sábado, 22 de fevereiro de 2025

Grande Angular - Democracia e boa educação

 O Chega não é bem-educado. Nem quer ser. A sua aparente má-criação é uma escolha e um instinto. Ser grosseiro e garoto, por vezes racista e intolerante, outras vezes presunçoso e sempre machista, fazem parte do estilo retórico e dos atributos dos deputados do Chega. Uns são-no naturalmente, outros vão-se forjando à medida em que desempenham as suas funções. Os deputados do Chega são, uns, polidos e bem-educados; outros, são simplesmente ordinários. Mas todos, ou quase, utilizam o modo áspero porque é essa a escolha do partido. Enquanto não fazem totalmente parte do sistema, têm de se comportar como “troublemakers” (agitadores ou desordeiros).

 

Apesar desta evidência, há, entre os democratas bem-comportados, alinhados e cinzentões, uma onda de revolta contra os modos do Chega. Já se fala em proibições, expulsões do hemiciclo, suspensão de mandato e pagamento de multas. Além disso, tudo leva a crer que está em formação uma comissão, ou qualquer coisa parecida, mandatada para definir regras e elaborar códigos. A aprovação de Códigos de Conduta e de elencos do que se deve ou não deve dizer, do que se pode ou não pode dizer, está no espírito de muitas almas aprumadas e reverentes.

 

É de arrepiar esta espécie de inocência bem-pensante. Depois de cinquenta anos de democracia e de liberdade de imprensa, após três ou quatro décadas de Internet e de redes sociais, passadas que são dezenas de anos de explosão das liberdades públicas, ainda há quem pense que é possível e aconselhável elaborar códigos de comportamento e normas de boa educação! “Como ser um cavalheiro no Parlamento”, “Como se comportar numa assembleia democrática” e “Como ser um político bem-educado” são títulos de livros que esperam por nós!

 

Com estas ideias, teríamos de rever uma parte importante da nossa literatura. Muito que se escreveu desde meados do século XIX, até à implantação da ditadura, seria hoje condenado por blasfémia e retórica antidemocrática. Camilo Castelo Branco, Eça de Queiroz e Rafael Bordalo Pinheiro, entre tantos outros, seriam censurados e banidos da imprensa pelo vigilantes das polícias ou das Cortes.

 

Que se aspire a que os nossos representantes, nacionais ou autárquicos, pensem bem, falem melhor, saibam exprimir-se sem recorrer a lugares comuns e fujam das banalidades cruas e boçais, é legítimo. Que se pense que tudo isso depende de um código e de normas, para já não dizer de multas e castigos, já é do domínio do infantil onírico. Ou do despotismo.

 

Qualquer proposta de elaboração do que quer que seja tem de começar por resolver os primeiros problemas. Quem define os palavrões permitidos e os proibidos? Quem estabelece a lista dos pensamentos pecaminosos traduzidos em expressões verbais públicas? Quem define os valores morais, culturais e estéticos que presidem à elaboração do código de conduta? Quem define o que é o discurso de ódio? Quem enumera as expressões e os pensamentos capazes de traduzir qualquer tipo de ódio a proibir, racista, religioso, de género, sexual ou social? Quem define e quem aprova? Quem traça as fronteiras do interdito e do legítimo? Quem são esses novos Sacerdotes ou Comissários da democracia que estabelecem as linhas morais?

 

Quem define os conteúdos, as formas e as fronteiras de três das mais frequentes realidades da vida e do debate público, a mentira, o insulto e a calúnia? Quem é capaz de traçar linhas de definição para estes casos na vida política e parlamentar, recheada, como está, de confronto adversário e de afrontamento radical, aos quais nunca faltam a energia crua e a imaginação, com os seus meios excessivos?

 

Seria bom que, antes de iniciarem cogitações sobre estes temas, partidos e deputados pensassem duas vezes nas dificuldades em encontrar quem seja capaz de elaborar essas regras de modo independente, equidistante de todas as políticas, isento de qualquer condicionante e livre de qualquer dependência. Convém não esquecer que os que definiriam, vigiariam e aplicariam tais regras podem ser muito diversos segundo as suas próprias convicções, crenças, valores, origens sociais e outras. O que é malcriado aqui, não o é ali. O que é ódio para uns, não é para outros. São muito diversas as concepções de grosseiro, ordinário e insulto próprias de um académico, de um militar, de um trabalhador, de um capitalista, de um analfabeto, de um rural e de um citadino.

 

O que querem exactamente os bem-intencionados da democracia? Querem mesmo cuidar da qualidade do debate democrático? Ou querem sobretudo calar o Chega? Aliás, o que se pretende realmente? Um código de conduta e um regimento de retórica que valem para o Parlamento ou também para todos os outros órgãos políticos? E o que assim valeria para o debate parlamentar, condicionaria também os comícios, as entrevistas aos jornais e os programas de televisão? Um deputado poderia insultar um governante ou outro deputado na rua, no jornal e na televisão? E por que não na Assembleia?

