sábado, 8 de março de 2025

Grande Angular - É assim que os homens vivem?

Será assim? Mentindo? Fingindo? Acusando sem razão? Disfarçando? Fazendo de conta? Perdendo tempo e energias? Desperdiçando oportunidades? Enganando-se a si próprios? Louvando os seus defeitos e desprezando as qualidades dos seus rivais? Ludibriando os eleitores? Elevando à categoria de arte os mais reles sentimentos? Alimentando a corrupção e deixando vegetar o favoritismo? Sendo complacente com a aldrabice? Praticando o nepotismo e o favoritismo impunes? Escapando à justiça como rápidas aves de rapina?

 

A presente crise de governo, de partidos, de instituições democráticas e de estabilidade não resulta de agitação social, de problemas económicos graves e repentinos, de perturbações internacionais e financeiras, nem de qualquer desastre sanitário, climático ou natural. Pelo contrário, é a crise política, o protagonismo dos políticos, a autoridade política e a condução política do Estado e da nação que criam ou vão criar problemas económicos e financeiros, debilidade institucional, vulnerabilidade democrática e desordem social. E também é a crise política que provoca dois dos fenómenos mais nefastos da vida nacional: a abstenção (ou desinteresse) e o partido Chega.

 

O enredo da crise actual mais parece obra de inspiração do Teatro de Revista. Ninguém mostra bem o que é nem o que quer. Ninguém é o que parece. Ninguém cumpre o que promete. A mentira e a dissimulação são artes criativas, não são defeitos. Nenhum partido deseja eleições. Mas todos acusam os outros de as querer. Todos os partidos garantem que estão prontos para eleições, estão sempre prontos para eleições, mas na verdade não estão preparados, nelas não vêem vantagens seguras porque nelas não adivinham promessas de vitórias. Realmente só querem eleições quando sentem que as podem ganhar ou quando acreditam que podem aumentar, por pouco que seja, os seus grupos parlamentares ou as suas hipóteses de entrar para o governo. Na verdade, estão dispostos a tudo para as evitar. Cedem uma moção de censura, negoceiam uma comissão de inquérito, trocam uma moção de confiança e mercadejam um inquérito da Procuradoria. Ameaçam dizer tudo sobre os outros, contra os outros, mostram-se dispostos a revelar, mantidos em carteira para estas ocasiões, negócios e mentiras dos outros. Tratam das moções de censura e de confiança, ou antes, da vida parlamentar, como quem joga matraquilhos. Aliás, terá sido talvez nestas últimas legislaturas que a actividade parlamentar mais se rebaixou. As comissões de inquérito transformaram-se nas arenas preferidas para as artes e as manhas. O tom do debate conheceu novos precipícios de má-criação e de hostilidade gratuita. As exibições televisivas destruíram a qualidade nobre da discussão parlamentar.

 

Havia quase tudo. Há talvez dez anos, mais ou menos, parecia não faltarem motivos de esperança e energia. Ordem social de qualidade razoável. Algum capital nacional e promessa de muito capital europeu. Números e indicadores económicos que desmentiam os cépticos. Hipóteses de estabilidade política e institucional. Colaboração intencional entre Governo, Parlamento e Presidente da República. Uma atenção cuidadosa do resto do mundo, dos europeus, dos americanos e dos outros continentes, para os trunfos portugueses.

 

Lentamente, paulatinamente, tudo se modificou e tudo se agravou. Cada vez mais os portugueses procuram ir viver para o estrangeiro, sobretudo os jovens, os técnicos, os formados e os quadros. A saúde perdeu o pé e desorganiza-se. A capacidade de oferecer oportunidades aos imigrantes transformou-se numa quase indústria de tráfico ilegal, de redes criminosas, de angariadores sem escrúpulos e de empregadores mestres em exploração do trabalho clandestino. Depois de revelar uma inesgotável energia na sua contribuição para a mudança e o progresso, o turismo transformou-se numa hecatombe destruidora da urbanidade, da qualidade de vida, da solidez económica e da paisagem. Gradualmente, através da segregação social e graças ao descontrolo das políticas demográficas e de imigração, a sociedade portuguesa desenvolve apartheids e inventa novas formas de exclusão. O país parece especializado em oferecer, aos imigrantes pobres, vastas oportunidades de habitação esquelética, de quartos sórdidos, de empregos desvalorizados, de estatuto de inferioridade, de salários miseráveis e de vida paralela. Empresas e sectores públicos foram sendo desbaratados, desorganizados, entregues a outros interesses estrangeiros, públicos ou privados, mas não certamente interpretes do interesse nacional.

 

Há, evidentemente, boas notícias. Nalguns sectores da ciência e da técnica, numa ou noutra arte, na ressurreição de aglomerações do interior ou da província, na actividade cultural de algumas câmaras municipais, na vida de umas tantas empresas de sectores muito especiais e em certas produções agrícolas, como o vinho e as hortofrutícolas em geral. Mas não são essas as tendências dominantes. Os “nichos” de progresso, de justiça, de criatividade e de bem-estar são isso mesmo, “nichos” minoritários. 

 

É assim que os homens vivem? À beira do precipício e a preparar o desastre? Defendendo ferozmente a liberdade de mentir e fingir? É assim que os partidos sobrevivem, mas não é assim que os homens vivem. Por entre dores e sofrimento, no meio de alegrias e felicidade, sempre à beira da contradição, entre a sorte e a ameaça, como talvez dissessem Aragon e Ferré, não é assim que os homens querem viver. Era bom que as elites, os políticos, os artistas e os dirigentes da empresa e do trabalho percebessem.

 

Sabemos que a política é uma actividade humana. Como as outras. Com todos os defeitos e virtudes. Como a economia, a escola, a empresa, a religião, a cultura ou o futebol. Mas também sabemos que a política não é uma actividade como as outras. Porque é feita em nosso nome. 

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Público, 8.3.2025

sábado, 1 de março de 2025

Grande Angular - A consciência tranquila

 Quase nunca falha. Quando um político, governante, deputado ou autarca, um dirigente da Administração Pública, um Magistrado, um empresário ou um agente da autoridade lhe disser, a propósito de casos de corrupção ou equiparados, que “tem a consciência tranquila”, é quase certo, mesmo quase, que tem qualquer coisa que não bate certo. Culpa, cumplicidade ou interesse, não se percebe bem. Mas ninguém acredita. “Ter a consciência tranquila” é uma das piores confissões involuntárias que se conhecem. A tranquilidade da consciência sucede a explicações públicas tardias e incompletas, de transparência discutível.

 

O universo da promiscuidade e da corrupção é tal que não se consegue saber onde começa e acaba, onde é frequente ou raro. Nas autorizações de construção? No futebol? Na venda de património do Estado? Na aquisição pelo Estado de grandes equipamentos, sistemas e material de guerra, etc.? Na aprovação de projectos (comboios, aeroporto, etc.) verdadeiras âncoras de actividades ilícitas?

 

Por outro lado, é verdade que as tradições se têm revelado maleáveis perante este universo das influências e do favoritismo. Colocar amigos, familiares, correligionários e companheiros parece fazer parte do comportamento político. Ocupar lugares na Administração, no sector público e empresarial, nas autarquias e nas empresas é actividade quotidiana. Receber pensões, bolsas, avenças e indemnizações de grandes montantes e enorme escala, em contas estranhas, numeradas ou com pseudónimo, algures no mundo, das Caraíbas ao Luxemburgo, da Ásia ao Próximo Oriente, parece possível. Tomar decisões “estruturais” sobre sectores da economia, empresas e autorizações a longo prazo, que condicionam e facilitam futuros investimentos, processa-se num “caldo de cultura” aparentemente “normal” e “legal”, que pouco tem de um e de outro. Receber presentes, de relógios de pulso e viagens de jacto privado a fundos e doações pode parecer aceitável. Receber comissões fictícias por favores e decisões a tomar, ainda no segredo dos deuses, não parece ser grave. Emprego para a filha e o neto, colocação para o cunhado e a sobrinha ou cargo para a mulher do amigo ou o tio da amiga parece já não chocar, a não ser que seja necessário tornar pública uma campanha de demolição pessoal. 

