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quarta-feira, 29 de março de 2017

Saramago, ma non troppo.


 

 
 
Acabo de ler num jornal peruano – Expreso – uma notícia que ontem ou anteontem já tinha lido num jornal português: que vai sair a lume, no dia 25 deste mês, um novo romance de José Saramago, intitulado Ensaio sobre a lucidez. Já o sabia muito bem, mas agora fico a sabê-lo melhor: que a máquina de publicidade montada por Saramago e pelos seus acólitos e pelos seus editores é poderosíssima, tanto a nível nacional como a nível internacional. O artigo em que se anuncia o novo romance é curto, mas nada fica a dever ao que de melhor se faz, em termos publicitários, na Madison Avenue da Cidade de Nova Iorque. A palavra-chave é o escândalo, fazendo-se questão de acentuar bem que o evento ultrapassará de longe o que aconteceu com o seu romance Evangelho segundo Jesus Cristo.
         Dizer que estou farto de Saramago até à ponta dos meus cabelos brancos é desnecessário. Li e estudei com certo interesse e alguma profundidade o Memorial do Convento. Dei esse romance em dois seminários sobre ficção portuguesa contemporânea na Universidade de Connecticut. Não posso esquecer o enorme entusiasmo dos meus alunos judeus americanos – três – pela história de Blimunda. E o meu também. Até porque cada vez estou mais convencido que carrego comigo aquela costela judaica (e aquela costela mourisca) de que falava Américo Castro, refutando o fanático e inquisitorial Don Marcelino Menéndez y Pelayo, apostado em demonstrar a todo o custo, falaciosamente, a pureza da raça dita ibérica. Isso pelo lado paterno, em virtude de meu pai e os pais de meu pai serem oriundos de Macedo de Cavaleiros e em virtude do estranho modo de meu pai viver – ou não viver – a religião. Que me lembre, nunca lhe vi pôr os pés na igreja. Naturalmente que o meu apelido de Cirurgião é mais um argumento a favor da minha potencial costela judaica.
         (Aqui abro um parêntesis para contar o que me contou Dona Mécia de Sena sobre o Memorial do Convento. Acabado de ler, Dona Mécia, tal como é seu costume, apressou-se a escrever uma longa carta a José Saramago para lhe dar a sua opinião sobre o romance, com aquela frontalidade e franqueza por que sempre se pautou a sua crítica literária. Que, entre outras coisas, lhe disse que a única coisa de que sobremaneira gostara fora da novela inserida no romance: a história de Blimunda. Mas que essa já estava escrita e publicada: era O Físico Prodigioso do seu marido, Jorge de Sena.)
Mas deixemos, por agora, estas digressões e passemos adiante.
         Li também com certo prazer o Ano da Morte de Ricardo Reis.
         Quanto ao Evangelho segundo Jesus Cristo, comecei a lê-lo por mais de uma vez, mas nunca consegui passar das primeiras páginas. É que a matéria já tinha sido tratada por Renan e por alguns dos seus discípulos e epígonos, e em melhor linguagem e melhor estilo.
         Não sei se o meu fastio em relação a Saramago se deve mais ao conhecimento do homem que ao conhecimento da obra. É que, para meu azar, tive a desdita de haver visto Saramago e de com ele haver convivido em demasiadas ocasiões. A primeira vez que o conheci pessoalmente foi na noite em que se estreou, no palco, em Agosto de 1986, no anfiteatro do Museu de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, a tragédia de Jorge de Sena, intitulada O Indesejado (António, Rei). Terminada a representação, juntou-se um grupo bastante grande no Pavilhão Chinês, ao Príncipe Real, para uma longa sessão de tertúlia. Lembro-me que, entre outras pessoas, estavam D. Mécia de Sena, Vasco Graça Moura, Maria Velho da Costa, Orlando Neves, encenador da peça, e  Sinde Filipe, actor principal.
Voltei depois a estar com José Saramago por ocasião do congresso anual do New England Chapter da AATSP (American Association of Teachers of Spanish and Portuguese), realizado em data que não recordo na University of Massachusetts, em Amherst. O orador principal (keynote speaker), durante o banquete, foi José Saramago, antes de haver sido galardoado com o Prémio Nobel de Literatura, mas quase doentiamente ansioso por se ver reconhecido e aclamado pela comunidade académica. Fez um discurso longuíssimo e chatérrimo. Não disse sequer uma gracinha, coisa  obrigatória em discursos desta natureza. Não esboçou o mais fugidio sorriso. Dono do pódio, senhor absoluto de uma audiência cativa, ansiosa por se levantar da mesa e, em conversa amena, fazer o quilo de um jantar farto, mas tipicamente sensaboroso, Saramago falou longuissimamente e chaterrimamente, como já foi dito, com uma solenidade de sumo pontífice da verdade, como se dele dependesse o futuro das nações e a salvação da humanidade.    
         Vi Saramago por ocasião do congresso sobre Viagens na minha terra, de Garrett (Garrett’s Travels and Its Descendants), organizado por Víctor J. Mendes, professor da Universidade de Massachusetts, em North Dartmouth, nos dias 22 e 23 de Outubro de 1999, ano do centenário da morte de Almeida Garrett. Nesse congresso, já laureado com o Prémio Nobel,  Saramago também botou faladura, dando à sua comunicação o pomposo título de “Garret e Eu.” Tom solene e súper-sério, como sempre. Recordo-me de ele ter dito que Viagens na minha terra foi um dos primeiros livros que leu, sendo esse ou o único ou um dos escassíssimos livros que havia em casa dos pais dele. E recordo-me também de ele ter dito e redito que desse livro só lhe interessara – e só continuava a interessar-lhe –, desde a primeira leitura, a viagem propriamente dita. Que à deliciosa novela, a Menina dos olhos verdes ou a Menina dos rouxinóis, não lhe achara – nem achava - graça nenhuma nem qualquer relevância. Naturalmente que, com uma afirmação dessa natureza, Saramago outra coisa não pretendia fazer senão chamar a atenção dos ouvintes para a sua concepção da literatura como uma actividade de militância em prol de uma causa pragmática: a luta pela vitória universal do proletariado, cabendo a Saramago o cargo de profeta-mor, sumo pontífice e supremo líder.  
         E se eu não ficar por aqui, caio naquilo que mais detesto em Saramago: a repetição ad nauseam das mesmas ideias. De maneira que, para concluir, acrescentarei apenas que nunca vi nenhum escritor – e bastantes tenho conhecido através da vida – que se tomasse tão a sério como José Saramago.
 
 
Manchester, Connecticut, 8 de Março de 2004
 
António Cirurgião