em fase de reconstrução. Reconstrução acarreta marretadas, maçaricos e claro o teste. O teste consiste em meter água no terraço e esperar para ver. Ora ontem nem foi preciso esperar para ver, porque logo passado uns minutos, calculo, a água começou a entrar lampeira pela cozinha, logo após estendeu-se à sala. Mediante as evidências, houve que tentar reparar o arranjo que afinal não estava assim tão bem. Depois de nova tentativa e de nova reparadela, enche-se o terraço de água e hoje lá pela fresca, estima-se que ainda nem o sol tinha dado acordo de si, eis que a água entra, pior, a água entra agora também na sala, umas manchas ovaladas que me decoram o tecto. Adivinha-se um processo longo e ilustre, tentativa sobre tentativa até ter a casa num lago. A sorte é ter este blogue, ai meu querido blogue, ai blogue da minha alma, se não prevejo os danos colaterais: ou procuro o psiquiatra que em tempos me tratou do coração estilhaçado e alma em cacos ou recorro ao supermercado mais próximo e vou experimentando um por um, unzinho por unzinho, os sabores que me piscam o olho do lado da lá das câmaras frigoríficas. Ontem era um de nougat, mas também lá há de chocolate branco e frutos silvestres, de maracujá, demasiado inofensivo para este mal que me atormenta, o de canela e bolachas, razoavelmente calórico, este, e a seguir recorro ao meu dietista. Uma alegria.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Expansão vocabular

Há sempre aqueles momentos na nossa vida em que o vocabulário aumenta. Há uns tempos foi o encunicado que veio completar o meu tesouro de palavras, tradução literalíssima do germânico Wortschatz, ontem apaixonei-me pelo pensageiro, da autoria de Mia Couto e que me chamou na capa de um livro, quando ia às cenouras e às febras, anteontem, porém, acrescentei mais uma ao meu caríssimo vocabulário: sanca. E foi isto porque, depois de marteladas e marretadas no terraço, a sanca do tecto da cozinha suicidou-se lá do alto. Estatelou-se no chão sem dó nem piedade e jaz agora dentro de um saco plástico algures na cozinha. Sanca, portanto. Quando no telefonema da noite anunciei à minha mãe o suicídio da sanca, ela perguntou Sanca? Não sei o que é uma sanca. E foi aí que continuou a expansão vocabular e dei asas à professora que há em mim, pôr por miúdos o ininteligível à primeira. Fui-lhe dando instruções. ´Tás a ver aquela barra entre a parede e o tecto? É isso. Ah respondeu, mas aqui não tenho nada disso. Acrescentei, No fim da parede entre a dita e o tecto há assim uma barra, tipo um remate, é isso. Coisas das casas modernas. O meu medo é que me ponham uma cheia de arrebiques para compor a falta daquela. Não me pareceu convencida e dei por encerrada esta tarefa de me pôr a explicar nomenclatura de construção ou engenharia. O outro vocábulo que me entrou pela casa dentro foi OSB. Utilizado com frequência pela vizinhança nos oráculos e adivinhações quanto ao estado calamitoso e apocalíptico do terraço, era sempre lançado com gravidade o OSB deve estar todo podre e depois a finalização e é caro, deve ser caríssimo. Ora ontem, quando pelo fim da tarde me aproximei do jardim para expirar o dia de trabalho dei por uma placa castanha, assim um contraplacado forte, algo que nos meus tempos de criança se chamava platex ou contraplacado. Pelos visto hoje, mais sofisticadela menos sofisticadela, é OSB. A última palavra não foi propriamente uma descoberta, foi mais uma constatação e foi isto logo após a descoberta do enigmático OSB. Constatei, contornando a minha casa pelo lado direito, que o meu estendal de resina estava estraçalhado, acidente nas obras, desculpas para lá e para cá, tenho o estendal num caco, parece que lhe passou um rolo por cima, mas acredito que está ainda para vir, e a coisa está para breve, a utilização adequada ao contexto de uma série de palavras danadas e furiosas, asneiras e palavrões, quando me apresentarem um papelito com a conta do OSB mais a sanca mais o cerâmico, a impermeabilização, o isolante, a tela e sei-lá-mais-o-quê, horas e horas de trabalho que o meu terraço leva. Tudo isso em euros. Não há vocabulário que me chegue.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Angústias de uma dona de casa irada