 

Mas depois… há o clima mental contra os ricos, contra os proprietários, contra quem tem o que quer que seja, capital, acções ou quotas. Parece que só pode fazer política quem tenha a educação restrita, o salário mínimo, um emprego do Estado, uma função na autarquia ou um cargo no partido. Por outras palavras, quem trabalhe para o Estado ou quem ganhe muito pouco e não tenha bens nem propriedades. São ideias macabras que diminuem direitos, criam desigualdades e provocam ainda mais corrupção.

 

Há o ambiente da “ética republicana”, recurso retórico, mas que, na verdade, se traduz simplesmente na regra de fácil acepção: quem tem os votos, manda. Quem não tem os votos, obedece. Quem tem os votos, nomeia e decide. Quem não tem, cala e consente. Evidentemente, há uma variante: a regra republicana aplica-se bem quando somos “nós” quem tem os votos… Quando são “os outros”, a regra então é a de respeitar a oposição, no melhor espírito republicano. Esta “ética republicana”, associada a políticas moderadas e a alianças ponderadas, poderia servir de incentivo às reformas e à moralização democrática da sociedade. Não! Em vez disso, parece ser um estímulo ao favoritismo. 

 

Em tantos casos conhecidos na história recente do nosso país, o problema parece estar mais do lado da explicação do que da acção. Muitas vezes, diante da verdade, os visados reagem mal, não reagem, negam, garantem a consciência tranquila, depois corrigem, logo a seguir rectificam, depois esclarecem, mais tarde clarificam, não sem antes acrescentar uns pormenores que ficaram na penumbra…. Passam dias, semanas e meses, com cenas indecorosas de acusações mais ou menos fabricadas e de defesas pusilânimes, sempre com o esclarecimento mínimo. A cada explicação enviesada, surge mais um pormenor que complica. O que parece uma falta, um esquecimento, cedo se torna num pecadilho, rapidamente transformado em pecado venial, pecado leve, antes de vir a ser pecado mortal e falta grave. 

 

É difícil perceber a razão pela qual, após cinquenta anos de democracia e dezenas ou centenas de casos de corrupção, favoritismo, peculato ou prevaricação, um eleito, autarca, deputado ou governante, não trata, na véspera de tomada de posse, de vender o que tem e não deve ter, de criar um “blind trust” e de revelar tudo o que fez e tem e que possa ser considerado fonte de conflito de interesses. Não se entende a perversão moral e política que leva os eleitos a considerar que “a eles” nunca chegarão, que nunca nada de mal fizeram e que venais são os outros. Não se compreende a razão pela qual um eleito, um político, um alto funcionário não sente sequer o receio do abismo, o medo de ser apanhado, o risco de estar numa posição em que inimigos, adversários, invejosos e justiceiros tudo farão para os descobrir. 

 

No campo das respostas a estes mistérios, há uma primeira, interessante, mas insuficiente. Na verdade, os visados estão de tal maneira cheios de si próprios, convencidos de que a pátria ou a autarquia não podem viver sem eles e certos de que tudo quanto pensam e fazem só pode ser para bem de todos, que não lhes ocorre sequer que o que fazem ou deixam de fazer não o seja em nome da virtude e para o bem de todos. Esta hipotética candura serve para telenovelas, mas não convence.

 

Talvez a resposta seja outra. O que explica a falta de instinto de sobrevivência e a ausência de medo de perda de honra é o sentimento de impunidade. A ideia de que a justiça nunca chega ou, quando chega, é tarde e mal. A sensação de que o processo judicial é de tal modo condicionado, vulnerável, burocrático e injusto, que a “sua vez” nunca chegará. A esperança de que haja sempre meios para convencer jornalistas e outros profissionais a orientar as denúncias e as explicações. A justiça falha neste universo de complacência. Falha o sistema e falham muitos dos seus magistrados e oficiais. Não necessariamente que sejam corruptos, mas não têm noção do que depende deles, do que de importante seria o seu contributo para uma sociedade mais justa. A promiscuidade entre política, Administração e Justiça é tão profunda que a complacência tem esse efeito, o de “normalizar” o que não o deveria ser.

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Público, 1.3.2025

sábado, 22 de fevereiro de 2025

Grande Angular - Democracia e boa educação

 O Chega não é bem-educado. Nem quer ser. A sua aparente má-criação é uma escolha e um instinto. Ser grosseiro e garoto, por vezes racista e intolerante, outras vezes presunçoso e sempre machista, fazem parte do estilo retórico e dos atributos dos deputados do Chega. Uns são-no naturalmente, outros vão-se forjando à medida em que desempenham as suas funções. Os deputados do Chega são, uns, polidos e bem-educados; outros, são simplesmente ordinários. Mas todos, ou quase, utilizam o modo áspero porque é essa a escolha do partido. Enquanto não fazem totalmente parte do sistema, têm de se comportar como “troublemakers” (agitadores ou desordeiros).

 

Apesar desta evidência, há, entre os democratas bem-comportados, alinhados e cinzentões, uma onda de revolta contra os modos do Chega. Já se fala em proibições, expulsões do hemiciclo, suspensão de mandato e pagamento de multas. Além disso, tudo leva a crer que está em formação uma comissão, ou qualquer coisa parecida, mandatada para definir regras e elaborar códigos. A aprovação de Códigos de Conduta e de elencos do que se deve ou não deve dizer, do que se pode ou não pode dizer, está no espírito de muitas almas aprumadas e reverentes.

 

É de arrepiar esta espécie de inocência bem-pensante. Depois de cinquenta anos de democracia e de liberdade de imprensa, após três ou quatro décadas de Internet e de redes sociais, passadas que são dezenas de anos de explosão das liberdades públicas, ainda há quem pense que é possível e aconselhável elaborar códigos de comportamento e normas de boa educação! “Como ser um cavalheiro no Parlamento”, “Como se comportar numa assembleia democrática” e “Como ser um político bem-educado” são títulos de livros que esperam por nós!

 

Com estas ideias, teríamos de rever uma parte importante da nossa literatura. Muito que se escreveu desde meados do século XIX, até à implantação da ditadura, seria hoje condenado por blasfémia e retórica antidemocrática. Camilo Castelo Branco, Eça de Queiroz e Rafael Bordalo Pinheiro, entre tantos outros, seriam censurados e banidos da imprensa pelo vigilantes das polícias ou das Cortes.

 

Que se aspire a que os nossos representantes, nacionais ou autárquicos, pensem bem, falem melhor, saibam exprimir-se sem recorrer a lugares comuns e fujam das banalidades cruas e boçais, é legítimo. Que se pense que tudo isso depende de um código e de normas, para já não dizer de multas e castigos, já é do domínio do infantil onírico. Ou do despotismo.

 

Qualquer proposta de elaboração do que quer que seja tem de começar por resolver os primeiros problemas. Quem define os palavrões permitidos e os proibidos? Quem estabelece a lista dos pensamentos pecaminosos traduzidos em expressões verbais públicas? Quem define os valores morais, culturais e estéticos que presidem à elaboração do código de conduta? Quem define o que é o discurso de ódio? Quem enumera as expressões e os pensamentos capazes de traduzir qualquer tipo de ódio a proibir, racista, religioso, de género, sexual ou social? Quem define e quem aprova? Quem traça as fronteiras do interdito e do legítimo? Quem são esses novos Sacerdotes ou Comissários da democracia que estabelecem as linhas morais?

 

Quem define os conteúdos, as formas e as fronteiras de três das mais frequentes realidades da vida e do debate público, a mentira, o insulto e a calúnia? Quem é capaz de traçar linhas de definição para estes casos na vida política e parlamentar, recheada, como está, de confronto adversário e de afrontamento radical, aos quais nunca faltam a energia crua e a imaginação, com os seus meios excessivos?