 

Com certeza que convém, na Constituição e nos Regimentos, consagrar princípios genéricos como a cortesia, a boa educação, a urbanidade, a civilidade e a polidez de cavalheiros. Assim como o rigor nas contas e a precisão na análise. E esperar que o presidente do parlamento, com a sua perspicácia e a sua experiência, saiba dirigir e manter o recato e os bons costumes. Advertir o deputado, cortar o microfone, interromper a sessão ou mandar sair da sala são meios e instrumentos eficazes, visíveis e compreensíveis, que têm capacidade para ajudar a resolver problemas. Mais do que isso, só espíritos particularmente inocentes ou mal-intencionados seriam capazes de esperar que um qualquer Código Moral teria real eficácia. Pior ainda: quem espera por regras morais e normas de conduta espera, na verdade, poder impor uma forma de moral aos outros, aos deputados e aos que o não são.

 

Há deputados e governantes mal-educados, incultos e grosseiros? Há. Sempre houve. Umas vezes mais visíveis, outras mais recatados. Há deputados e governantes mentirosos, caluniadores, capazes de faltar às leis, com cadáveres no armário e com currículo de uso dos meios do Estado em benefício próprio ou dos seus amigos? Há. Sempre houve. Umas vezes em quantidades abundantes, outras mais moderadas. Para os primeiros casos, as soluções são conhecidas: o exemplo, a opinião pública e uma imprensa livre. Para os segundos, as soluções são também conhecidas: as leis e os tribunais. Em todos os casos, a opinião pública ajuda.

.

Público, 22.2.2025

sábado, 15 de fevereiro de 2025

Grande Angular - O debate está na praça pública

 Bem ou mal, bem e mal, a questão da imigração está no centro dos debates políticos que vão dominar as próximas eleições, das autárquicas e legislativas, às europeias e presidenciais. Assim como ocupar discussões parlamentares e académicas. Não há por onde fugir e ainda bem. Vão aos poucos desaparecer os que insistem em que “não há problema”, que “é só racismo”, que não passa de uma “moda nacionalista”. Vão-se encolhendo os que garantem que as soluções são simples, tal como “fechar as portas aos imigrantes” ou “abrir as portas aos que querem para cá vir”. Nunca se calarão, mas falarão mais baixo, os que asseguram que os nacionais são virtuosos e os estrangeiros pulhas. Já se percebeu que não faz sentido garantir que os imigrantes sejam todos iguais, legais ou ilegais, estrangeiros ou naturalizados, de primeira ou segunda geração, respeitadores da lei ou criminosos, de cultura e tradição próximas ou absolutamente alheias e distantes das portuguesas. É bom que assim seja. Que se diga tudo. Que haja divergências e acordos. Que se consiga melhorar a legislação e a vida no espaço público. 

 

Se assim for, se a discussão pública tiver como efeito a moderação dos preconceitos e o melhoramento da legislação e se aumentar um pouco a racionalidade dos argumentos, vale a pena contribuir para o debate. A começar pela enumeração de princípios e valores, que poderá contribuir para a formação de opiniões.

 

As pessoas não têm o direito de imigrar para o país que lhes apeteça, de ter autorização legal para se estabelecer onde quer que seja e instalar-se ilegalmente onde quiserem. As pessoas têm o direito de solicitar residência, autorização, ajuda e apoio noutros países. Os países de acolhimento possível têm o dever de responder afirmativa ou negativamente a qualquer solicitação, com autoridade e humanismo, de acordo com as suas leis e com as suas capacidades.

 

Cada povo tem o direito de escolher quem prefere ou a quem oferece melhores condições de acolhimento. A inversa não é verdade: um povo não tem o direito de se instalar onde quiser, nas condições que prefere. As regras são feitas pelos povos dos Estados de acolhimento.

 

Os imigrantes não têm os mesmos direitos do que os nacionais (naturais ou naturalizados). A começar pelo direito de voto nas eleições, nomeadamente as que implicam a criação e a escolha dos órgãos de soberania, a revisão ou a aprovação da Constituição, a declaração de guerra e paz ou as decisões sobre o Estado de sítio.

 

Qualquer povo tem o direito de exigir reciprocidade de direitos com os países de proveniência dos imigrantes legais (com exclusão dos refugiados políticos). Não é obrigatório fazê-lo, mas pode fazê-lo.

 

Um Estado deve garantir a universalidade dos direitos fundamentais, por exemplo vida, justiça, liberdade de expressão, segurança social, saúde e educação, não distinguindo entre imigrantes ou nacionais. Mas os direitos políticos dos imigrantes, designadamente o direito de voto e de participação nas eleições, podem ser reduzidos, restritos e diferentes dos direitos dos cidadãos nacionais (ou naturalizados).