No dia exacto em que uma contrariada dona de casa decide fazer uma barrela nos cortinados para lhes mandar fazer bainha e porque convém que sejam lavados naturalmente, chove. Chove em Mafra. Mau grado o aquecimento global eu até andava feliz nos últimos anos, porque aqui o tempo se tinha tornado normal e havia dias de sol normais em que se podia ir à praia, sair sem casacos e fazer a vida quase normal da gente normal numa estação normal. Errado. Voltou tudo atrás. Ele há neblina matinal, neblina no ocaso, frescura nos ossos que obriga a um agasalho, vento e, como se não chegasse, hoje há chuva. Chuva, chuvinha, morrinha, chão molhado, pingos que me cumprimentam da glicínia à saída de casa e as gatas que chegam de pêlo húmido depois do passeio matinal. Já pensei em atracar-me nos prozacs que sou fraquinha dos nervos no que toca a assuntos domésticos mas preferi vir para aqui desanuviar. Logo à noite ainda posso vingar-me em duas bolas de gelado generosas com um barquilho de baunilha, até porque não tenho prozacs em casa mas dá jeito aqui para o post. Raios. Caca de tempo.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Entre dois toques de telefone

Logo pela madrugada o telefone tocou. Diz que tinha havido uma intempérie tamanha, estradas cortadas, ventania furiosa, árvores na estrada e o diabo a sete. Levanto-me pelas oito horas neste meu primeiro dia abençoado pela falta de aulas, professores, alunos, monoblocos, fichas, avaliações e relatórios, e espreito pela janela para conferir o temporal. Muito bem. Os vidros da cozinha tinham farrapinhos de esterco e palha, nada que seja muito natalício, mas lá que tinham, tinham, o estendal móvel estava plantado na relva de pernas para o ar e uma das havaianas antigas que descansavam do lado de lá da porta para as eventualidades estava igualmente de borco virado a fazer companhia ao estendal. Podia muito bem ser uma instalação, um hino à subversão feminina, o ódio aos trabalhos domésticos presente no estado calamitoso do estendal, a insurreição na inversão da chinela, mas juro que eu estava inocente.
Segunda evidência da fúria da mãe natureza: não havia luz. Ora não havendo luz, duas das coisas mais importantes na minha manhã, café e notícias, tinham ido com o vento, assim mesmo gone with the wind, e portanto comecei a ver este dia com muito maus olhos. Sem luz, não há muito que se possa fazer em casa, assim sendo rumo a um desses antros do consumismo para finalizar uns presentes de Natal e chego a casa lá pela uma hora com uma neura furiosa que faria inveja ao episódio mais depressivo de tpm.
Depois do almoço, dirijo-me ao banco e eis que reparo que o meu cartão tinha desaparecido. Puxando pela cabeça descobri que o tinha deixado na loja, lá no antro do consumismo, cá para mim um aviso divino dos excessos, e zás rumo de volta ao covil danado. Nesta altura, sem café da manhã, sem notícias, sem luz em casa e sem cartão, respirei fundo umas dezenas de vezes para afugentar a ira, e depois de mais um périplo regresso finalmente a casa, os sacos que se largam, as compras que se arrumam e finalmente as notícias. Isso é que seria muito bom. Mas não. A televisão muda e queda, o aviso de que não havia sinal. Sem sinal. No signal. Kaputt. Três quartos de hora de telefonemas depois, há que aceitar o pior. Terça-feira, ou seja daqui quase a uma semana, receberemos a visita do Sr. Dr. Eng.º Meo Técnico de televisões achacadas com o mau tempo. Até lá nicles. Assim sendo, acende-se a lareira para compor o ambiente. Acendia-se porque depois da lenha no sítio certo descobre-se que não há acendalhas e sem elas, lareira népia. Que bem que isto está a correr. Toca o telefone uma boa hora depois. Dona Leonor? Sim, sou eu, Dona Francisquinha. A senhora viu o ferro em cima da banca? Vi. Pensei que estava quente. Mas olhe, não liga. Não liga? Não, até pensei que era da ficha, mas não. Ah não se preocupe, deixe lá, as coisas estragam-se. E foi o último telefonema do dia.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Julgamento sumário