 

Seria bom que, antes de iniciarem cogitações sobre estes temas, partidos e deputados pensassem duas vezes nas dificuldades em encontrar quem seja capaz de elaborar essas regras de modo independente, equidistante de todas as políticas, isento de qualquer condicionante e livre de qualquer dependência. Convém não esquecer que os que definiriam, vigiariam e aplicariam tais regras podem ser muito diversos segundo as suas próprias convicções, crenças, valores, origens sociais e outras. O que é malcriado aqui, não o é ali. O que é ódio para uns, não é para outros. São muito diversas as concepções de grosseiro, ordinário e insulto próprias de um académico, de um militar, de um trabalhador, de um capitalista, de um analfabeto, de um rural e de um citadino.

 

O que querem exactamente os bem-intencionados da democracia? Querem mesmo cuidar da qualidade do debate democrático? Ou querem sobretudo calar o Chega? Aliás, o que se pretende realmente? Um código de conduta e um regimento de retórica que valem para o Parlamento ou também para todos os outros órgãos políticos? E o que assim valeria para o debate parlamentar, condicionaria também os comícios, as entrevistas aos jornais e os programas de televisão? Um deputado poderia insultar um governante ou outro deputado na rua, no jornal e na televisão? E por que não na Assembleia?

 

Com certeza que convém, na Constituição e nos Regimentos, consagrar princípios genéricos como a cortesia, a boa educação, a urbanidade, a civilidade e a polidez de cavalheiros. Assim como o rigor nas contas e a precisão na análise. E esperar que o presidente do parlamento, com a sua perspicácia e a sua experiência, saiba dirigir e manter o recato e os bons costumes. Advertir o deputado, cortar o microfone, interromper a sessão ou mandar sair da sala são meios e instrumentos eficazes, visíveis e compreensíveis, que têm capacidade para ajudar a resolver problemas. Mais do que isso, só espíritos particularmente inocentes ou mal-intencionados seriam capazes de esperar que um qualquer Código Moral teria real eficácia. Pior ainda: quem espera por regras morais e normas de conduta espera, na verdade, poder impor uma forma de moral aos outros, aos deputados e aos que o não são.

 

Há deputados e governantes mal-educados, incultos e grosseiros? Há. Sempre houve. Umas vezes mais visíveis, outras mais recatados. Há deputados e governantes mentirosos, caluniadores, capazes de faltar às leis, com cadáveres no armário e com currículo de uso dos meios do Estado em benefício próprio ou dos seus amigos? Há. Sempre houve. Umas vezes em quantidades abundantes, outras mais moderadas. Para os primeiros casos, as soluções são conhecidas: o exemplo, a opinião pública e uma imprensa livre. Para os segundos, as soluções são também conhecidas: as leis e os tribunais. Em todos os casos, a opinião pública ajuda.

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Público, 22.2.2025

sábado, 15 de fevereiro de 2025

Grande Angular - O debate está na praça pública

 Bem ou mal, bem e mal, a questão da imigração está no centro dos debates políticos que vão dominar as próximas eleições, das autárquicas e legislativas, às europeias e presidenciais. Assim como ocupar discussões parlamentares e académicas. Não há por onde fugir e ainda bem. Vão aos poucos desaparecer os que insistem em que “não há problema”, que “é só racismo”, que não passa de uma “moda nacionalista”. Vão-se encolhendo os que garantem que as soluções são simples, tal como “fechar as portas aos imigrantes” ou “abrir as portas aos que querem para cá vir”. Nunca se calarão, mas falarão mais baixo, os que asseguram que os nacionais são virtuosos e os estrangeiros pulhas. Já se percebeu que não faz sentido garantir que os imigrantes sejam todos iguais, legais ou ilegais, estrangeiros ou naturalizados, de primeira ou segunda geração, respeitadores da lei ou criminosos, de cultura e tradição próximas ou absolutamente alheias e distantes das portuguesas. É bom que assim seja. Que se diga tudo. Que haja divergências e acordos. Que se consiga melhorar a legislação e a vida no espaço público. 

 

Se assim for, se a discussão pública tiver como efeito a moderação dos preconceitos e o melhoramento da legislação e se aumentar um pouco a racionalidade dos argumentos, vale a pena contribuir para o debate. A começar pela enumeração de princípios e valores, que poderá contribuir para a formação de opiniões.

 

As pessoas não têm o direito de imigrar para o país que lhes apeteça, de ter autorização legal para se estabelecer onde quer que seja e instalar-se ilegalmente onde quiserem. As pessoas têm o direito de solicitar residência, autorização, ajuda e apoio noutros países. Os países de acolhimento possível têm o dever de responder afirmativa ou negativamente a qualquer solicitação, com autoridade e humanismo, de acordo com as suas leis e com as suas capacidades.

 

Cada povo tem o direito de escolher quem prefere ou a quem oferece melhores condições de acolhimento. A inversa não é verdade: um povo não tem o direito de se instalar onde quiser, nas condições que prefere. As regras são feitas pelos povos dos Estados de acolhimento.

 

Os imigrantes não têm os mesmos direitos do que os nacionais (naturais ou naturalizados). A começar pelo direito de voto nas eleições, nomeadamente as que implicam a criação e a escolha dos órgãos de soberania, a revisão ou a aprovação da Constituição, a declaração de guerra e paz ou as decisões sobre o Estado de sítio.

 

Qualquer povo tem o direito de exigir reciprocidade de direitos com os países de proveniência dos imigrantes legais (com exclusão dos refugiados políticos). Não é obrigatório fazê-lo, mas pode fazê-lo.

 

Um Estado deve garantir a universalidade dos direitos fundamentais, por exemplo vida, justiça, liberdade de expressão, segurança social, saúde e educação, não distinguindo entre imigrantes ou nacionais. Mas os direitos políticos dos imigrantes, designadamente o direito de voto e de participação nas eleições, podem ser reduzidos, restritos e diferentes dos direitos dos cidadãos nacionais (ou naturalizados).

 

Um Estado tem o direito e o dever de proibir práticas e costumes que infrinjam directamente as suas leis vigentes, mas também práticas e costumes que, sem infringir directamente as leis, contrariem direitos fundamentais ou regras estabelecidas, como nos casos de incesto, de vestuário que contraria direitos de outrem (o uso da Burca, por exemplo), de violência paterna ou materna, de ameaças conjugais e de tratamento dos animais.

 

Um Estado tem o direito e o dever de proibir todas as práticas condenadas nas suas leis, mas permitidas nas leis dos países de origem dos povos imigrantes: poligamia, excisão, casamento forçado, casamento contratado, uso de véus que escondem a identidade, proibição de frequentar o espaço público, justiça pelas próprias mãos, todas as formas da “lei de Talião” e negação de direitos às mulheres e às crianças.

 

Um Estado tem o direito e o dever de facilitar a imigração e a legalização de quem se predisponha a aceitar medidas de integração, designadamente aprendizagem da língua. Um Estado tem o direito de proibir ou punir pessoas e comunidades imigradas que se recusem, por exemplo, a frequentar a escola obrigatória nacional.

 

Um Estado tem o direito (até talvez o dever…) de exigir que os imigrantes cumpram todos os deveres de legalidade, de inscrição e contribuição para os sistemas nacionais de impostos, segurança social e outros. Um Estado tem o direito de não conceder acesso aos serviços sociais e públicos a quem não se encontra devidamente legalizado e registado.

 

Um Estado tem o direito e o dever de garantir que o trabalho imigrante não contribua para a redução dos salários, nem para a exploração dos imigrantes nas suas condições de alojamento e de emprego.

 

Um Estado tem o direito de contemplar a recusa de autorização e a suspensão, a expulsão ou a deportação de estrangeiros imigrantes não naturalizados, em casos de crimes tipificados, incluindo as falsas declarações para obter autorizações de residência e trabalho, os crimes violentos e o tráfico de produtos proibidos e ilegais.

