Mostrar mensagens com a etiqueta António Cirurgião. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta António Cirurgião. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Génese do meu livro O “olhar esfíngico” da Mensagem de Pessoa.

 


 

Foi nas férias de verão de 1984. Por norma, tal como tinha vindo a acontecer nos anos anteriores, deveria ter ido passar essas férias a Portugal, onde, como de costume, se encontravam à minha espera a família, os amigos, as bibliotecas, os arquivos, as livrarias, os alfarrabistas e as esplanadas. Porém, como no dia 14 de dezembro de 1983 fora surpreendido por um maciço ataque cardíaco de que tive de ser reanimado quatro vezes – duas na sala de emergência e duas na unidade de cuidados intensivos - e que me obrigara a passar mais de um mês hospitalizado no Saint Mary’s Hospital, em Waterbury, Connecticut, fui compelido a fazer outros planos. Dado que nesse verão de 84 ainda me encontrava em estado de convalescença, decidi ir passar as ditas férias a Gez, uma comuna francesa, na região administrativa de Auvémia-Ródono-Alpes, do Departamento de Aín, localizada no sopé dos Montes Jura, a cerca de dez quilómetros do Colo de la Faucille e a dezasseis quilómetros de Genebra, Suíça. E aí me instalei, no chamado “País de Gez”, no confortável chalé campestre, de vistas deslumbrantes sobre os Alpes Franceses, onde residia o meu antigo aluno e especial amigo Armand F. Pereira, alto funcionário do BIT (Bureau International du Travail), em Genebra, o qual me acolheu e tratou com uma hospitalidade fraterna.

E por quê em Gez, e não em Lisboa? Porque em Gez poderia continuar tranquilamente a minha longa convalescença, ao ritmo prescrito pelos médicos, ao passo que em Lisboa seria de tal maneira apaparicado pelos membros da família, que, em vez de repouso, ver-me-ia forçado a viver sob uma pressão contínua.

Como um dos remédios recomendados pelo meu cardiologista consistia em evitar acarretar coisas pesadas, além da roupa de vestir, reduzida ao mínimo, coloquei dentro de uma pequena bolsa de mão, ao lado do passaporte, do bilhete de avião e dos medicamentos, um exemplar de cinco obras de Fernando Pessoa, publicadas pela Ática: Poesias de Fernando Pessoa, Poemas de Alberto Caeiro, Odes de Ricardo Reis, Poesias de Álvaro de Campos e Mensagem por Fernando Pessoa.

Tendo, em mais de um semestre, incluído nos meus cursos sobre poesia portuguesa Mensagem de Fernando Pessoa, e tendo verificado, com óbvia frustração, que, por mais esforços que fizesse e mais voltas que desse à cachimónia, acabava sempre por concluir que os alunos e eu nunca conseguíamos penetrar no  âmago do misterioso e hermético poema, perguntei-me se não seria conveniente aproveitar esse verão de “viajante sem bagagem”, ou, melhor dito, de viajante sem biblioteca, para tentar, como aconselha Rabelais na introdução a Gargantua, cravar o dente famélico e guloso na medula substancial dessa obra de Pessoa. E foi assim que nessas férias de convalescença dos ataques cardíacos só existiu um livro para mim: Mensagem de Fernando Pessoa. E foi assim que me pus a ruminar sobre o significado desse poema épico de Pessoa, escrevendo notas no próprio livro ou num pequeno caderno que me acostumei a trazer comigo, durante as escassas horas do dia que não eram passadas a repousar, a dar longas caminhadas pelos campos, a apanhar caracóis que o meu amigo Armand e os seus visitantes adoravam e eu detestava; a dar passeios turísticos de barco pelo icónico Lago Genebra ou Lago Lemano, coleccionando palacetes de escritores famosos e “petits châteaux” encantadores, a espelhar-se, ufanos, nas águas límpidas e azuladas do lago; a passar tardes inteiras em Lausanne, a quarta maior cidade da Suíça, apreciando música de rua, produzida por jovens alunos dos conservatórios, vestidos à hippie, regalando os olhos na arquitectura antiga e moderna, e visitando a Catedral de Notre Dame, os museus e as casas onde viveram os poetas românticos Shelley e Lord Byron e o romancista Ernest Hemingway, e onde o poeta T. S. Elliot escreveu Waste Land  (“by the waters of Leman I sat down and wept”); a contemplar, fascinado, a majestade de Mont Blanc, sentado numa esplanada de Chamonix, saboreando uma chávena de café ou de chá; a visitar vilas feéricas nos Alpes Franceses, tais como Évian – les Bains e Annecy, a Veneza francesa, assim chamada por via dos seus mágicos canais.

Como também tinha levado comigo a minha Olivetti portátil, fiel companheira e confidente de todas as minhas viagens, até ao advento da computadora, quando regressei aos Estados Unidos já trazia comigo, escrito à máquina, um minúsculo e tímido esboço do que um dia viria o ser o meu livro sobre Mensagem de Pessoa.

Vieram depois novos cursos ministrados por mim sobre poesia portuguesa, de que constava Mensagem de Pessoa; vieram as consultas de dicionários de símbolos e de monografias sobre simbolismo; vieram leituras de livros sobre arte poética, emblemas e crítica literária; vieram leituras de obras sobre rosacrucianismo, hermetismo, mitologia e psiquiatria; vieram leituras das Trovas de Bandarra e da História do Futuro do Padre António Vieira e o diálogo de Pessoa com esses autores; vieram depois pesquisas sobre o inegável diálogo entre Mensagem de Pessoa e Os Lusíadas de Camões; vieram depois pesquisas sobre o insofismável diálogo entre Mensagem de Pessoa e a Bíblia; vieram depois conjecturas sobre o sentido patente ou o sentido latente de determinados vocábulos ou sintagmas de poesias de Mensagem; vieram, por fim, as infalíveis alterações, adições e subtracções.