A partir de hoje e por tempo indeterminado declaro-o culpado de tudo. Tudo o que acontecer doravante, a crise, a Gripe A, os raios ultravioletas altos, a carestia de vida – como gosto da expressão – ou o Verão refractário é culpa dele. Dele e só dele. Por exemplo, ontem quando cheguei a casa pela tarde, faltavam-me uns girassóis. É certo que não os contei. Ainda mais certo que na sua condição de girassóis mudaram a trajectória ao longo do dia. E certo como ser Maria que ninguém lhes mexeu, porque euzinha, com estes que a terra há-de comer – atente-se ao pormenor do indicador e médio na direcção dos meus olhos- fui verificar se havia vestígios do ataque aos girassóis. Não havia, mas para que conste foi ele. E quem mais pode ter sido? Mas há alguma dúvida? Uma réstia de incerteza? Uma ponta de hesitação? Nada. Nadinha, Nenhuma. Nicles. Foi ele. Quem mais? E isto tudo porque quando dei por ela, depois de lhe ter pedido para dar um jeito no fisaleiro descontrolado já a derramar-se por cima do azevinho, o meu diligente jardineiro foi-se a ele com aqueles olhos azuis enganadores e amarrou-o com uma guita branca como a um molho de nabiças. Ora tendo em conta que o arbusto está cheiinho de fruto e que serve também um propósito decorativo e ainda que não gosto de nada preso, muito menos no jardim, estou-lhe com uma raivinha cega que nem vos digo nada. E como não lhe posso dizer nada a ele, porque mulheres-a-dias e jardineiros são gente de sensibilidade tão apurada que nem sei como não constam no Werther de Goethe, remeto-me ao silêncio, não vá ter dê lhes pagar uma indemnização pelos distúrbios provocados. Portanto, a partir de hoje e por tempo indeterminado, até que me passe a fúria, o meu jardineiro é culpado dos males do mundo. Ninguém lhe mandou atentar contra o meu fisaleiro.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Mercúrio retrógrado