 

Um Estado tem o direito e o dever de aprovar uma política de população e de imigração, indispensável para o respeito pelos direitos dos cidadãos nacionais e dos imigrantes. A exploração de imigrantes, o abaixamento dos níveis de salários, a habitação em péssimas condições, o tráfico de trabalho, as redes internacionais de pessoas e de bens ilícitos e a desorganização dos serviços públicos resultam também da falta de políticas de migração. O descontrolo e a desatenção das autoridades relativamente às questões das migrações só agravam as vidas dos nacionais e dos imigrantes, incluindo o não reconhecimento dos seus direitos.

 

Do ponto de vista internacional e demográfico, Portugal tem uma situação muito interessante, pois é simultaneamente país de emigração e país de imigração. O facto traduz realidades menos felizes (há falta de oportunidades para os nacionais, ao mesmo tempo que há falta de trabalhadores para muitas actividades). O país perde população com aptidões e recebe população sem qualificações. Mas, ao mesmo tempo, permite ter uma visão mais completa dos problemas. Nesse sentido, Portugal tem o direito e o dever de exigir aos imigrantes o que outros países exigem aos emigrantes portugueses. Com uma certeza: são os países autoritários, as ditaduras, que proíbem as migrações.

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Público, 15.2.2025

domingo, 9 de fevereiro de 2025

Grande Angular - Vencedores e derrotados

 Parece haver consenso: vivemos tempos de mudança e de transição como não se via há décadas. É tão forte, profunda e rápida esta mudança, cujo princípio conhecemos e cujo fim nem sequer imaginamos, que não é arriscado afirmar que, dentro de vinte ou trinta anos, aos olhos de hoje, o mundo será irreconhecível.

 

Não é o conceito abstracto de mudança que suscita apreensão. Na verdade, sempre o mundo mudou. Devagar ou depressa. Pacífica ou tumultuosamente. Para melhor ou pior. Mas sempre mudou. “O mundo é feito de mudança”, como está escrito há séculos. O que inquieta muitos são a radicalidade e a velocidade da mudança.

 

A verificação de que estamos em grande, secular e histórica mudança é comum a muita gente, é visível todos os dias. As balanças de poderes económicos, sociais, políticos, financeiros, militares, culturais e religiosos, nem sempre coincidentes, são já hoje o que nem sequer se imaginava há quarenta anos. Não se sabe se esta mudança, esta transição global e profunda, ainda vai no princípio ou se vai a meio caminho. Só sabemos que não está no fim. Ao contrário da mudança quotidiana, permanente, feita de mais ou menos solavancos, de transformações e ajustamentos imperceptíveis, a transição de que aqui se fala é mais rápida e mais brutal, a ponto de se poder afirmar que, em poucos anos, o ponto de chegada se encontra a anos-luz do ponto de partida.

 

Em todas as mudanças, sempre houve vencedores e derrotados. E sempre foi perigoso lidar com uns e com outros. Os vencedores afirmam-se dominando, conquistando, explorando e comandando, à força ou com jeito. Os vencidos reagem sempre mal, com sabor amargo da derrota, deixando-se submeter ou procurando a vingança.

 

Na actual transição, é o mundo inteiro que está em causa. Ninguém escapa. E todos serão vencedores ou derrotados. Perdem a Europa e os Estados Unidos, cuja hegemonia cessou inexoravelmente. Perde o Ocidente liberal. Perde o Império Russo, czarista, soviético ou plutocrata. Ganha a China. Ganham os outros grandes países asiáticos (a começar pela Índia). Perde a África, em conjunto ou aos bocados. Ganham os países islâmicos, sobretudo os produtores de petróleo. Perde a América Latina, a do continente ou a dos países individuais.

 

O passado recente ajuda-nos a perceber. Basta olhar para a participação de cada conjunto geográfico e político no total. Ver o que cada parte representa no total do mundo do PNB, da riqueza disponível, da população, do emprego, da força militar, da produção industrial, das patentes registadas, das exportações e de outros temas e sectores com significado. Em cada um destes sectores ou temas, com raras excepções, a Europa está sempre a perder importância. Já representou, ainda há pouco tempo, um quarto ou um terço do total mundial do produto, está agora próxima dos 10% ou pouco mais.  Até os Estados Unidos, em vários destes temas, deixaram de ter posição dominante. Antigamente, os Estados Unidos ditavam. Hoje, tentam a guerra comercial.

 

Que vão fazer, nesta transição, nesta quase reviravolta, os derrotados? E os vencedores? Olhando com cautela para a Europa, a América, a Rússia e a Ucrânia, a China e Taiwan e quase toda a África, rapidamente se percebe que grandes acontecimentos e grandes dramas esperam por nós.

 

Mas há assuntos que nos afligem mais. Perder domínio político ou poder económico é duro e difícil. Mas, perder a liberdade e a democracia é um verdadeiro desastre. Ora, aquilo de que aqui se fala é provavelmente, desde meados do século XX, o maior perigo ou a maior ameaça contra a sociedade democrática ocidental e contra o regime de democracia liberal. Estamos a assistir ao recuo da democracia e das tentativas democráticas em todo o mundo desde finais do século XX. O mundo democrático tem hoje menos poder e menos importância do que há algumas décadas. E há cada vez menos povos e menos Estados que aspiram a uma qualquer forma de democracia.

 

Há, evidentemente, ameaças “internas “e “externas”. Entre as primeiras, a ascensão rápida da extrema direita e gradual da extrema-esquerda. Ou as fissuras abertas entre aliados, como sejam os Estados Unidos e a Europa. Assim como os erros sucessivos dos governos democráticos. Para já não falar do crescimento do populismo e dos plutocratas. Além, evidentemente, do êxito das ideias antidemocráticas favoráveis às “políticas correctas” do género, das minorias, das raças e do multiculturalismo acrítico.

 

Quanto às ameaças externas, estas encontram-se previsivelmente na concorrência internacional, na competição política e militar e na guerra comercial agora desencadeada. E nas ambições dos novos poderes.

 

Além da velha rivalidade entre continentes, países e Estados, vivemos agora um confronto entre democracia e não democracia. Entre liberalismo e autoritarismo. O Ocidente e a democracia já perderam muito. Os regimes não democráticos ganham, dia a dia, posições importantes. Na força militar, na economia, na produção industrial e no acesso a recursos naturais no mundo inteiro. Pior ainda do que este confronto é a ascensão permanente, dentro das democracias, das vozes, das populações, dos políticos e dos eleitores não democráticos. A este fenómeno deve-se grande parte do declínio da democracia, tanto quanto ao avanço da não democracia.

 

Talvez o recuo da democracia e da liberdade dos ocidentais seja inevitável. Mas o que é decisivo não é o renascimento imperial. É, isso sim, a preservação das liberdades internas e da democracia como valor inalienável. E insubstituível. Mas há dificuldades no caminho. A primeira reside no facto de a diminuição de força económica e militar poder acarretar a perda de força política e o declínio da segurança democrática. A segunda encontra-se claramente no facto de as convicções democráticas e a crença nas liberdades estarem enfraquecidas pela abdicação e pela descrença. A Europa, o Ocidente, a democracia e as liberdades não estão em perda apenas na competição internacional. Começam a ser derrotadas pelos próprios. Por nós.

Público, 8.2.2025

sábado, 4 de janeiro de 2025

Grande Angular - Ao serviço de todos

 São conhecidos os motivos de luta política. O poder, puro e simples, pessoal ou de grupo. A luta das classes, entre o trabalho e o capital. A luta entre Estados. A luta entre religiões, sempre pronta a ressuscitar. A luta entre etnias. A concorrência entre empresas. A luta entre o centro, geralmente a capital, e a periferia, habitualmente interior. A luta entre o interesse público e os interesses privados.