Chegou o dia em que me senti impelido a falar desse meu projecto de crítica literária à minha colega Marie Naudin, professora de Francês na minha universidade e leitora assídua e entusiasta de literatura portuguesa. Após uma rápida leitura do esboço do meu futuro livro, a única observação que ela me fez teve a ver com a ausência quase total, nos meus comentários provisórios às respectivas poesias de Mensagem, de uma breve referência biográfica aos figurantes históricos, tais como reis, rainhas, vice-reis, duques, infantes, navegadores e conquistadores. Que para um leitor que, como ela, ignorava praticamente toda a história de Portugal, essa breve referência biográfica seria de suma importância, não só para uma melhor compreensão dessa poesia em particular, mas também da obra, no seu conjunto. 

O meu estudo de uma análise crítica de Mensagem continuou a crescer e a tomar forma de gente e na minha segunda estadia como professor visitante na Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, no curso de verão de 1987 decidi dar um seminário a alunos de pós-graduação exclusivamente sobre Mensagem de Pessoa. Devo, porém, confessar que, para minha desilusão, as achegas esperadas não foram famosas, para não dizer que foram praticamente inexistentes, mas o meu empenho em levar a cabo e aperfeiçoar o projecto literário foi tal que, na conclusão do seminário, o livro começava a aproximar-se da sua versão final.

Chegado a esse ponto, ainda longe de pensar numa hipotética publicação, comecei a sentir-me suficientemente à vontade para participar com excerptos desse estudo em congressos literários. De entre esses congressos, apraz-me destacar dois: Iberia & Mediterranean, organizado por Zultán Rózsa e Íldikó Puskás, em Budapeste e Debrecen, na Hungria, entre 26 e 29 de agosto de 1989, e IV Congresso Internacional de Estudos Pessoanos, organizado por Almir de Campos Bruneti em Tulane University, New Orleans, Louisiana, entre 17 e 19 de novembro de 1988. Intitulei a conferência proferida em Budapeste, “O ‘Mar Português’ da Mensagem de Fernando Pessoa”, publicada nas pp. 245-259 do volume das actas, e a proferida em New Orleans, “Os profetas do Quinto Império da Mensagem”, publicada nas páginas 63-83 do volume das actas.

António Quadros, que, tal como eu, participou com uma comunicação no IV Congresso Internacional de Estudos Pessoanos, em New Orleans, terá ficado tão bem impressionado, modéstia à parte, com a minha comunicação que, ao saber que se tratava do excerpto de um livro acabado, me pediu que lhe desse a honra de publicá-lo nas Edições do ICALP, na secção dirigida por ele, chamada Identidade: Cultura Portuguesa. E nessa mesma ocasião António Quadros, de uma gentileza exemplar, insistiu também comigo para que escrevesse uma obra para a secção da Biblioteca Breve, criada e dirigida pelo Eng. Beja Madeira, que, aliás, era o Director das Edições do ICALP.

E foi assim que nasceu o meu livro, intitulado A Sextina em Portugal nos Séculos XVI e XVII, publicado em 1992, com uma tiragem de 4000 exemplares. E foi assim que, no ano do Senhor de 1990, saiu à luz, com uma tiragem de 3000 exemplares, o meu livro intitulado O “Olhar Esfíngico” da Mensagem de Pessoa.

 

Manchester, Connecticut, USA

11 de dezembro de 2024

António Cirurgião

 

sexta-feira, 26 de abril de 2024

Os novos inquisidores e exorcistas do Portugal pós-abrilista.

 

 

      

 

           Dentro do contexto do meu encontro no Palácio Foz com o Secretário dos Serviços de Informação, Pedro Feytor Pinto, algumas semanas após o 25 de Abril, não posso deixar de referir um episódio grotesco, ocorrido nessa tarde no belíssimo átrio do dito Palácio, episódio de que, por mero e feliz acaso, fui testemunha ocular e auricular, enquanto aguardava o momento do encontro.

          Sob as lentes sôfregas e atentas das câmaras de um canal francês de televisão, reuniram-se nessa tarde de primavera festiva umas duas ou três dúzias de pseudoartistas - pintores, escultores e outros espécimes das artes plásticas –, enquanto os autênticos artistas portugueses, alguns ex-exilados como eles, estavam nos seus ateliers a fazer obra honrada, honesta, patriótica e relevante para o novo Portugal.

          Depois de uma prolongada e acesa discussão, à guisa de planeamento e de ensaio geral, e depois de um longo e meditabundo intervalo, os pseudoartistas, abusiva e vaidosamente autoproclamados representantes do egrégio grémio das artes plásticas portuguesas, acercaram-se da estátua de Salazar, togado, erguida no meio do átrio, formaram um círculo, e, movendo-se lentamente, um pouco curvados, em torno da estátua, em ritmo de cortejo fúnebre e em forma de bailado de bruxas goyescas, começaram a representar uma espécie de coro falado, de que recordo perfeitamente o estribilho, ou, melhor dito, a antífona, por ter sido repetido ad nauseam, em modo de salmodia, sem a ressonância etérea e mística, claro está, que a verdadeira salmodia, entoada em música gregoriana ou canto-chão, imprime na alma dos cantores e dos ouvintes e os faz levitar: “a arte fascista / faz mal à vista”; “a arte fascista / faz mal à vista”; “a arte fascista / faz mal à vista.”

          Depois dessa representação lúgubre e funérea, que se prolongou por cerca de uma hora, sob os comentários picarescos e sarcásticos de um número razoável de funcionários públicos que trabalhavam no Palácio Foz e que, sorrateiramente, espreitavam da varanda e das janelas, comentários, repito, em que sobressaíam, sussurradas sotto voce, por medo de represálias, frases como estas: - “ide trabalhar, seus mandriões; ide ganhar o pão, seus parasitas; ide cortar essas melenas e rapar essas barbaças; ide tomar banho e lavar essas fuças; deixai a estátua em paz, que não vos fez mal nenhum”.

