Será assim? Mentindo? Fingindo? Acusando sem razão? Disfarçando? Fazendo de conta? Perdendo tempo e energias? Desperdiçando oportunidades? Enganando-se a si próprios? Louvando os seus defeitos e desprezando as qualidades dos seus rivais? Ludibriando os eleitores? Elevando à categoria de arte os mais reles sentimentos? Alimentando a corrupção e deixando vegetar o favoritismo? Sendo complacente com a aldrabice? Praticando o nepotismo e o favoritismo impunes? Escapando à justiça como rápidas aves de rapina?
A presente crise de governo, de partidos, de instituições democráticas e de estabilidade não resulta de agitação social, de problemas económicos graves e repentinos, de perturbações internacionais e financeiras, nem de qualquer desastre sanitário, climático ou natural. Pelo contrário, é a crise política, o protagonismo dos políticos, a autoridade política e a condução política do Estado e da nação que criam ou vão criar problemas económicos e financeiros, debilidade institucional, vulnerabilidade democrática e desordem social. E também é a crise política que provoca dois dos fenómenos mais nefastos da vida nacional: a abstenção (ou desinteresse) e o partido Chega.
O enredo da crise actual mais parece obra de inspiração do Teatro de Revista. Ninguém mostra bem o que é nem o que quer. Ninguém é o que parece. Ninguém cumpre o que promete. A mentira e a dissimulação são artes criativas, não são defeitos. Nenhum partido deseja eleições. Mas todos acusam os outros de as querer. Todos os partidos garantem que estão prontos para eleições, estão sempre prontos para eleições, mas na verdade não estão preparados, nelas não vêem vantagens seguras porque nelas não adivinham promessas de vitórias. Realmente só querem eleições quando sentem que as podem ganhar ou quando acreditam que podem aumentar, por pouco que seja, os seus grupos parlamentares ou as suas hipóteses de entrar para o governo. Na verdade, estão dispostos a tudo para as evitar. Cedem uma moção de censura, negoceiam uma comissão de inquérito, trocam uma moção de confiança e mercadejam um inquérito da Procuradoria. Ameaçam dizer tudo sobre os outros, contra os outros, mostram-se dispostos a revelar, mantidos em carteira para estas ocasiões, negócios e mentiras dos outros. Tratam das moções de censura e de confiança, ou antes, da vida parlamentar, como quem joga matraquilhos. Aliás, terá sido talvez nestas últimas legislaturas que a actividade parlamentar mais se rebaixou. As comissões de inquérito transformaram-se nas arenas preferidas para as artes e as manhas. O tom do debate conheceu novos precipícios de má-criação e de hostilidade gratuita. As exibições televisivas destruíram a qualidade nobre da discussão parlamentar.
Havia quase tudo. Há talvez dez anos, mais ou menos, parecia não faltarem motivos de esperança e energia. Ordem social de qualidade razoável. Algum capital nacional e promessa de muito capital europeu. Números e indicadores económicos que desmentiam os cépticos. Hipóteses de estabilidade política e institucional. Colaboração intencional entre Governo, Parlamento e Presidente da República. Uma atenção cuidadosa do resto do mundo, dos europeus, dos americanos e dos outros continentes, para os trunfos portugueses.
Lentamente, paulatinamente, tudo se modificou e tudo se agravou. Cada vez mais os portugueses procuram ir viver para o estrangeiro, sobretudo os jovens, os técnicos, os formados e os quadros. A saúde perdeu o pé e desorganiza-se. A capacidade de oferecer oportunidades aos imigrantes transformou-se numa quase indústria de tráfico ilegal, de redes criminosas, de angariadores sem escrúpulos e de empregadores mestres em exploração do trabalho clandestino. Depois de revelar uma inesgotável energia na sua contribuição para a mudança e o progresso, o turismo transformou-se numa hecatombe destruidora da urbanidade, da qualidade de vida, da solidez económica e da paisagem. Gradualmente, através da segregação social e graças ao descontrolo das políticas demográficas e de imigração, a sociedade portuguesa desenvolve apartheids e inventa novas formas de exclusão. O país parece especializado em oferecer, aos imigrantes pobres, vastas oportunidades de habitação esquelética, de quartos sórdidos, de empregos desvalorizados, de estatuto de inferioridade, de salários miseráveis e de vida paralela. Empresas e sectores públicos foram sendo desbaratados, desorganizados, entregues a outros interesses estrangeiros, públicos ou privados, mas não certamente interpretes do interesse nacional.
Há, evidentemente, boas notícias. Nalguns sectores da ciência e da técnica, numa ou noutra arte, na ressurreição de aglomerações do interior ou da província, na actividade cultural de algumas câmaras municipais, na vida de umas tantas empresas de sectores muito especiais e em certas produções agrícolas, como o vinho e as hortofrutícolas em geral. Mas não são essas as tendências dominantes. Os “nichos” de progresso, de justiça, de criatividade e de bem-estar são isso mesmo, “nichos” minoritários.
É assim que os homens vivem? À beira do precipício e a preparar o desastre? Defendendo ferozmente a liberdade de mentir e fingir? É assim que os partidos sobrevivem, mas não é assim que os homens vivem. Por entre dores e sofrimento, no meio de alegrias e felicidade, sempre à beira da contradição, entre a sorte e a ameaça, como talvez dissessem Aragon e Ferré, não é assim que os homens querem viver. Era bom que as elites, os políticos, os artistas e os dirigentes da empresa e do trabalho percebessem.
Sabemos que a política é uma actividade humana. Como as outras. Com todos os defeitos e virtudes. Como a economia, a escola, a empresa, a religião, a cultura ou o futebol. Mas também sabemos que a política não é uma actividade como as outras. Porque é feita em nosso nome.
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Público, 8.3.2025