 

Há quem diga que tudo isso se reduz à luta das classes, a mais importante, a que resume os diferendos. É mentira, mas é um argumento interessante. Como há quem diga que já não há luta das classes, que agora são outras lutas, como entre produtores e consumidores ou entre gerações. Também é mentira, mas também é argumento interessante.

 

Um olhar atento para os debates parlamentares, assim como, nova maneira de viver a democracia, para os discursos feitos à saída do restaurante ou à entrada do asilo, revela que a luta das classes não está no centro de coisa nenhuma. Nível de vida, salários do sector público, pensões, saúde, educação, imigração, racismo, segurança e defesa nacional parecem hoje estar no topo das preocupações.

 

A vida política resume-se, hoje mais do que nunca, a dinheiro. Europeu ou nacional, público ou privado, mas dinheiro. O Governo quer aumentar as pensões, os salários dos grupos profissionais do Estado e o salário mínimo. Tal como quer diminuir impostos. A oposição quer aumentar tudo ainda mais, assim como diminuir impostos muito mais. Ambos querem dinheiro para distribuir pelas autarquias, pelas empresas e pelas profissões. Ambos querem investir muito, nem sempre se sabendo onde nem em quê. O debate político orienta-se cada vez mais para esta grande cornucópia dos dinheiros públicos. Mais dinheiro para quê, para quem, como e para onde?

 

natureza humana é, em geral, assim. E a dos Portugueses também. É pena que, assim, o debate político, que deveria ser claro, formador e informativo, se tenha transformado nesta espécie de contabilidade em que o mais importante é saber quem gasta mais. Fica a perder o sentido do gasto. Ficam a perder o rigor, a racionalidade e a eficácia. O que o Estado gastou, nas últimas décadas, com a TAP e o aeroporto, com os comboios e os transportes urbanos, com o serviço nacional de saúde e a educação, com a electricidade e as grandes empresas falidas, é enorme, mas também é ineficaz, inútil e de muito duvidosa moral.

 

Não há, em Portugal, Tribunal de Contas, tribunais administrativos e de justiça, inspecções de finanças, reguladores sectoriais, conselhos gerais e outras entidades fiscais, que cheguem para responder a esta simples pergunta: por que se gastou tão mal tanto dinheiro? Será mesmo verdade que se gastou mal? Que não se avaliaram os resultados? Que não se corrigiu o caminho do desperdício? Que se prestam tão poucas contas? 

 

A melhor medida é a dos serviços públicos. A do atendimento. A das relações entre pessoas e entidades. A da maneira como não se defende os interesses dos consumidores, dos clientes e dos utentes diante de outrem, Estado, autarquia ou empresa privada. Actualmente, a grande miséria nacional não está nos bairros de lata, nas barracas, nos campos despovoados, nos solos abandonados ou nas instituições culturais. Não. A miséria é a dos serviços públicos, a maneira como os utentes são tratados, o modo hediondo como os consumidores são atendidos, a incompetente prestação de serviços e a desprotecção dos que recorrem aos serviços públicos.

 

As autoridades têm ao seu serviço, para redigir leis e estratégias nacionais disto e daquilo, dezenas de “Observatórios”, de “Conselhos consultivos", de “Entidades reguladoras” e de “Inspecções” quase absolutamente incapazes de prever, de organizar com cuidado, de fomentar a cortesia no trato e de aumentar a eficácia no atendimento. Só não acredita quem não viu as filas de espera no serviço nacional de saúde, as maternidades e as urgências que fecham aos fins de semana, as ambulâncias que não chegam a tempo, as escolas que não têm professores e as que não abrem a horas. Só quem não sabe o que é ser enganado pelas entidades que usam a “fidelização” para explorar os crédulos e as pessoas de boa fé. Só quem não presenciou as filas de espera diante dos serviços de imigração, dos tribunais e das lojas do cidadão. Só quem não se interessa pela maneira como os cidadãos, os utentes e os consumidores são feitos pagantes mudos e reféns passivos das grandes empresas e dos serviços de gás, electricidade, água, telefones e televisão. Só quem não percebe as técnicas dos salteadores do “small print” dos contratos de serviços.

 

Esta situação de degradação nos serviços públicos e de desprotecção dos cidadãos deve-se aos dois partidos que asseguraram o governo durante as últimas três décadas. PS, com 22 anos de governo, e PSD, com 8, tomaram conta, decidiram, melhoraram aqui e ali o estado da nação, mas desperdiçaram tempo e dinheiro, deixaram correr, não se preocuparam com o estado dos serviços, com a amabilidade e a eficácia no tratamento das pessoas, nem com o aumento das zonas de livre escolha e de decisão informada.

 

É verdade que, ao longo das últimas décadas, muita coisa melhorou. Não na justiça, mas em quase todos os outros sectores. É verdade. Mas não mudou o suficiente. Não melhorou à altura da despesa feita e das necessidades dos cidadãos. Mas sobretudo não melhorou na eficácia de tratamento e na humanização do atendimento. O modo como são tratados os velhos, as crianças, os pobres, os imigrantes, os desempregados e os doentes é um bom retrato desta espécie de democracia de pacote.

 

Senhores ministros e senhores secretários de Estado: olhem bem para os rostos dos vossos concidadãos à espera dos comboios ou nas paragens de autocarro à chuva. Olhem para a tristeza das filas de espera na Segurança Social. Vejam bem os corações e as cabeças dos que batem inutilmente à porta da maternidade e dos que esperam pela ambulância. Reparem nas caras de desespero de quem espera 9 horas pela urgência médica, semanas pela consulta ou meses pelo exame. Sintam o desânimo de quem é explorado pelas agências de telecomunicação. Compreendam a triste resignação de quem tem quase medo de viver sem protecção dos seus direitos perante as empresas de serviços domésticos. Percebam os que já consideram normal a espera, a destituição de direitos e a exploração da passividade.

 

Se perceberem, se sentirem, saberão o que fazer.

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Público, 4.1.2025

sábado, 28 de dezembro de 2024

Grande Angular - A Europa em perigo

 Estes anos vão ficar na história da Europa. Pelas boas ou pelas más razões. As boas: se a Europa, a sua União e as suas nações conseguirem ultrapassar as derrotas passadas e os perigos próximos. As más: se a Europa e as suas nações soçobrarem, perderem, forem derrotadas e não saibam ou não consigam recuperar. Parece apocalíptico? É. Exagerado? Talvez não. Possível? Sim.

 

Nas derrotas (políticas, militares, económicas, desportivas e outras), o pior é quando o potencialmente derrotado não se dá conta e não percebe que caminha para a sua perda. Ainda por cima, quando tem meios para evitar a derrota, mas não sabe, não quer, não consegue ou prefere não os utilizar. É o caso da Europa. Está à beira de derrotas históricas, mas nega a evidência. Tem meios para, a prazo, evitar a derrota, mas não os utiliza. Sabe quais são os caminhos para vencer ou pelo menos evitar o pior, mas, por miopia política, recusa percorrê-los. Prefere a complacência. E esperar que as coisas acabem por correr bem.

 

Que erros já cometeu a Europa? Que novas derrotas se preparam? A começar pelo princípio: a Europa esticou excessivamente a corda federalista, sem a conseguir finalizar; destronou as nações, sem as eliminar. Ficou a meio caminho, local de todas as derrotas: nem nações orgulhosas, nem federação poderosa. Os alargamentos foram excessivos e arriscados. O avanço a Leste foi imponderado.

 

A Europa deixou correr a NATO e os Estados Unidos, ficando paulatinamente para trás, poupando recursos e dinheiros, evitando gastos e investimentos, ameaçando a Rússia de modo inconsequente e substituindo a defesa pelos benefícios sociais. Ficou a reboque da América. E desarmada diante da Rússia.