          Claro que estes dichotes eram proferidos de maneira a que os pseudoartistas e “os autoproclamados representantes do egrégio grémio das artes plásticas portuguesas” os não ouvissem. Ninguém queria ser apodado de fascista e de salazarista nem arriscar-se à perda do emprego, por meio de um saneamento sumário, como estava de moda no Portugal pós-abrilista. Mas desnecessário é dizer que nos rostos daqueles honestos e modestos funcionários públicos, desde os contínuos às senhoras da limpeza, se lia o desejo de levantar bem alto a voz do bom senso para fazer saber àquela cambada de energúmenos, encapuçados à maneira dos irmãos das confrarias que participam nas procissões do Senhor dos Passos ou nas procissões da Semana Santa de Sevilha, que se ocupasse em actividades mais construtivas e mais consentâneas com os nobres objectivos proclamados e habilidosamente propagandeados nos múltiplos manifestos programáticos da Revolução dos Cravos.

          Como ia dizendo, depois de uma longa lengalenga soturna e macabra, repetida mil vezes, ad nauseam, para benefício da televisão francesa, os pseudoartistas, “autoproclamados representantes do egrégio grémio das artes plásticas portuguesas”, guedelhudos e barbudos, desdobram cerimoniosamente um enorme pano roxo e cobrem com ele a estátua togada de Salazar, fazendo com ela o que se costuma fazer com os crucifixos e com as estátuas dos santos das igrejas católicas, entre a quinta semana da Quaresma e o Sábado de Aleluia.            

          Terminada essa cerimónia grotesca e fúnebre, os pseudoartistas plásticos do novo Portugal abandonaram o átrio do Palácio Foz, no meio de gargalhadas de mau gosto, com o coração contente e a consciência tranquila por, segundo eles, novos inquisidores e iconoclastas, haverem praticado um acto altamente meritório e patriótico. Tinham profanado e dessacralizado a pacífica estátua de um homem morto; eram heróis revolucionários; felicitavam-se uns aos outros por haverem tido a coragem de praticar um portentoso feito de dimensões épicas – como diria um dos exorcistas, guedelhudo, barbudo e de dentes nicotinados, em mau Francês, à Mário Soares, para francês ver ... e ouvir, pois, volto a frisar, a lúgubre cerimónia, de cariz iconoclástico e exorcista, foi profissionalmente filmada por uma equipa de televisão francesa.

 

Manchester, CT

22 de Abril de 2024

António Cirurgião

segunda-feira, 12 de junho de 2023

Mês de Junho, rei dos meses.

 



 

Mês de Junho, rei dos meses,

Mês dos santos populares,

Mês-paixão dos portugueses,

Motivo dos seus cantares

E também dos seus manjares.

 

És o mês dos manjericos

E do “alecrim dourado”

E dos belos cravos ricos.

Com sardinha és celebrado

E com vinho requintado.

 

Com as marchas populares,

Fazes das donas donzelas

E enches de magia os ares;

Ruas enfeitas de velas

E o Tejo de caravelas.

 

Desfilam ranchos briosos,

Rufam alegres tambores,

Bailam os pares airosos

Com seus trajes multicores,

No meio de mil andores.

 

Entre aquela gente boa,

Santo António está festeiro.

Dos nubentes de Lisboa

Não é só casamenteiro,

Mas também seu padroeiro.

 

 

Manchester, CT, 13 de Junho de 2021

António Cirurgião

 

 


sexta-feira, 21 de abril de 2023

A minha celebração do 25 de Abril.

 




    Falar em pormenor da minha participação no processo revolucionário português desencadeado pelo golpe de estado de 25 de Abril de 1974 é difícil, em virtude da gravidade e melindrosa sensibilidade da matéria, em virtude da complexidade e da extensão dessa participação, e, sobretudo, em virtude da escassez de documentação pertinente (sim: tive comigo essa documentação, mas, por cautela e a conselho de coconspiradores, que  se diziam superiormente informados, fui praticamente impelido a destruí-la, o que hoje sinceramente lamento). Em vista disso, tocar-se-á apenas naqueles aspectos que, em meu modesto entender, parecem revestir maior relevância, para além de estarem mais profunda e indelevelmente gravados na memória.

          E, sem mais preâmbulos, vamos ao relato.

     Animal político, português da diáspora, sempre com a imagem da velha Pátria entranhada na mente e no coração, há muito que me acostumara a despertar ao som do noticiário transmitido pela rádio, especificamente pela emissora de Hartford da NPR (National Public Radio). E foi ao “som do noticiário transmitido pela rádio”, no meu “sempre velho e sempre novo” Grundig, o primeiro objecto de algum valor e muita estimação que comprei nos Estados Unidos, juntamente com a Enciclopédia Britânica, em Inglês, que, na manhã de 25 de Abril de 1974, despertei, no meu apartamento de Storrs, no Estado de Connecticut. E o que ouvi pôs-me em delírio. Um grupo de jovens capitães, dizia o locutor, sem derramar uma gota de sangue, derrubara o governo ditatorial de Marcello Caetano (e de Salazar, naturalmente), com quarenta e oito vagarosos, penosos e pesados anos de duração, e prometera solenemente implantar um regime democrático em Portugal.

          Ouvida a auspiciosa notícia, sentei-me ao piano e toquei A Portuguesa, com a maior emoção. Em seguida, peguei do telefone e chamei o Dr. Adriano Seabra Veiga, meu amigo, meu médico e Cônsul Honorário de Portugal, em Waterbury, estado de Connecticut, e, ébrios de orgulho, celebrámos com lágrimas de alegria a libertação de Portugal. Nas aulas desse dia, a primeira coisa que eu dizia aos meus alunos é que Portugal, o país que me dera o berço, era finalmente uma nação livre. E nos corredores e nos escritórios dizia a mesma coisa aos meus colegas.

          No dia seguinte, sabendo da atenção e da assiduidade com que eu sempre tinha acompanhado a política portuguesa, desde que fora contratado para professor de Espanhol e de Português, na Universidade de Connecticut, em Setembro de 1969, fui convidado pelos dois principais jornais da capital do Estado de Connecticut - The Hartford Times e The Hartford Courant - para lhes dar entrevistas sobre a chamada "Revolução dos Cravos", em Portugal, entrevistas em que manifestei o meu júbilo inenarrável por um acontecimento que eu tão ardentemente desejara e por que tanto tempo ansiosamente esperara e suspirara.