 

Um Estado tem o direito e o dever de proibir práticas e costumes que infrinjam directamente as suas leis vigentes, mas também práticas e costumes que, sem infringir directamente as leis, contrariem direitos fundamentais ou regras estabelecidas, como nos casos de incesto, de vestuário que contraria direitos de outrem (o uso da Burca, por exemplo), de violência paterna ou materna, de ameaças conjugais e de tratamento dos animais.

 

Um Estado tem o direito e o dever de proibir todas as práticas condenadas nas suas leis, mas permitidas nas leis dos países de origem dos povos imigrantes: poligamia, excisão, casamento forçado, casamento contratado, uso de véus que escondem a identidade, proibição de frequentar o espaço público, justiça pelas próprias mãos, todas as formas da “lei de Talião” e negação de direitos às mulheres e às crianças.

 

Um Estado tem o direito e o dever de facilitar a imigração e a legalização de quem se predisponha a aceitar medidas de integração, designadamente aprendizagem da língua. Um Estado tem o direito de proibir ou punir pessoas e comunidades imigradas que se recusem, por exemplo, a frequentar a escola obrigatória nacional.

 

Um Estado tem o direito (até talvez o dever…) de exigir que os imigrantes cumpram todos os deveres de legalidade, de inscrição e contribuição para os sistemas nacionais de impostos, segurança social e outros. Um Estado tem o direito de não conceder acesso aos serviços sociais e públicos a quem não se encontra devidamente legalizado e registado.

 

Um Estado tem o direito e o dever de garantir que o trabalho imigrante não contribua para a redução dos salários, nem para a exploração dos imigrantes nas suas condições de alojamento e de emprego.

 

Um Estado tem o direito de contemplar a recusa de autorização e a suspensão, a expulsão ou a deportação de estrangeiros imigrantes não naturalizados, em casos de crimes tipificados, incluindo as falsas declarações para obter autorizações de residência e trabalho, os crimes violentos e o tráfico de produtos proibidos e ilegais.

 

Um Estado tem o direito e o dever de aprovar uma política de população e de imigração, indispensável para o respeito pelos direitos dos cidadãos nacionais e dos imigrantes. A exploração de imigrantes, o abaixamento dos níveis de salários, a habitação em péssimas condições, o tráfico de trabalho, as redes internacionais de pessoas e de bens ilícitos e a desorganização dos serviços públicos resultam também da falta de políticas de migração. O descontrolo e a desatenção das autoridades relativamente às questões das migrações só agravam as vidas dos nacionais e dos imigrantes, incluindo o não reconhecimento dos seus direitos.

 

Do ponto de vista internacional e demográfico, Portugal tem uma situação muito interessante, pois é simultaneamente país de emigração e país de imigração. O facto traduz realidades menos felizes (há falta de oportunidades para os nacionais, ao mesmo tempo que há falta de trabalhadores para muitas actividades). O país perde população com aptidões e recebe população sem qualificações. Mas, ao mesmo tempo, permite ter uma visão mais completa dos problemas. Nesse sentido, Portugal tem o direito e o dever de exigir aos imigrantes o que outros países exigem aos emigrantes portugueses. Com uma certeza: são os países autoritários, as ditaduras, que proíbem as migrações.

.

Público, 15.2.2025

domingo, 9 de fevereiro de 2025

Grande Angular - Vencedores e derrotados

 Parece haver consenso: vivemos tempos de mudança e de transição como não se via há décadas. É tão forte, profunda e rápida esta mudança, cujo princípio conhecemos e cujo fim nem sequer imaginamos, que não é arriscado afirmar que, dentro de vinte ou trinta anos, aos olhos de hoje, o mundo será irreconhecível.

 

Não é o conceito abstracto de mudança que suscita apreensão. Na verdade, sempre o mundo mudou. Devagar ou depressa. Pacífica ou tumultuosamente. Para melhor ou pior. Mas sempre mudou. “O mundo é feito de mudança”, como está escrito há séculos. O que inquieta muitos são a radicalidade e a velocidade da mudança.

 

A verificação de que estamos em grande, secular e histórica mudança é comum a muita gente, é visível todos os dias. As balanças de poderes económicos, sociais, políticos, financeiros, militares, culturais e religiosos, nem sempre coincidentes, são já hoje o que nem sequer se imaginava há quarenta anos. Não se sabe se esta mudança, esta transição global e profunda, ainda vai no princípio ou se vai a meio caminho. Só sabemos que não está no fim. Ao contrário da mudança quotidiana, permanente, feita de mais ou menos solavancos, de transformações e ajustamentos imperceptíveis, a transição de que aqui se fala é mais rápida e mais brutal, a ponto de se poder afirmar que, em poucos anos, o ponto de chegada se encontra a anos-luz do ponto de partida.