 

O BREXIT constituiu uma das maiores derrotas da Europa em toda a sua existência. Da Europa continental, da União e da Grã-Bretanha. Uma das mais importantes nações europeias e mundiais, um dos melhores exércitos da Europa e do mundo e uma cultura empresarial única abandonaram a Europa. Para nunca mais voltar.

 

Ao longo de décadas, por cupidez e preguiça, por espírito snob e ganância, por facilidade e irresponsabilidade, a Europa deixou definhar a sua indústria, subsidiou a sua deslocalização, fomentou o recurso às empresas do Terceiro Mundo e entregou à China toda a sua capacidade manufactureira. A Europa libertou-se da sua sujidade, do seu lixo e da sua poluição: à custa da sua independência.

 

Por miopia e ilusão, a Europa entregou-se nas mãos da Rússia, do seu gás e do seu petróleo, enfraquecendo-se e fortalecendo aquele que é seguramente o mais vil dos actuais impérios à face da terra.

 

Há várias décadas que a Europa vende tudo o que tem. À China e à Rússia, à América e às ditaduras islâmicas, aos poderosos africanos e aos salteadores asiáticos e latino-americanos. Não só a empresas e Estados, mas também a bandidos e predadores. Fábricas e hotéis, serviços públicos e habitação, estradas e comboios, aeronáutica e telecomunicações, praias e montanhas, energia e barragens.

 

Há décadas que a Europa vem substituindo as suas personalidades, os seus intelectuais, escritores e cineastas, músicos e artistas, os seus académicos, cientistas e humanistas, os seus políticos esclarecidos e cultos, os seus sindicalistas de combate e os seus militares de confiança, por gestores das coisas dos outros, administradores de outrem, solicitadores de bens alheios e empregados de ocasião.

 

A Europa do cristianismo, do individuo, da dignidade da pessoa humana, dos gregos e do Renascimento, do iluminismo, da república, da cidadania, da democracia, dos direitos humanos, do sindicalismo, da ciência, da coesão social, das artes e das letras, essa Europa já é pouco mais do que recordação, tudo estando cedido em troca da arte digital, da inteligência artificial e da criação em streaming.

 

A Europa que viveu de milhões dos seus terem emigrado para outros continentes e de ter recebido milhões de emigrantes das suas e de outras nações, que soube misturar com carácter e acolher com personalidade, essa Europa está hoje enredada e prisioneira da desordem do tráfico de pessoas e dos mesquinhos interesses de dinheiros.

 

A Europa nunca chegou a ser Governo e Parlamento. Deixou de ser Banco. Não é mais Fábrica. Já tinha deixado de ser a Universidade. Já não é Igreja. A Europa é tudo isso, a prestações, mal e toscamente, sem personalidade nem identidade. A Ilustre Casa Europeia, casa de fidalgos arruinados e de pomposos gestores dos interesses de outros, perde todos os dias força e carácter. E, como acontece nas fábulas, não sabe que está a perder. Ou nega.

 

Em crise, nas vésperas de previsíveis derrotas de civilização, a poucos dias do novo e terrível presidente americano, a semanas ou meses de uma temível derrota ucraniana, no início de uma hegemonia sino-americana conflituosa, perto de uma verdadeira conquista islâmica e à beira da humilhação que será a do abandono da Europa pela América, os europeus, muitos europeus, sobretudo os seus dirigentes, comportam-se como se de nada se tratasse. À iminência do desastre chamam exagero e ansiedade. Como antes, aos cemitérios, outros chamaram paz.

 

Como sempre na vida e na história, a glória e a fama não conseguem esconder a vilania e a maldade. Os grandes feitos europeus não fazem esquecer a conquista, a escravatura, a opressão e a ditadura. Mas a Europa soube sempre ser a primeira a criticar os seus próprios erros, as suas malfeitorias e os seus desmandos. Será agora novamente capaz de reconhecer erros e evitar derrotas?

 

A Europa e as suas nações ainda têm alguma força, algumas empresas, alguns cientistas, alguns políticos, alguns intelectuais, alguns trabalhadores, alguns artistas e alguns militares com os quais se possa imaginar que seja possível evitar o desastre, transformar a derrota em vitória e garantir, mais do que uma ressurreição, um renascimento. A Europa tem beleza, natureza, cultura, tradição, história, reputação, património, diversidade e riqueza suficientes sobre as quais pode reconstruir e recomeçar. E ainda tem empresas e instituições.

 

Basta a vontade? Não. De modo nenhum. É necessário um colossal esforço. Muito estudo. Trabalho e ciência. Investimento. Defesa própria. Segurança autónoma. Muita liberdade e crítica. Direitos humanos. E liderança política.

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Público, 28.12.2024

sábado, 21 de dezembro de 2024

Grande Angular - Ainda e sempre a imigração

 As migrações mudam os países e as sociedades. Muito ou pouco, depressa ou devagar. Mas sempre. Para melhor ou pior, depende. Mudam os que imigram, mudam os que emigram. Mudam os que recebem e acolhem. Mudam os que saem e chegam. Muito ou pouco, mas sempre.

 

Há migrações e mudanças que se fizeram em paz, com bons e maus resultados. Migrações e mudanças que se fizeram bruscamente, em guerra, com más e boas consequências. E mudanças que provocaram a vida de uns e a morte de outros. Mas todas as mudanças, todas as sociedades se fizeram com povos distintos, várias etnias e gente diversa. Não há sociedade uniforme e original. Todas as populações são fruto e resultado de misturas, conquistas, migrações, fugas, derrotas, massacres, glórias e vexames.

 

Na origem de Portugal, há uma dúzia ou mais de povos. A unidade nacional, a uniformidade de raça e de cultura, a singularidade de língua, a especificidade do povo e da etnia são meras construções históricas, umas pacificas, outras violentas e forçadas. Umas agressivas, outras defensivas. A expulsão de vários povos europeus da Península e o abandono de outros, a derrota ou a conversão dos Mouros, a expulsão ou a cristianização dos Judeus, são episódios bem conhecidos da história que muito contribuíram para a formação da nossa nacionalidade. Tal como a conquista e os descobrimentos. Foi assim que se fez a nação.

 

Nacionalismo é, em geral, hoje, sinónimo de opressão, racismo, domínio político e religioso, xenofobia e conservadorismo. Mesmo moderado, o nacionalismo não goza hoje dos favores das doutrinas. O universalismo e a globalização surgem como novas virtudes, enquanto internacionalismo e cosmopolitismo parecem ter êxito assegurado na crónica e na lenda.

 

É verdade que há qualquer coisa de tentador nas fábulas do internacionalismo. Somos todos iguais, não há melhores nem piores, não há amigos e inimigos, somos todos irmãos, filhos do mesmo deus, naturais da mesma terra, gente do mesmo sangue, raça do mesmo genoma… É tentadora a mitologia da igualdade absoluta e da livre circulação.

 

Certo é que, historicamente, a democracia e as liberdades tiveram uma geografia. A autenticidade cultural teve e tem um território. As fronteiras são tantas vezes agressivas, símbolos de perda de liberdade e resultado de opressões, mas também são defesas de povos e de nações, de culturas e de línguas, de património e de modos de ser e viver. As fronteiras portuguesas, das mais antigas da Europa, podem ser consideradas opressivas, limites à circulação e aos movimentos, mas também são e foram protecção dos portugueses diante de espanhóis e franceses, europeus em geral, norte-africanos e outros… O mesmo se poderá dizer de tantos países europeus e de tantas fronteiras.

 

O sonho europeu, o encanto federalista e a fantasia de uma Europa sem fronteiras nem Estados podem ter enorme capacidade de atracção. Mas não é seguro que sejam só um grande passo em frente pela liberdade e para a democracia. No essencial, a defesa de Portugal e dos portugueses são Portugal e os portugueses. Mesmo com a ajuda dos aliados. Mesmo com o apoio dos europeus. Mas é aqui que começa a liberdade. É aqui que mora a democracia. Um Português defende-se recorrendo ao Estado, às polícias, aos magistrados e à Justiça. Ao povo e aos seus iguais. Um português que queira ser representado, vota num português. Nem um francês representa um português, quanto mais um Croata. E não há português que represente um polaco ou um grego.