          Dizer que foi com o maior entusiasmo e intensidade que passei a viver a revolução portuguesa é desnecessário. Todos os dias assistia aos noticiários internacionais da televisão e todos os dias lia The New York Times e comprava com a maior regularidade os jornais portugueses que chegavam pela TAP aos Estados Unidos no próprio dia em que eram publicados, dada a diferença de cinco horas entre Portugal e a costa leste dos Estados Unidos, onde eu vivia e continuo a viver. E, embora não tivesse planos para me deslocar nesse Verão a Portugal, a primeira coisa que fiz foi telefonar a uma agência de viagens e marcar passagem de avião para o dia a seguir à conclusão dos exames finais do segundo semestre na minha universidade.

          Os exames acabaram, as provas foram corrigidas, as notas foram dadas e eu tomei o primeiro avião da TAP a caminho de Lisboa, onde aterrei no dia 22 de Maio de 1974 e donde regressei aos Estados Unidos no dia 5 de Julho.

          Chegado ao aeroporto da Portela, a primeira coisa que fiz foi procurar um cravo vermelho. E como, para surpresa e desilusão minha, não havia cravos à venda no aeroporto, ao contrário do que as notícias que me chegavam diariamente pela imprensa, pela rádio e pela televisão, me tinham induzido a crer, dirigi-me a um soldado fardado e pedi-lhe que fizesse o favor de me presentear com o cravo que ele tinha espetado na ponta da baioneta. E o soldado deu-me o cravo, com um sorriso nos lábios, gesto que eu agradeci e retribuí com idêntico sorriso.

          De cravo vermelho na lapela do casaco, saí do aeroporto e tomei um táxi. Quando o motorista me perguntou pelo destino, eu disse-lhe que se dirigisse ao Marquês de Pombal e que daí me levasse até ao fim da Avenida da Liberdade. Uma vez lá chegados, o motorista perguntou-me onde queria que me deixasse, ao que eu respondi que subisse a Avenida da Liberdade e que depois me levasse ao Campo Grande.

          Ao acabar de proferir estas palavras, o motorista de táxi, meio perplexo, olhou para mim de uma forma estranha e perguntou-me se eu tinha muito dinheiro para desperdiçar. Respondi-lhe que não e expliquei-lhe a razão por que tinha descido e subido a Avenida da Liberdade. Tinha esperado durante tantos anos pela libertação de Portugal, que queria celebrá-la simbolicamente, apenas chegado ao meu país de origem, país que trazia sempre gravado na mente e no coração, mesmo que tivesse optado pela aquisição da nacionalidade americana, acontecida no primeiro de Maio de 1967, por conveniências cívicas e profissionais.

          Após haver passado uns momentos com minha irmã, filha da caridade, no seu convento, Casa Central de São Vicente de Paula, na Avenida Craveiro Lopes, tomei um táxi para o Sabugo, uma pequena aldeia entre Belas e Pero Pinheiro, do concelho de Sintra, onde vivia um irmão meu, com a esposa, os três filhos e a minha mãe. A todos encontrei em casa, com excepção de meu irmão, que se encontrava preso no Forte-Prisão de Caxias, desde o dia 26 de Abril.

          Não constituiu para mim grande surpresa o ver que a apreensão de minha mãe e de minha cunhada pela sorte de meu irmão não era tão grande como seria de esperar, noutras circunstâncias. É que elas, da mesma maneira que eu e o povo português, em geral, tinham sido levadas a crer, a julgar pela habilidosa e manhosa propaganda de que diariamente se faziam eco os meios de comunicação social, ferreamente manipulados pelos mandarins do novo regime, que se tratava de uma espécie de estado de asilo político para altos funcionários públicos, legionários, ministros, secretários e subsecretários de estado, altas patentes militares e grandes empresários, até ao momento, que surgiria num futuro muito próximo, dizia-se falsa e falaciosamente à boca cheia, através de uma comunicação social controlada e censurada, em que se evaporasse definitivamente uma certa fúria popular contra esses e outros servidores do velho regime político.

          Tratava-se no fundo, como me tinha sido dito pelos novos donos do poder, e como voltaria a ser-me frequentemente repetido, no futuro, de proteger esses cidadãos contra possíveis represálias por parte de meia dúzia de fanáticos e de energúmenos, maldosamente atiçados em surdina por elementos do PCP (Partido Comunista Português) e de outros partidos políticos radicais de esquerda e por muitos representantes marxistas do MFA (Movimento das Forças Armadas).

          Após o almoço, minha mãe, minha cunhada, meus sobrinhos e eu dirigimo-nos ao Forte-Prisão de Caxias, para ver se conseguíamos visitar o meu irmão. Que não era possível: que nesse dia não havia visitas; que os prisioneiros estavam de quarentena - foi-nos dito por um militar fardado, barbudo, guedelhudo e de metralhadora em punho, postado desleixada e preguiçosamente ao lado de um tanque carrancudo e ameaçador, a uns bons metros do portão do Forte-Prisão.

          Mediante tal resposta, comecei por dizer que tinha chegado dos Estados Unidos, na manhã desse mesmo dia, com uma única finalidade: a de visitar meu irmão na prisão. E como o militar ainda continuasse a dizer-me que não era possível efectuar visitas nesse dia, tirei do bolso dois recortes de jornal, publicados na cidade de Hartford, capital do Estado de Connecticut, nos Estados Unidos, com entrevistas minhas, dadas no segundo dia a seguir à revolução, no dia 26 de Abril, portanto, como foi referido anteriormente.

          Quando verificaram que nessas entrevistas eu celebrava em termos superlativamente encomiásticos a "Revolução dos Cravos" (o título de uma das entrevistas era assim: "The most beautiful coup d'état of the century"), os zelosos e fanáticos guardiães dos carcereiros e dos encarcerados do Forte-Prisão de Caxias, apearam-se momentaneamente do pedestal em que se tinham alcandorado, retiraram todas as objecções e, a título de excepção, permitiram-me, assim como a toda a minha família, uma rápida visita a meu irmão.