Pela sala os despojos. Uma caixa pequena em cima da mesa, as fotografias e os livros fora do seu habitual poiso que, adianto, nada tem a ver com os padrões comuns de arrumação, porventura um conceito marginal na minha casinha amarela, uma caixa enorme encostada à lareira, a sensação de que algo passou por ali, perturbando a ordem oculta dos objectos, a insurreição de livros e minudências. Que é que achas? A imagem parece pior… deito um olhar mais prolongado Pois, realmente, parece menos definida e está tudo mais vermelho. Mas paciência. Pois paciência. Foram-se quase todos os canais da Fox, foi-se a TV24, e Travel Channel nem vê-lo. Tá bem, mas é menos de metade do preço. E para que queríamos tantos canais? Pois. Não faz mal. E a tarde que adormece pacífica. Um périplo pelo jardim. Já viste a amarilis? Está maior, qualquer dia dá flor. E as túlipas? Nada ainda. Raio do jardineiro que se me foi ao maçaroco. Raios o partam. O carvão no ponto óptimo para o comedido churrasco a meio da semana, a carne no grelhador e a noite que se aproximava tranquilamente arrumando o dia e dando lugar à quietude harmoniosa de que são feitas as comunhões singelas prenhes de afectos. O regresso à sala. Não está mal a imagem. Não, não está. E de repente o ecrã negro e mudo e quedo e ausente e distante. Que coisa. Um toque nos botões. Nada. Nada de nada. A desordem que se instala e ocupa selvaticamente a harmonia das palavras carinhosas, as túlipas, a amarilis, a gardénia e o maçaroco, raios partam o jardineiro. Impropérios saltam de encontro à televisão, altiva e orgulhosamente ausente. Cabos que se ligam e desligam, contactos falhados no possível mau contacto. A reclamação que se avizinha, telefone em riste. Meia dúzia de palavras que se trocam. Agora faça assim. Ligue aqui. Apague acolá. Ligue acolá. Apague ali. Quiçá reze aqui, ali e acolá, afinal era dia da Senhora de Fátima. Nada a fazer. Bem, vou ver um filme. DVD ligado e eis que irrompe na sala do nosso descontentamento pontual e passageiro um ronco forte e prolongado. Que é isto? O DVD. ISTO é o DVD. Abandono a sala prevendo um agravamento das condições naquele espaço. Rumo ao computador e tento abrir um documento de Word. Nada. Desta vez nem ronco, nem ecrã vermelho, nem coisa nenhuma. Apenas a recusa. Não consigo abrir os documentos. Nem um. E o turbilhão, entretanto calmo e silenciado pelo ronco do DVD, regressa agora a outra divisão da casa, fazendo jus ao Mercúrio retrógrado.

sexta-feira, 6 de março de 2009

A espera

Estou aqui sossegada, rodeada de livros, frente ao ecrã pálido como a manhã, a Ruiva que dorme o sono dos justos enrolada na cadeira, o rádio ligado, e a espera, as horas que vão decorrendo, a demora, a delonga. Espreito pela janela e vejo os vizinhos peripatéticos nos terraços da nossa preocupação. E espero-o. Olho para o relógio verificando a delonga, o tempo que passa lento, a extensão da invernia que teima em se impor no mês da Primavera. É tarde. A Ruiva acorda finalmente e a Lolita aparece vinda não se sabe de onde. Inquieto-me Nunca mais vem, penso. Faço um chá bem quente, a compensação do Inverno que não passa, o rádio toca indiferente. O aroma que se solta. E ele não vem. Espreito pela janela. Os vizinhos continuam o seu passeio, verificando as juntas e o cerâmico, aventando hipóteses de naturezas várias. Demorará muito? Dou mais uma volta, sitiada pelo tempo cinzento, a chuva miudinha que espreita a espaços. A Guidinha salta-me para o colo, ajeito-me para que caiba melhor, enrolada contra a intempérie. Ainda vai demorar? A campainha toca. É ele.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Tu cá, tu lá

Os dias de invernia revelam mistérios insondáveis encobertos pela bruma. Um desses dias de frio pálido a revelação fez-se como epifania Vê lá tu que a minha mãe está cheia de tosse. As sogras, entre outras maleitas que variam em intensidade de acordo com a tipologia de sogra, têm tosse, portanto não me surpreendi, surpreendente é que não tenham tosse nem coisa alguma, e continuei com a minha vidinha não sem antes ter lamentado o facto. Muito bem. Terei acrescentado o habitual, sou rapariga parca em falas no que respeita a assuntos médicos e estados de saúde fragilizados por doenças de pouca monta, largo habitualmente um É fruto da época. Está muito frio ou Anda aí uma virose furiosa. Pois, pois, uma maleita danada. Uma gripe horrorosa, consoante os dias e a disposição e ando para a frente sem me perder em delongas e em lamentos pungentes e ladainhas lancinantes Não lhe passa. Está a tomar Azomyr mas não lhe passa a tosse. Tendo em conta que estava um frio de enregelar até o mais afoito ser invernoso não valorizei a verbalização mas fiquei em suspenso com a prontidão do nome oficial da mezinha contra estados calamitosos, aparentemente um antitússico que, pela desenvoltura, devia ter-me já sido apresentado antes. Não tinha. Não conhecia. Fiquei a cogitar de onde, como, quando e porquê surgira assim, sem mais e com inusitada rapidez, o nome de um fármaco, particularmente vindo de um ser para quem o estômago começava no estômago e se prolongava pelo abdómen e para quem os enigmas da medicina mais banal e quotidiana sempre foram mistérios tão insondáveis como Stonehenge ou a construção das Pirâmides. E hoje ele apareceu outra vez A tosse da minha mãe não passa. Nem com o Azomyr. Quanta intimidade. O tratamento coloquial e estreito. O que me incomodou foi o tu cá, tu lá com o dito antitússico, ainda por cima incompetente, a abordagem sem cerimónia nem salamaleques. Prevejo um estreitamento de relações com o Brufen, conversas de pé de orelha com o Benuron, tertúlias com o Clónix, bate-papos com o Aerius e conferências com Ciproxina, um dos antibióticos de largo espectro, fala-se muito neles nos dias que correm, algo me diz que são importantes.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