 

Há qualquer coisa de formidável e de encantador na ideia, na imagem e na sensação de ver e sentir nas ruas de Lisboa ou do Porto todos os cheiros deste mundo, todas as roupas imagináveis, todos os deuses, todas as cores, todas as línguas, todas as modas, todas as músicas e todos os costumes do mundo! Mas sabemos que os últimos recursos, as últimas defesas, as últimas protecções, os últimos reconhecimentos, as últimas identificações são com os portugueses, os nossos iguais, os que cá vivem, os que cá estão, nascidos cá ou não, mas vividos cá. Portugueses de origem ou de adopção, mas portugueses, com a sua cultura, a sua justiça e a sua democracia. Nascidos ou naturalizados portugueses com as suas crenças e sobretudo as suas leis.

 

Assistimos, durante décadas, ao repúdio crescente do nacionalismo, do patriotismo e do Estado nação. Este último recuou em todas as frentes, em todos os aspectos. Na economia e na cultura, na sociedade e na política. Pior ainda, os casos mais evidentes de manutenção do nacionalismo foram, em geral, os de ditaduras. Da China à Rússia, da Coreia a Cuba, passando por vários Estados africanos e asiáticos que inventaram histórias nacionais para justificar poder autoritário. Parecia que a liberdade e a democracia se alimentavam da globalização e nela criavam raízes. Até que se percebeu que a desnacionalização e a globalização tinham uma capacidade autoritária devastadora, eram capazes de destruir países e nações, mais ainda democracias e liberdades.

 

Em quase todos os países europeus ou ocidentais, tem-se verificado um aumento permanente do número de imigrantes assim como do contributo destes para o desenvolvimento económico e o progresso das sociedades. Mas também para o surgimento de problemas de integração, de convívio e coexistência entre comunidades, de pressão sobre o Estado social, de deslocação e acolhimento entre países e de percepção recíproca entre comunidades.

 

Não é possível, em democracia, controlar absolutamente os movimentos da população. Só as ditaduras o permitem. Mas prever, ordenar e estabelecer condições não só é possível, como parece cada vez mais necessário. Não o fazer, entregar-se a uma passividade complacente, na esperança de melhor explorar o trabalho alheio, é destruidor da democracia.

 

Não há solução fácil para os problemas de imigração e de acolhimento. Mas a passividade é a pior atitude. Deixar correr, não tentar controlar, não ordenar, não definir horizontes, não estipular condições e não fazer um colossal esforço de integração são erros crassos cujos preços a Europa começa a pagar. Ter medo da imigração é ter medo da liberdade. Deixar correr as migrações é destruir a liberdade. Qualquer povo tem o direito de definir, por vias e métodos legítimos, os povos que quer receber. Assim como as condições legais, sociais e culturais de integração. A começar pela língua, evidentemente. E sempre, mas sempre, no respeito pela lei do país.


Público, 21.12.2024

sábado, 14 de dezembro de 2024

Grande Angular - Debate impossível ou quase

 Um dos maiores problemas do mundo ocidental e das democracias é o da imigração. Nas ditaduras, esse problema não existe: não há imigrantes, as fronteiras estão fechadas e estritamente controladas. Salvo excepções, nos países pobres também não: a emigração, não a imigração, é a sua sina.

 

Todos os dias, nos jornais e nas televisões, há uma qualquer questão de imigração. Barcos carregados de miseráveis, naufrágios às centenas, campos de concentração ou trânsito, bairros marginais, incidentes raciais, exploração de trabalhadores, crime de tráfico de mão-de-obra, economias paralelas… Não faltam os motivos. O desespero e a luta pela sobrevivência quase fazem heróis. As atitudes dos países de acolhimento oscilam entre a democracia, a complacência, a culpabilidade, o racismo e a exploração. Na verdade, são milhões de pessoas a bater às portas dos países mais ricos. Os gestos destes têm muitas vezes maus resultados, seja porque a generosidade provoca o abuso, seja porque a severidade cria a violência. Os Estados dos países de acolhimento têm-se revelado incapazes de prever e prevenir, muito menos ordenar. No mundo empresarial, há de tudo, desde gente séria e humana, até oportunistas que querem sobretudo retirar o melhor partido da precaridade, dos baixos salários e da exploração. Os Estados dos países de origem fazem o melhor que podem para aproveitar, explorar e vender, tentando ganhar em comissões e favores. Entre os imigrantes, como não podia deixar de ser, há de tudo, de trabalhadores a bandidos, de cidadãos a marginais, de talentosos a oportunistas. 

 

Pior que tudo, é o ambiente geral em que se vive, feito de acidez crescente, de acusações nervosas e de preconceitos fortíssimos. De um lado, tudo o que se ouve contra os imigrantes. São bandidos e não respeitam as leis do país de acolhimento. Por serem descendentes de escravos julgam-se hoje membros de raças superiores. Roubam as filhas, os empregos e as casas dos residentes nacionais. Mentem no fisco e na segurança social, escondem as identidades, procuram subsídios ilegítimos e montam um verdadeiro mercado negro. Batem nas mulheres e nos filhos, vendem as filhas e não enterram os seus antepassados cujos paradeiros se desconhecem. Mantém toda a espécie de comportamentos ilegais, incluindo a excisão das raparigas, o casamento contratado, a cara coberta das mulheres, a poligamia e a proibição de prosseguir estudos imposta às filhas. Maltratam os animais, comem gatos e cães, estragam os espaços públicos, não limpam as ruas e fazem barulho nas ruas durante a noite. Não respeitam as filas de espera nos serviços públicos, aterrorizam funcionários, médicos e enfermeiros.

 

Reciprocamente, o preconceito nada fica a dever. Os residentes nacionais, europeus ou caucasianos, exploram os imigrantes, roubam-lhes tempo de vida e forças e usam as suas mulheres que tratam com luxúria machista. Consideram os imigrantes seres inferiores, sobretudo se forem africanos ou asiáticos. Pensam que os imigrantes são incapazes de respeitar as leis e apenas se preocupam com o que podem ganhar e roubar. São racistas estruturais e sistémicos, são colonialistas crónicos e são supremacistas brancos. Por serem descendentes de descobridores e conquistadores, julgam-se membros de raças superiores. Exploram os imigrantes, não lhes pagando o que se deve, não tratam da segurança social, reservam-lhes as piores escolas, dificultam-lhes a vida nos centros de saúde e maltratam-nos nos transportes públicos. Prejudicam os imigrantes nos concursos públicos, na procura de emprego e na busca de casa. Olham para os imigrantes com sobranceria e sentimento de superioridade, só se mostrando humanos quando têm qualquer coisa a ganhar com isso. Reservam para os imigrantes os piores bairros, as piores ruas e os alojamentos mais degradados. Tudo fazem para manter os imigrantes fechados em guetos raciais ou étnicos, impondo-lhes a sua ordem através de autoridades brancas e de polícias nacionais. 

 

Abaixo de tudo, na escala de valores, estão os traidores. Para uns, os brancos que tomam o partido dos outros, dos negros, dos índios, dos indianos e dos árabes, que defendem os outros, que são verdadeiros travestis étnicos. Para outros, os imigrantes que se entendem com os nacionais, os que consideram que as leis se devem respeitar e que se deve acatar a cultura dos povos de acolhimento. Os trânsfugas e os traidores de ambos os lados são os piores, os mais racistas, os mais violentos, os mais amigos do conflito e os maiores adeptos do afrontamento.

 

Como é evidente, há, nas várias comunidades, muita gente decente, pessoas que não cultivam o preconceito, homens e mulheres que gostariam de poder entender-se e dar e receber contributos para uma sociedade melhor. Com certeza. Mas não são essas as vozes dominantes, as que mais se ouvem, as que mais se imprimem. Há muita gente que espera por um equilíbrio, que julga que é possível e enriquecedor a coexistência sob a mesma lei e na mesma ordem democrática. Mas o que mais progride é a procura do conflito e a busca da ruptura. 