          Depois de termos passado por entre grades e soldados barbudos e guedelhudos, armados de iradas metralhadoras, chegámos a uma sala onde nos mandaram esperar. Passados momentos, acompanhado de dois soldados, também fortemente armados, chegou meu irmão. Separavam-nos espessas e ameaçadoras grades de ferro e grossos vidros, à prova de bala, e tornava-se impossível abraçarmo-nos. Mutuamente fizemos o gesto do abraço fraterno. E eu, ingenuamente, e na melhor boa fé, dei-lhe a entender, por gestos, que lhe queria oferecer o cravo que levara comigo, mas que não sabia como poderia dar-lho. Lembrei-me então que poderia pedir a um soldado que tivesse a bondade de lho entregar por mim. Fiz esse pedido e o soldado entrou no recinto em que se encontrava meu irmão e entregou-lhe o cravo. E a visita terminou, decorridos escassos e fugitivos minutos.

          Essa visita foi o doloroso prelúdio de outras visitas, durante o resto dessa minha estadia em Portugal e durante outras futuras estadias, por ocasião das férias de Natal e de verão, visitas que viriam a mudar de destino, que não de finalidade, à medida que meu irmão andou, como outros prisioneiros políticos portugueses, de Pilatos para Caifás, quer dizer, de prisão para prisão, passando do Forte-Prisão de Caxias para a Penitenciária de Lisboa, da Penitenciária de Lisboa para o Forte-Prisão de Peniche, do Forte-Prisão de Peniche para o Estabelecimento Prisional de Monsanto, e do Estabelecimento Prisional de Monsanto finalmente para a liberdade, depois de um julgamento perfuntório, com louvores do juiz, uns vinte e oito meses mais tarde, após o encarceramento. Encarceramento puramente discricionário, facto de que eu - e todos os que tivessem olhos para ver - viria a ter provas irrefutáveis, à medida que o tempo passava.

          Foi por ser testemunha ocular desse procedimento, por parte dos vários governos que se foram formando e caindo, que eu comecei a repensar a Revolução de Abril e que fui concluindo, pouco a pouco, com demasiada lentidão, infelizmente, devido à minha proverbial ingenuidade, que não era essa a revolução com que eu poderia continuar a identificar-me, com o entusiasmo e o fervor com que me identificara com ela nos primeiros tempos. Si parva licet componere magnis (Se é lícito comparar as coisas pequenas com as coisas grandes), também eu diria, amargurado e triste, com Ortega y Gasset, perante o malogro que foi a Segunda República Espanhola (1931-1939), por cujo advento ele valente e denodadamente pugnara: “no es esto, no es esto.”

          Tinha eu regressado aos Estados Unidos e meu irmão continuava na prisão, à espera de uma acusação formal que nunca chegava, porque afinal não existia causa-crime para se poder fazer essa acusação.

           Um belo dia, por fins de Novembro de 1974, resolvi escrever uma carta ao Presidente da República Portuguesa, já então o General Costa Gomes, pedindo-lhe que mandasse proceder ao julgamento de meu irmão, se achava que ele tinha cometido algum crime, ou então que o mandasse pôr em liberdade. Era assim que se agia nos países civilizados e genuinamente democráticos - dizia eu nessa carta. E era assim que estava exarado na Carta das Nações Unidas, de que Portugal galhardamente se orgulhava de ser um dos países signatários, a partir de 1955.

          O tempo passava e de Lisboa não chegava qualquer resposta à minha carta. E foi assim que, tendo sido convidado pelo Embaixador de Portugal às Nações Unidas, Professor Veiga Simão, e pelo Cônsul Honorário de Portugal, em Waterbury, a representar a comunidade luso-americana do meu Estado, Connecticut, por ocasião do discurso do Presidente de Portugal, General Costa Gomes, nas Nações Unidas e da recepção dada por ele à comunidade portuguesa nos Estados Unidos, no Hotel Astoria de Nova Iorque, levei comigo uma cópia dessa carta e, no momento em que o cumprimentei, fiz questão de lha mostrar, de lhe dizer por alto do que se tratava e depositá-la nas mãos de um dos seus assessores. Só passados uns três meses é que recebi uma resposta a essa carta, do punho de um tal Capitão Geada. Resposta muito vaga, pelo que se referia à sorte de meu irmão, prisioneiro político, mas muito concreta pelo que se referia ao meu empenho pelo triunfo da revolução portuguesa, como constava dos recortes de entrevistas dadas por mim a prestigiosos jornais dos Estados Unidos, recortes que eu tinha enviado, em anexo à cópia da carta que escrevera ao Presidente da República Portuguesa, General Costa Gomes.

 

                                                                                           António Cirurgião

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


terça-feira, 4 de abril de 2023

Mestre da Banda das Oficinas de São José de Lisboa.


 



 

          No ano lectivo de 1957-58, fui nomeado, mediante o voto de obediência, para o cargo de professor nas Oficinas de São José de Lisboa, colégio da Congregação Salesiana para alunos internos e externos, onde se ministrava o curso de admissão ao ensino secundário, o curso preparatório, o curso comercial e o curso industrial. No próprio dia da chegada, fui chamado ao gabinete do Padre Prefeito, a fim de me informar sobre os cursos que ia ensinar nesse ano lectivo. Quando pensava que me poriam a ensinar apenas Português, Francês e História Universal aos alunos do curso comercial e do curso industrial, matérias que eu já tinha ensinado noutros colégios salesianos, vejo-me também responsável pela Matemática do segundo ano do curso preparatório.

         Como faltavam ainda umas quatro semanas para o início do ano lectivo, lancei-me imediatamente a preparar, com a maior diligência todas essas matérias, mormente a Matemática, dado que nunca tinha ensinado essa disciplina nem gostava dela.