O suicídio da queijeira

O CSI era rapaz para resolver a coisa, muito embora me pareça que dada a inexistência do projéctil malvado, talvez seja assunto para o Sem Rasto, sabe-se lá onde pára o malfadado, desditoso do demónio, por outro lado, e tendo em conta que alma viva testemunhou a ocorrência, Eu? Não vi nada! quem sabe a Médium me poderá ajudar, se bem que pela limpeza com que se sucederam os dramáticos acontecimentos talvez deva recorrer aos Casos Arquivados ou será que, em última análise, terei de recorrer ao professor Caramba? Uma coisa é certa: quando saí pela manhã, estava tudo intacto, a queijeira repousava tranquila na estante da despensa, o local que ocupou há tantos anos quantos os que habito na minha casinha, e quando regressei ao fim da tarde, o sol já posto, a casa a brilhar pela passagem da minha dona francisquinha a campânula da queijeira tinha um buraco violento, cruzes canhoto, que era aquilo? Na minha queijeira de design nórdico, um presente acarinhado e estimado, os estilhaços rapioqueiros descansavam na tábua que durante anos foi suportando queijos vários à medida dos convivas, comensais e gourmets. O telemóvel depressa. Dona Francisquinha em linha. E a conversa O que é aconteceu à queijeira? Nada. Nada? Mas a queijeira tem um buraco, ficou toda estragada, agora é para o lixo, soltei numa voz esganiçada entre o desgosto e a lamúria. Eu não vi nada. Mas foi enquanto a senhora cá esteve, quando saí de manhã não estava assim. Só se foram elas, e, por elas, entenda-se as gatas. Não pode ser exclamei. E a pergunta Mas a queijeira não é de plástico? É de plástico mas parte-se. Estão, portanto, a ver por que razão só a equipa do CSI me poderá ajudar, uma vez que coisas estranhas acontecem na minha ausência e na presença da guardiã dos espanadores, ou isso ou terei de aceitar que a minha queijeira tem vida própria e auto-mutilou-se pela manhã -credo, imaginam lá o buracão- tendo posteriormente optado pelo suicídio, não lhe restava outra solução tendo em conta o orifício categórico na barriga. Já nem nas queijeiras se pode confiar, quanto mais deixá-las em casa sozinhas enquanto se anda lá fora a lutar pela vida.