 

Em todas as mudanças, sempre houve vencedores e derrotados. E sempre foi perigoso lidar com uns e com outros. Os vencedores afirmam-se dominando, conquistando, explorando e comandando, à força ou com jeito. Os vencidos reagem sempre mal, com sabor amargo da derrota, deixando-se submeter ou procurando a vingança.

 

Na actual transição, é o mundo inteiro que está em causa. Ninguém escapa. E todos serão vencedores ou derrotados. Perdem a Europa e os Estados Unidos, cuja hegemonia cessou inexoravelmente. Perde o Ocidente liberal. Perde o Império Russo, czarista, soviético ou plutocrata. Ganha a China. Ganham os outros grandes países asiáticos (a começar pela Índia). Perde a África, em conjunto ou aos bocados. Ganham os países islâmicos, sobretudo os produtores de petróleo. Perde a América Latina, a do continente ou a dos países individuais.

 

O passado recente ajuda-nos a perceber. Basta olhar para a participação de cada conjunto geográfico e político no total. Ver o que cada parte representa no total do mundo do PNB, da riqueza disponível, da população, do emprego, da força militar, da produção industrial, das patentes registadas, das exportações e de outros temas e sectores com significado. Em cada um destes sectores ou temas, com raras excepções, a Europa está sempre a perder importância. Já representou, ainda há pouco tempo, um quarto ou um terço do total mundial do produto, está agora próxima dos 10% ou pouco mais.  Até os Estados Unidos, em vários destes temas, deixaram de ter posição dominante. Antigamente, os Estados Unidos ditavam. Hoje, tentam a guerra comercial.

 

Que vão fazer, nesta transição, nesta quase reviravolta, os derrotados? E os vencedores? Olhando com cautela para a Europa, a América, a Rússia e a Ucrânia, a China e Taiwan e quase toda a África, rapidamente se percebe que grandes acontecimentos e grandes dramas esperam por nós.

 

Mas há assuntos que nos afligem mais. Perder domínio político ou poder económico é duro e difícil. Mas, perder a liberdade e a democracia é um verdadeiro desastre. Ora, aquilo de que aqui se fala é provavelmente, desde meados do século XX, o maior perigo ou a maior ameaça contra a sociedade democrática ocidental e contra o regime de democracia liberal. Estamos a assistir ao recuo da democracia e das tentativas democráticas em todo o mundo desde finais do século XX. O mundo democrático tem hoje menos poder e menos importância do que há algumas décadas. E há cada vez menos povos e menos Estados que aspiram a uma qualquer forma de democracia.

 

Há, evidentemente, ameaças “internas “e “externas”. Entre as primeiras, a ascensão rápida da extrema direita e gradual da extrema-esquerda. Ou as fissuras abertas entre aliados, como sejam os Estados Unidos e a Europa. Assim como os erros sucessivos dos governos democráticos. Para já não falar do crescimento do populismo e dos plutocratas. Além, evidentemente, do êxito das ideias antidemocráticas favoráveis às “políticas correctas” do género, das minorias, das raças e do multiculturalismo acrítico.

 

Quanto às ameaças externas, estas encontram-se previsivelmente na concorrência internacional, na competição política e militar e na guerra comercial agora desencadeada. E nas ambições dos novos poderes.

 

Além da velha rivalidade entre continentes, países e Estados, vivemos agora um confronto entre democracia e não democracia. Entre liberalismo e autoritarismo. O Ocidente e a democracia já perderam muito. Os regimes não democráticos ganham, dia a dia, posições importantes. Na força militar, na economia, na produção industrial e no acesso a recursos naturais no mundo inteiro. Pior ainda do que este confronto é a ascensão permanente, dentro das democracias, das vozes, das populações, dos políticos e dos eleitores não democráticos. A este fenómeno deve-se grande parte do declínio da democracia, tanto quanto ao avanço da não democracia.

 

Talvez o recuo da democracia e da liberdade dos ocidentais seja inevitável. Mas o que é decisivo não é o renascimento imperial. É, isso sim, a preservação das liberdades internas e da democracia como valor inalienável. E insubstituível. Mas há dificuldades no caminho. A primeira reside no facto de a diminuição de força económica e militar poder acarretar a perda de força política e o declínio da segurança democrática. A segunda encontra-se claramente no facto de as convicções democráticas e a crença nas liberdades estarem enfraquecidas pela abdicação e pela descrença. A Europa, o Ocidente, a democracia e as liberdades não estão em perda apenas na competição internacional. Começam a ser derrotadas pelos próprios. Por nós.

Público, 8.2.2025