         Passada uma semana, vejo-me intimado a comparecer no escritório do Padre Director, para ouvir dos lábios dele que, em virtude de, inesperadamente, e com grande pena dele, Director, o padre encarregado do orfeão e da banda, ter sido destacado para missionário em Macau, eu tinha de desempenhar essas funções. Perante tais circunstâncias, não tive outro remédio senão aceitar essa penosa incumbência, embora fizesse saber, com o maior respeito, ao Padre Director que, quanto ao orfeão, não via qualquer problema, mas que, quanto ao desempenho das funções de mestre da banda, eu não tinha a mínima competência. À minha objecção retorquiu o Padre Director, com grande amabilidade, que, dado o meu conhecimento do solfejo, do piano e do órgão (instrumentos em que eu não passava de um mísero amador), e, continuou ele, dada também a minha experiência de tocador de tuba na banda de outro colégio salesiano, não me seria difícil vir a ser mestre competente de uma banda constituída por cerca de quarenta elementos.

         Num gesto impregnado de simbolismo pedagógico e como que para tornar mais leve o pesado fardo que me punha sobre os ombros e tornar mais palatável o trago amargo que me punha nos lábios, o Padre Director colocou-me nas mãos trementes a partitura, novinha em folha, de uma marcha intitulada Querer é Poder, e rematou assim a conversa:

         - Para que vejas que eu tenho toda a razão para confiar em ti, no teu brio e na tua força de vontade, recomendo-te que esta seja a marcha com que virás a abrir todas as actuações da banda nas festas do colégio e em todos os desfiles cívicos. Toquei-a ao piano e pude verificar que é uma marcha simples, fácil e bonita, de efeito garantido – concluiu o Reverendo Padre Director. 

         Proferidas estas palavras, esboçou um breve sorriso, aconselhou-me a implorar a protecção de Santa Cecília, padroeira da música, desejou-me boa sorte, deu-me a bênção e entregou-me as chaves da sala de banda.

Triste, apreensivo, como se pode imaginar, dirigi-me à sala de banda e abri a porta, trepidante. Depois de passar perfuntoriamente os olhos por todos os instrumentos e por algumas partituras, subi ao pódio e imaginei a localização dos diferentes naipes da banda, dispostos em semicírculo e em plano inclinado: na primeira e segunda filas estavam as  duas flautas, a requinta, os primeiros e segundos clarinetes; na terceira fila, o saxofone soprano e o saxofone alto e os trompetes; na quarta fila, as três trompas, os três trombones e os dois bombardinos, um em cada extremidade; e na última fila, a caixa, os ferrinhos, a  pandeireta, os pratos, o bombo e os dois baixos ou tubas, um em cada extremidade.

Seguidamente, abri uma partitura, peguei na batuta, dei uma resoluta pancadinha na extremidade do pódio para impor silêncio, ergui os ombros, assumi um ar austero, franzi o sobrolho, olhei pausadamente, com semblante autoritário, para os cerca de quarenta músicos imaginários, levantei os dois braços, quase em arco, com as duas mãos à altura dos olhos; depois, fazendo de conta que íamos tocar a marcha mais conhecida de John Philip Sousa, Stars and Stripes Forever, executei com a mão direita, a da batuta, dois compassos em branco e dei sinal de entrada.

Tudo parecia estar a correr a preceito, quando, de repente, me dei conta de que, mesmo tratando-se de uma marcha que eu sabia de cor e salteado, estava totalmente perdido, sem saber se íamos repetir um andamento, se era o momento de dar a melodia aos instrumentos de metal e o acompanhamento aos instrumentos de sopro ou vice-versa. No meio dessa diabólica confusão, quase tive um ataque de pânico. Sem saber como nem por quê, estava eu a arrojar tresloucado a assustada batuta contra a parede, a descer apavorado do pódio e a correr para a porta da sala de banda, a abri-la com fúria, a fechá-la à chave e a dirigir-me como um relâmpago ao escritório do Padre Director e a pousar desvairadamente as chaves da sala de banda sobre a secretária dele.

Ao ver-me nesse deplorável estado, o Padre Director ofereceu-me um copo de água, pediu-me que respirasse fundo, que acalmasse e que lhe contasse o que me tinha acontecido. Contei-lhe tudo e, no fim, roguei-lhe que, por amor de Deus, não me obrigasse a ser responsável pela banda. Ele, havendo passado rapidamente pela mente e pelos lábios os nomes de todos os padres, clérigos e coadjutores que nesse ano tinha ao seu serviço nas Oficinas de São José, disse-me que eu era o único com habilitações musicais suficientes para desempenhar devidamente esse cargo. Que, com o conhecimento que eu tinha de música, e com as três semanas que ainda faltavam para o início do ano lectivo, havia de ver que eu viria a superar essa dificuldade mais aparente que real. E como eu continuasse a insistir na minha incompetência para o desempenho desse cargo, ele, numa atitude a traduzir um misto de autoridade e compreensão humana, limitou-se a colocar-me nas mãos as chaves da sala de banda e a dizer, entre sério e sorridente, que não o obrigasse a mandar-me em nome do santo voto de obediência.

Triste como um suspiro, quase a chorar, com enorme pena do pobre de mim, por me ver obrigado a ter de desempenhar uma função para que não me sentia minimamente habilitado, fui carpir as minhas mágoas para o meu escritório.

Ora aconteceu que nesse mesmo dia, por auspiciosa obra do azar, depois do jantar, deparei inopinadamente com um padre velhinho, chamado Pedro Vicente Morais, conhecido simplesmente como Padre Morais, que tinha vindo do Oratório de São José de Évora passar umas semanas nas Oficinas de São José de Lisboa. Dado que de há muito tempo eu tinha uma grande confiança nele, como se fosse uma espécie de avô muito querido, modelo de sabedoria e de bondade, roguei-lhe que me emprestasse um ombro para nele desafogar as minhas amarguras. 