domingo, 13 de janeiro de 2008

Língua de papel

Meses a fio o recorte de jornal tombou da estante da sala como uma língua, preso numa moldura de sorrisos abertos algures do outro lado do Atlântico. Pendia da secção de literatura portuguesa e reclinava-se sobre a de literatura brasileira. Uma língua, a mesma, ou uma ponte que une as margens de uma só língua, em cada extremidade a sonoridade tão distante, separada pela língua, -ou seria o oceano?- e unida pela mesma. Um recorte de jornal apenas. Terá sido numa altura de pintura da sala que tudo aconteceu, é sabido que as infiltrações são geradoras dos maiores males, numa outra ocasião não se propiciaria o ímpeto arrumador, até porque, por aqui não impera a obsessão por arrumação, impera a obsessão por ter à mão livros, papéis e recortes de acontecimentos passados. Algum tempo depois surgiu o arrependimento amargo deste impulso furioso. O conteúdo do pequeno rectângulo voltou a estar na ordem do dia e assim fiquei: desfalcada do pedacito de informação que dava conta dos erros que opuseram Miguel Sousa Tavares a Vasco Pulido Valente na querela que tanta tinta fez correr. E irritada Mas porquê? Porquê? Às vezes num crescendo Mas há tanta porcaria que fica por aí… logo aquele. Que raiva! Quando a querela reloaded se instalou prometi a mim mesma que não ficaria, desta feita, desfalcada do pedaço de papel, umas quatro páginas do jornal e guardei-o em cima do sofá, à espera de melhor destino, impossível que era deixá-lo que nem uma língua entre as estantes. E tudo estava a correr bem, a leitura do livro prometida para quando a pilha de livros a ler emagrecesse, o pedaço reservado para posteriormente averiguar a veracidade das acusações, de leitura feita e livro nas mãos, tudo bem, dizia eu, tudo muito bem até o frio ter apertado e as páginas centrais do jornal, exactamente, precisamente as tais, aquelas e não outras, terem sido arrancadas sem mais e usadas para combater o frio, -sabe deus, alá e jah como o odeio o mafarrico- e acender a lareira. Tanta verborreia e questiúncula talvez não merecessem mesmo outro fim.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

A minha casinha no Natal

A minha casinha no Natal continua a ser amarela com portadas verdes. A minha casinha no Natal é igual à minha casinha dos restantes meses do ano, épocas festivas ou estação estival, apenas com mais ou menos luz, assim ordenará o astro-rei. No Natal, a minha casinha tem uma árvore de Natal, artificial, por amor ao ambiente, uma decoração pendurada à porta, duas árvores pequenas intercaladas com frutos secos, aromatizadas com paus de canela e meias rodelas de laranja seca, papel de embrulho ocasionalmente pela sala, fitas já em bouquet rotundo e farfalhudo, postais da época aqui e ali. Na minha casinha o Natal foi pautado pela tranquilidade do tempo que se quer de recolhimento, sem exuberâncias, sem corridas, sem pressas. Também por isso eu gosto muito da minha casinha, por isso e porque na minha casinha o Natal foi passado à margem do zeloso cumprimento das regras castradoras que pululam por esse país fora e isto porque a minha modesta casinha amarela de portadas verdes é zona interdita PROIBIDA A ENTRADA aos extremosos zeladores das que se dizem regras da terra dos mexilhões. Na minha casinha a cozinheira não usou touca, bateu os sonhos com as mãos depois de ter aconchegado os ingredientes com colher de pau, de resto só há colheres de pau nesta casinha amarela, o azeite para a ceia da consoada foi servido em galheteiro de vidro, o mesmo aconteceu ao vinagre já se vê, uma desgraça, portanto, e o café, já se sabe, tomado naturalmente em chávenas de porcelana. E depois se tivesse visto o primeiro-ministro ainda podia maldizê-lo, comentar as sobrancelhas excessivamente depiladas, o discurso padresco com tiques e laivos passados, aqui na minha casinha posso fazê-lo e claro, também por isso, gosto muito mas muito da minha casinha, que é a amarela, tem portadas verdes e uma porção incomensurável de liberdade lá dentro.