 

Lentamente, o mundo ocidental está a ficar subjugado por este conflito, por este problema. O mais simples seria ignorar, como muitos fazem. Considerar que os afrontamentos são menores e temporários. Que tudo se resolverá com emprego e ordem pública. Que as sociedades mudam devagar e ordeiramente. Que a mistura de povos e de culturas se fará em paz e sossego, com prosperidade e progresso. Que não há verdadeiramente um problema. Que, com boa vontade, tudo acabará bem.

 

Sabemos, com certeza e receio, que não será assim. Os desequilíbrios demográficos, sociais e económicos são já tais que a evolução social e política tenderá a escapar às regras e às previsões. Os conflitos potenciais são muito sérios e só evitáveis com enormes doses de boa vontade, de racionalidade, de poder estável e de autoridade legítima. Estamos a falar de mudança da sociedade em profundidade, de mudança de costumes e de cultura de tal dimensão que ninguém pode, em seu juízo, considerar coisa fácil. Ainda por cima, trata-se de mudança que pode implicar perda. Para ambos, os que recebem e os que chegam. Noutras palavras, mudança necessária que, a ser feita sem razão, implica destruição de muito que apreciamos e desejamos, a começar pela cultura e pela liberdade. E pela humanidade.

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Público, 14.12.2024

sábado, 7 de dezembro de 2024

Grande Angular - Mário Soares, europeu

 antigo regime queria, antes de 1974, uma qualquer forma de associação, distante, leve e possivelmente superficial, com a Comunidade Europeia. Estava satisfeito com a EFTA. Além disso, a Comunidade implicava condições políticas democráticas que as autoridades de então não queriam aceitar. Assim é que se preparava um acordo diplomático. Depois de 25 de Abril, o debate foi aberto e novas hipóteses estavam em causa. Os Liberais do marcelismo e os principais do PPD queriam um novo contrato de associação. Talvez um pouco mais pormenorizado ou mais vinculativo do que durante o anterior regime, mas só associação certamente. Garantiam que Portugal não estava preparado, que a economia ainda não estava à altura da concorrência europeia, que o proteccionismo era necessário e que as empresas portuguesas tinham de ser defendidas. A EFTA era uma boa alternativa.

 

As esquerdas do PCP queriam tudo menos a Comunidade Europeia, que consideravam capitalista e contrária ao socialismo que se preparava vigorosamente em Portugal. Os comunistas olhavam mais para Leste, União Soviética e seus satélites, países com os quais se deveriam desenvolver relações o mais rapidamente possível. Preparavam-se afanosamente acordos políticos e tratados comerciais, incluindo cooperação em matéria de energia nuclear, a fim de explorar e consolidar este novo horizonte estratégico. Era claro que o objectivo não seria o de integrar o Pacto de Varsóvia. E os soviéticos não estavam muito interessados em arranjar uma nova Cuba na Europa. Mas ficar longe da Comunidade Europeia e da NATO era a prioridade.

 

Os restantes grupos esquerdistas, sobretudo o MES e a UDP, assim como as facções radicais do MFA, estavam mais virados para outros continentes, para países africanos, árabes e latino-americanos. Assim como para países europeus vagamente dissidentes do universo soviético. A Cuba de Fidel de Castro, a Líbia de Kadhafi, o Iraque de al-Bakr ou Sadam Hussein, a Roménia de Ceausescu e a Jugoslávia de Tito eram alternativas e mereciam atenção. Aliás, quase todos estes dirigentes foram, naquela altura, convidados a visitar Portugal e seriam anfitriões de importantes delegações portuguesas. A independência nacional e a autonomia perante o capitalismo e as grandes potências eram os argumentos essenciais. Mais ainda: uma terceira via entre o capitalismo ocidental e o comunismo soviético surgia como hipótese atraente.

 

No PS, a situação era mais difícil. O PS de direita queria uma associação solta e distante com a Europa. Um contrato de associação parecia satisfatório, pelo menos para os primeiros tempos. Europeus sim, mas devagar. Havia medo por causa das empresas portuguesas que não estavam preparadas para a concorrência. O PS de esquerda preferia relações com o Terceiro Mundo, países africanos e árabes. Ao contrário dos esquerdistas, os seus porta-vozes queriam a democracia, seguramente, mas receavam a ingerência capitalista. Pensavam ainda que, com os produtores de petróleo e de matérias-primas do Terceiro mundo, era possível desenvolver vias alternativas. O PS do centro, se é que assim se pode chamar, era favorável à adesão Comunidade Europeia sem reservas. E quanto mais cedo melhor.

 

Não houve sondagens, mas é pouco provável que a maioria do PS fosse favorável à adesão plena à Comunidade. As reticências da direita e da esquerda militavam a favor de um compasso de espera, de um adiamento para melhor esclarecimento. Mas os que eram favoráveis à plena adesão tiveram em Mário Soares imediatamente, sem hesitações, a vontade de adesão, sem espera, sem períodos de transição e sem associações especiais que diminuíssem o gesto. As questões especiais dos preços da agricultura, da protecção das empresas portuguesas e do respeito pelas regras do “acquis communautaire” eram secundárias. Mário Soares pensava que a Europa ou a Comunidade Europeia era um atalho para a liberdade, uma garantia para a democracia. A adesão à Europa não era um projecto económico e financeiro, era um desígnio político. Com a Europa, vinham as liberdades e os direitos dos cidadãos, o respeito pela dignidade humana, as garantias dos parceiros e o apoio a dar, em caso de necessidade, a uma democracia recente e inexperiente. Sem falar na cultura ocidental e na história europeia.

 

Naquela altura, a esquerda democrática europeia tinha voz e peso. Momentos houve em que a maioria dos governos era composta de socialistas, social-democratas e aparentados. Nomes de homens de Estado de excepcional envergadura marcavam as políticas europeias. Willy Brandt e Helmut Schmidt, Olaf Palme, Harold Wilson e James Callaghan, François Mitterrand, Jacques Delors e Michel Roccard eram desse tempo, quase todos vieram a Portugal, todos apoiavam Mário Soares e a democracia portuguesa e com todos Mário Soares fez amizade pessoal.

 

Em Fevereiro de 1977, o Primeiro-ministro Mário Soares fez viagens a todos os países da Comunidade, assim como à sede em Bruxelas e ao Vaticano, a fim de apresentar a candidatura portuguesa a uma adesão plena. Antecipavam-se dificuldades, sobretudo por causa da junção das candidaturas portuguesa e espanhola. Os europeus receavam a dimensão e a produtividade da agricultura de Espanha. Além disso, pensava-se que as boas palavras dos políticos europeus relativamente à adesão de Portugal escondiam reservas e contrariedades dos técnicos e dos economistas. A primeira viagem do périplo meticulosamente organizado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros começava por Bruxelas. No momento da partida, no aeroporto, estavam presentes todo o governo e metade das autoridades. A sala dos VIPS para chegadas e partidas era uma colossal festa. Mesmo em cima da hora de partida, revelando uma desconhecida ansiedade, Soares queria saber tudo dos preparativos. Se todos os dirigentes Europeus estavam devidamente informados. Se os políticos europeus, especialmente os social-democratas, estavam sensibilizados. Discretamente, virando-se para dois ou três ministros mais próximos, Soares perguntou quase sussurrando: “E se eles disserem que não?”. Medeiros Ferreira, o Ministro dos Negócios Estrangeiros que tinha tudo preparado, garantiu: “Eles não podem dizer que não, senhor Primeiro-Ministro. Está tudo preparado”. Dois segundos depois, Soares murmura: “Que Deus o ouça”! E ouviu, pelos vistos!

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Público, 7.12.2024