Depois de me ter ouvido, cheio de empatia e simpatia, limitou-se a dizer, essencialmente, que não me preocupasse: que durante as três semanas de férias ele me havia de ensinar o suficiente para eu vir a ser um bom mestre de banda. É que ele não só era um dos maiores peritos em Portugal na ciência da Radiestesia, quer dizer, especialista em desencantar águas subterrâneas e vários tipos de minérios, por meio de uma varinha de madeira, em forma de forquilha, e de um pêndulo metálico, em forma de peão, preso de um fio, mas possuía também uma considerável formação musical, tendo sido o fundador e um competentíssimo mestre da banda colegial, no Oratório de São José, de Évora, durante muitos anos, sabia construir órgãos e era também um dos raríssimos padres salesianos que dominava bastante bem a composição, a ponto de fazer arranjos musicais muito meritórios.  

A partir do dia seguinte, até ao início do ano lectivo, com uma paciência de Job, o bom do Padre Morais passou horas e horas comigo na sala de banda a ensinar-me quase tudo quanto eu necessitava saber para me desempenhar satisfatoriamente do cargo de director e de maestro da banda colegial. Tanto assim foi que, por mais de uma vez, quando éramos convidados a tocar em paradas ou nas procissões da Quaresma, em várias das paróquias de Lisboa, tais como a de Santo Condestável, a de São Roque e a da Ajuda, cheguei a ouvir comentários como este, vindos do meio dos milhares de pessoas que acompanhavam a procissão ou paravam nos passeios das ruas para ver passar a procissão do Senhor dos Passos:

- Quem me dera saber música como aquele gajo.  

Mal imaginavam esses precipitados e francos louvadores que “aquele gajo”, além das lições providenciais recebidas do bom do Padre Morais, roubava incontáveis horas ao sono para passá-las na sala de banda, sentado ao piano, a estudar meticulosamente as partes dos diferentes instrumentos, para depois, durante os curtos ensaios que o Director Escolar relutantemente nos concedia, as ensinar de ouvido a vários dos membros da banda, por eles não saberem solfejo suficiente.

Outro recurso de que me vali para me sair o mais decentemente possível da minha aventura de mestre de banda à força foi recorrer aos bons ofícios dos poucos alunos, normalmente os finalistas, que dominavam relativamente bem os respectivos instrumentos. Como aprendiam com facilidade as suas partes, por termos um reportório limitadíssimo, ajudavam-me a ensinar, não só os aprendizes, mas também os alunos que, sendo já músicos efectivos, nunca chegavam a atingir o nível que lhes permitisse ler devidamente as partes por si mesmos.

Por falar nos aprendizes, vou referir um episódio que tenho contado diversas vezes através dos anos, por me parecer que tem uma certa graça, modéstia à parte.

          Além dos elementos efectivos, a banda tinha, como é natural, um número razoável de aprendizes, destinados a preencher as vagas criadas pelos músicos que, no final do ano lectivo, concluído o curso, deixavam o colégio e iam para o mundo do trabalho. Como é natural também, a maior ambição de um aprendiz é atingir o estatuto de membro efectivo. E como outrossim é natural, na música instrumental, como em tudo, entram o talento e a arte, tomada aqui arte em sentido lato, no de prática ou aprendizagem. Ora aconteceu que nesse ano tive um aprendiz de clarinete, a bondade e a diligência em pessoa, que, apaixonado por esse instrumento, fazia um esforço inaudito para suprir a falta de talento. Passava o tempo e, enquanto alguns dos seus colegas chegavam ao ponto de poderem ser integrados na banda, por ocasião das frequentes actuações, já durante as festas do colégio, já durante as paradas ou as procissões, ele, mesmo com toda a boa vontade deste mundo e do outro, não conseguia atingir essa meta. Com o ar mais humilde que se pode imaginar, de longe em longe, pedia-me que o deixasse participar numa procissão como clarinetista. Perante esses pedidos e o seu empenho exemplar na aprendizagem, e, ao mesmo tempo, com receio de que, tal como às vezes sucedia com outros, ele viesse a desanimar e a desistir da banda, lembrei-me de recorrer a um estratagema especial para lhe satisfazer esse compreensível e ardente desejo.

        Íamos tocar numa procissão da Quaresma. Como a banda era fraquinha, por razões óbvias, eu estabeleci uma série de preceitos, a cumprir rigorosamente, por ocasião das saídas, a fim de poder tirar o melhor partido possível da nossa penúria: primeiro, exigir que todos os membros da banda levassem a farda impecavelmente lavada e primorosamente passada a ferro e os sapatos pretos engraxados a rigor; segundo, pôr o metal dos instrumentos musicais a brilhar, mercê do trabalho feito na noite anterior ao dia da saída por alguns voluntários, sob a minha supervisão; terceiro, reiterar, vezes sem conta, que o melhor que podíamos fazer era pôr a imaginar todos os que nos acompanhavam nos desfiles e nas procissões que, perante eles, desfilava uma banda competente, ao reparar no brilho dos instrumentos, no vistoso das fardas, na elegância e no aprumo do marchar, ao toque rítmico e sonoro da caixa; quarto, proibir terminantemente que alguém se atrevesse a tocar sequer uma nota desde o momento em que fossem buscar os instrumentos à sala de banda até ao sinal de entrada para cada uma das marchas executadas        

Foi alicerçado no quarto e último preceito que me foi possível recorrer ao seguinte estratagema: colocar algodão em rama entre a palheta do clarinete e a madeira, para impedir que dele saísse qualquer som, por mais que o bom do aprendiz soprasse. Chega o momento de arrancar com a primeira marcha – uma marcha fúnebre e soturnamente funéria, neste caso – e o nosso aprendiz de clarinete, cheio de orgulho, de garbo e de alegria, por haver soado finalmente a hora da sua tão suspirada estreia, sopra como todos os clarinetistas têm de soprar e imagina – e com muito boa razão – que está a colaborar no sucesso da marcha (e das marchas posteriores), quando, na realidade, está a cimentar o seu lugar, como clarinetista real, na banda do ano seguinte.

Cronicar a vasta série de episódios relacionados com o meu estatuto de mestre de banda à força seria uma tarefa muito morosa. Porém, parece-me edificante e oportuno referir alguns, por neles se poderem compendiar as principais vicissitudes por que passei no decorrer desse estranho mandato.