imagem: minha

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Aqui quieta

Estou aqui. Estou aqui na sala da minha casinha amarela onde tomei por hábito escrevinhar. Aqui entre livros e papéis. A Ruiva deitada ao meu lado, meio enrolada no remanso da tarde que finda, as réstias de sol que trespassam como fios de ouro pelos cortinados. Estou aqui refém na minha casa. Estou aqui sentada, quieta e calada, isto só para ver se passo despercebida, ver se ninguém me ouve, ver se a senhora que me dá uma mãozinha nas arrumações, lavadelas, limpadelas e passadelas a ferro, manuseando esse bicho infernal que bufa e deita água pelos bofes e ventas sobre a tábua de engomar, quiçá o animal mais temível da minha cozinha desde que o Chewbacca se foi. Estou aqui calada, o toque dos dedos no teclado indiciando um trabalho em curso e um trabalho de monta, urgente, importante, inadiável. Assim calada pode ser que passe despercebida. Assim calada não me acontecerá como no dia em que também quieta no mesmo local mas em amena cavaqueira com a minha Dona Francisquinha, ela me irrompeu triunfante sala adentro de aspirador em punho e eu, passeando de blogue em blogue, todos respeitáveis, todos de bom nome e bom gosto, deparo-me, no instante em que ela se aproximava lesta e expedita, com o Daniel Radcliffe assim. E a Dona Francisquinha bem perto e o jovem homem impassível na sua súbita masculinidade e eu aqui em vias de abraçar o ecrã com o sorriso dos tontos, a solução desastrada para encobrir o despudor e salvar a minha reputação de mulher respeitosa e respeitável ou de puxar a senhora para a conversa Benzó Deus, como o rapaz cresceu, Dona Francisquinha! e ela É verdade! Esta mocidade cresce muito… E desde que largou a vassoura parece que ganhou corpo. Tão pequenino que ele era. São estas coisas que nos fazem velha, Dona Leonor... e eu desajeitada sem conseguir clicar com a rapidez necessária no canto superior direito do ecrã. E é por isso que estou aqui calada. Calada e quieta. Nunca se sabe os estragos que um blogue pode fazer a uma dona de casa desprevenida.

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Statements of art

Quando Marcel Duchamp se lembrou de usar um urinol e transformá-lo em obra de arte, o mundo reagiu estarrecido e dividiu-se entre ofendidos e seguidores, ultrajados e admiradores, injuriados e idólatras e assim se foi prosseguindo por esse mundo fora. Joseph Beuys também era um rapaz dado a metamorfose dos objectos do quotidiano em obras de arte e Warhol é o exemplo acabado do que pode acontecer a um mera lata de sopa, que lá andava tranquila na sua vidinha. Nada contra. Mas o que me encanita, enfurece e revolta é a quantidade de artistas anónimos que povoam este Portugal de lés a lés e, porque não têm nomes nem amigos, estão votados ao abandono, esquecimento e anonimato, quiçá, morrerão numa valeta entre o betão e a brita. Aqui à porta, por exemplo, assisto a estas manifestações artísticas amiúde.
Tudo começou quando bem à porta de casa me foi plantada uma betoneira em adiantado estado de decomposição, pobrezita, uns buracos aqui e ali, as marcas do cimento e da massa, testemunho indelével das horas infindas de laboração. Nessa altura era fácil indicar aos amigos e visitantes a casa de onde vos teclo estes episódios da vida quotidiana, ao entrarem na rua, a casa é que tem à frente uma betoneira. Assim foi durante uns meses. Depois veio cá o engenheiro, como se sabe os engenheiros não são dados à arte, e ao olhar para o objecto vetusto estrategicamente colocado à porta de casa, viu uma betoneira a cair de velha. Sacou do telemóvel, contactou o autor e, sem qualquer sensibilidade, ordenou a retirada imediata do statement of art. Derramei uma lágrima por trás dos cortinados, enquanto a betoneira era arrastada e afastada para sempre. Tinha ganho afecto ao objecto que de intruso passara a ser decorativo e jamais voltaria a fazer tão boa figura perante os convidados familiarizados com estes meandros e princípios da criação artística.
A partir de então passei a ter de indicar a minha casa pelo número da porta, como o mais comum dos cidadãos, o que neste momento deixou de ter validade, porque agora tenho plantado no jardim um carrinho de mão caduco. Está encostado ao muro, é certo, mais discreto do que a betoneira, mas também tem o seu charme e sempre quebra a monotonia, mas essa, já havia sido quebrada com a cobertura do cerâmico do terraço quando lhe foi sobreposta uma camada espessa de uma gosma elástica, aplicada como o dripping de Pollock mas de uma cor só. E isto é que encanita: tanto artista neste país e porque são apenas Zés ou Maneis pagarão o resto da vida pela sua falta de berço, enquanto semeiam arte nos lares lusos. Não há justiça neste mundo.


imagem: minha

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terça-feira, 14 de agosto de 2007

Reduce, reuse, recycle

A empregada cá de casa é uma mulher trabalhadeira, arrumadeira e empreendedora, com energia de furacão no que toca à velocidade de limpezas e arrumações e com o seu toque de génio no que respeita à reutilização de tupperwares e caixas. Uma qualquer situação em que seja necessário raciocínio rápido e uma solução imediata, aí está ela e, foi por isso que, um destes dias, dei com um pacote de arroz fechado com uma mola de roupa e as estantes da despensa amarradas com sacos de plástico de uma grande superfície, enquanto tardava o arranjo efectivo e duradouro. Caso não se encontre o tupperware amarelo, aquele exactamente onde cabem os queixos frescos encaixadinhos como peças de puzzle é porque estará certamente algures a servir de continente para uns quaisquer objectos. Uma coisa é certa, raramente fica sem reacção e para qualquer mal que se lhe ponha ao caminho nesta cruzada doméstica, encontrará uma solução rápida e aparentemente eficaz. Vive inconsolável com o facto de não haver lixívia cá em casa, é certo, e, a espaços, vai largando o queixume, que pronto, com lixívia é que aquilo ficava bem limpo. Pois ficava, mas não temos e não temos pena.
Quando lhe peço para ter cuidado com o aspirador, porque foi o meu pai que mo ofereceu, ela não se dá por achada e responde-me com ar doce e carinhoso, regra geral acompanhado por um pequeno suspiro lamuriento que o meu pai me deu também a possibilidade de poder comprar outro, sortuda eu, o que não sendo totalmente mentira, me fez pensar que valor estimativo não é sequer um conceito para este ser peculiar. A prova dos nove veio quando me contou que alguém tinha perdido um anel, mas que não era como os meus, era um dos outros, sendo que um dos outros é de ouro amarelo e transbordante de brilhantes, presumo. Os que habitualmente ela vê cá em casa espalhados entre o prato da balança e a mesa-de-cabeceira têm formas voluptuosas, detectam-se à légua, mas materiais refulgentes não são a sua característica distintiva, logo não valem coisa nenhuma.
Estaria cá não há muito, quando, um belo dia de limpezas, cheguei ao meu quarto e vi a Senhora do Ó do Mestre José Franco, oferecida pela minha mãe e pela Dinha, a servir de amparo para os cortinados, entalados que estavam entre a parede e a santa, orgulhosamente afagando a barriga rotunda com as mãos beatíficas. Fiquei lívida, com palpitações, as veias a latejar nas têmporas e uma voz interior obrigava-me a soltar uns quantos impropérios. Serenei a voz e delineei uma estratégia. Nomear a minha mãe e a Dinha, dizer que aquela peça é única e que tem um valor estimativo incalculável de nada serviria, portanto, disse-lhe apenas que era uma peça caríssima e pedi-lhe para não mais usar a Senhora do Ó como suporte para cortinados. A mesma sorte não teve o cesto das molas. Não tendo sido oferecido por ninguém, certamente por o meu pai me ter dado a oportunidade de poder comprar outro, quando se resvalou no chão por artes de berliques e berloques, foi liminarmente deitado no lixo e a substitui-lo tenho agora um saquinho de papel duma perfumaria conhecida. Imaginação não se pode dizer que lhe falte. É melhor assim do que ter a Senhora do Ó no parapeito da cozinha com as molas pregadas no manto, mesmo à mão de semear, prontas a utilizar.