De temperamento colérico, segundo o meu mestre de noviços, pio e fiel devoto de Hipócrates, pai da medicina, e de Galeno, pai dos quatro humores e dos quatro temperamentos humanos, malgrado os grandes esforços que fazia para não me irritar demasiado durante os ensaios, às vezes as fífias e os disparates cometidos por alguns elementos da banda, já por descuido, já por inépcia, eram de tal maneira enervantes e horripilantes, que eu me sentia inscientemente impelido a bater com tal força com a batuta no pódio, que ela me desaparecia das mãos, desfeita em pedaços, e passava, em voo rasante, por cima das cabeças inocentes dos músicos espantados. Valia-me nessas ocasiões um trompetista muito imaginoso. Aluno brilhante do curso industrial e aprendiz de marcenaria, estava sempre munido de uma batuta suplente, para amavelmente me colocar nas mãos, nessas lamentáveis e imperdoáveis ocasiões de frustração...e má-criação, da minha parte.

Entretanto, dada a indesejável repetição desse bizarro fenómeno, um belo dia, quando a batuta, desfeita em pedaços, voou mais uma vez pelos ares, levanta-se da cadeira um saxofonista, aprendiz de mecânica, aproxima-se do pódio e, entre as gargalhadas de todos os músicos, a que eu não pude deixar de associar-me, oferece-me sorridente uma batuta de ferro fundido, gesto que eu agradeci com uma profunda vénia, uma das poucas coisas que eu sabia fazer bem, quando estava no pódio, de batuta na mão, diga-se em abono da verdade. Essa preciosa e exótica dádiva achei-a de tal forma original e significativa, que, metida numa mala, ao lado de uma linda batuta, feita ao torno, cheia de floreados, com que o dito e engenhoso aprendiz de marcenaria um dia me presenteou, ainda hoje me acompanha.

Apesar da sua modéstia, comparada com a da Casa Pia, a outra única banda colegial de Lisboa, naquele tempo, apraz-me evocar, com agridoce nostalgia, e mantidas as devidas proporções, três pontos altos vividos pela banda das Oficinas de São José, sob a minha regência de paupérrimo e modestíssimo amador.

O primeiro foi o convite oficial feito pelas autoridades do Governo para a nossa banda contribuir para abrilhantar, em 1959, o espectáculo organizado no Estádio do Restelo, em homenagem à Princesa Margaret, da Inglaterra, por ocasião de uma visita oficial a Portugal, durante seis dias. Embora os grandes aplausos das multidões que encheram o estádio fossem justamente para o mítico tattoo militar realizado pelos esquadrões a cavalo e de motos da Guarda Nacional Republicana, a banda das Oficinas de São José deu um arzinho da sua graça com uma série de marchas ligeiras e foi respeitosamente aplaudida.   

O segundo ponto alto foi a banda ter sido convidada pela poetisa Fernanda de Castro, viúva de António Ferro, para dar dois concertos no Jardim da Estrela, de Lisboa, por ocasião da realização das Festas Nacionais do Mundo Português, por ela organizadas.

Transido de medo por não estarmos à altura das circunstâncias – tocar em público, num vistoso coreto, para milhares de pessoas -, a banda acabou por sair-se discretamente bem e ser generosamente aplaudida. É que, por um daqueles felizes acasos, com que às vezes a sorte bafeja os pobres mortais, à última hora, quando já estávamos a fazer as afinações, para dar início ao primeiro concerto, surge-me no coreto, como que por milagre, um jovem músico, trajando com orgulho a nossa farda e munido de um trompete dourado, a oferecer-me os seus préstamos.

           Antigo aluno das Oficinas de São José, a tocar na Banda da Marinha, esse músico profissional (e providencial) nada mais teve que fazer senão passar rapidamente os olhos pelas peças do nosso magro reportório para se habilitar a tocar devidamente as partes de primeiro trompete. Só me pediu uma coisa: que lhe deixasse tocar um solo numa das peças, o que implicou um pequeno sacrifício, por parte do brioso e competente músico da minha banda, indigitado para desempenhar essa função.

Chega o momento do solo do trompetista, engastado numa rapsódia de canções populares portuguesas. De pé, à boca do coreto, o solista apruma-se, respira fundo, enche-se de brio e delicia e arrebata a vastíssima assistência – e os membros da banda e o maestro também - com a sua deslumbrante actuação ad libitum.

          O terceiro ponto alto da banda foi o concerto dado no Pavilhão de Desportos de Lisboa, por ocasião de uma efeméride cujo nome não recordo. Sei, porém, que o anfiteatro estava superlotado e que o concerto foi gravado pela Televisão Portuguesa, no tempo em que havia apenas um canal, e que, passados uns dias, foi transmitido para o país inteiro, para júbilo e estímulo dos adolescentes e jovens músicos amadores da Banda das Oficinas de São José de Lisboa, “de boa memória”. 


                                                                             António Cirurgião


domingo, 17 de outubro de 2021

O tema de Lara, semente de melancolia.



 

O tema de Lara, semente de melancolia 

 

Sonolento, preguiçando,

No meu sofá recostado,

Estava eu procurando

Matar o tempo evocando

Lembranças do meu passado,

 

Quando musical momento

Fez a sua aparição.

De ouvido um pouco atento,

Quis descobrir o intento

Dessa mágica visão.

 

Por que a canção de Lara

Veio inopinadamente?

É que ela me é tão cara

Por sua beleza rara,

Que me invade inteiramente.

 

No serão anterior,

Após uma frugal ceia,

Em ambiente sonhador,

Vi o filme encantador

À luz ténue da candeia.

 

De tal modo se apossou

Do meu subconsciente,

Que a defesa lhe anulou

E no seio me plantou

A sua letal semente.

 

Como posso esconjurar

Este sestro malfadado?

Nisso tenho que apostar

E nos Fados confiar

Que serei exorcizado.

 

Manchester, 3 de Outubro de 2021

António Cirurgião