terça-feira, 11 de março de 2025

Usbequistão: encruzilhada de civilizações (19).

 

 

 

Nos arredores de Boukhara, o palácio Sitorai Mokhi Khosa, o que é traduzido de forma algo contraditória por Palácio das Estrelas como a Lua, era a Residência de Verão do Emir de Boukhara. O Palácio que se vê hoje foi construído no início do Século XX pelo último emir que, como já vimos, foi destituído em 1920. Não teve, pois, muito tempo para o gozar…

A decoração é de gosto predominantemente europeu.

 








Já na saída de Boukhara na direcção do deserto, a Necrópole Chor Bakr, construída no Século XVI, destinava-se a dar sepultura a muitos dos líderes religiosos, em especial a Abu Bakr-Said que viveu no Século X.

 




 

                             Fotografias de 1 e 2 de Outubro de 2025

                                                                         José Liberato



segunda-feira, 10 de março de 2025

Deste lugar onde escrevo.

 


                                                                                                                                       1951

 


Vivo aqui há trinta anos. Do lugar onde isto escrevo, a três, quatro minutos a pé, estiveram estacionadas as tropas de Afonso Henriques antes de tomarem a cidade aos mouros. Em resultado disso, o rei mandou que se erguesse um mosteiro, em cumprimento da promessa que fizera antes da batalha, cujo desfecho vitorioso permitiu que hoje eu possa escrever isto aqui, deste lugar onde escrevo. Mais tarde, já no tempo de outros reis, aqueles que nos ocuparam durante quase uma centúria inteira, o mosteiro foi reedificado pedra sobre pedra, adquirindo as formas que ainda hoje mantém, e que podem ser observadas nas selfies que os turistas vindos nos tuk-tuk depois propalam pelo Instagram fora, com eles no primeiro plano, e o monumento em segundo. Nos trinta anos que aqui levo, neste lugar onde escrevo, vi só um pedaço do mundo, mas muito mundo aqui vi: caíram o Muro e as Torres, mostrando a fragilidade dos impérios, houve um cortejo de guerras e de outros tantos desastres, uns mais naturais do que outros, migrações, turbulências, com um Portugal de permeio, governanças sucessivas, triunfos do Glorioso. Acontecimentos de grande impacto, que a todos por certo abalaram, mas que vistos de aqui pouco interessam, não sendo sequer falados. Problemas à séria, esses sim amplamente ventilados, são os do estacionamento e o dos buracos no pavimento, foi o não haver luz na rua meses a fio, anos quiçá, pese as múltiplas diligências e insistências dos moradores mais activos e interventivos junto da junta e da câmara, com cartas para a EDP, até em formato papel. No plano das instituições, o ódio à EMEL continua por aqui em níveis muito elevados e têm grafitado regularmente o palácio que o cantor espanhol famoso comprou ao lado do mosteiro, “Free Palestine” e assim, mas agora já vai em “Morte a Israel” e “Israel = Nazi” (esta, no coreto da Graça). Fechou, e isto já há um bom par de anos, a mercearia da dona Ana e do marido, cujo nome eu nunca soube, e onde punham os preços todos à mão, com autocolantes em cada artigo, um a um, o dia inteiro naquilo. À esquina, em frente de onde querem fazer um hotel, prossegue a bom ritmo e sem falta de freguesia a funerária que fez o enterro do Cunhal e espero que faça o meu. Abriu um indiano a meio da rua, mas fechou pouco depois, suspeito que por queixas de insalubridade feitas pelo comércio do lado, Zezé Cabeleireiro, o brasileiro que me apara o cabelo e faz a barba (na tropa diziam desfazer a barba). Além dos dois filhos que têm, um dos quais chamado Enzo, o Zézé e a Joyce, que abriu um salão na rua, mais abaixo do marido, trouxeram para casa há uns meses uma pretinha de São Tomé, cuja mãe teve nove de enfiada, todos dados para adopção. No mais, a carteira continua maluca e põe gorro vermelho por alturas do Natal, saiu a padeira bêbada para dar lugar a outra que fuma à porta, o João está a dormir no coreto e já não arruma no mosteiro, ficou só o Djaló. Por vezes, quadros de miséria: os drogaditos tão escanifraditos, coitaditos, os bêbados inchados roxos, uma mãe a gritar com o companheiro ao telemóvel, com a filha de ambos a chorar ao lado. Vai de vento em popa uma loja de artesanato chamada “By Nunes” e ao virar da esquina, já em Santa Marinha, o sr. Mohammed Taj Uddin, vindo do Bangladesh com a numerosa família, abriu uma loja de artigos variados (para que não houvesse erros na grafia do nome completo, pedi ao sr. Mohammed Taj Uddin que mo apontasse num papelito, que aqui transcrevo). Ao fundo da rua, grande sucesso de público tem tido, merecidamente, o restaurante sofisticado do casal Mário e Werner, um português de gema, o outro suíço de nascimento. Deste lugar onde escrevo, mesmo por baixo de mim, também permanece exitosa a loja de azulejos da Cristina, onde o Miguel-filho agora dá cursos e workshops a miúdas estrangeiras bem giras. A oficina-loja é na antiga farmácia do sr. Pereira, que agora vende relógios na Feira, e o ateliê onde o Miguel-filho dá aulas fica onde antes era uma padaria, cuja funcionária saudosa, uma bruxa já velhota e desdentada, gritava muitos filhos da puta! (com a variante filhos da puta dum cabrão!) sempre que na rua passavam carros com estrépito ou buzinadela. Neste lugar onde escrevo, muito turista, muito dragão tatuado, muita minissaia ululante, mas nota-se menos, não sei porquê, o corrupio matinal das mulheres das limpezas dos alojamentos locais, que outrora andavam sempre ajoujadas com muitos sacos azuis do IKEA, daqueles dos bons. Mas no ano em que isto escrevo, e já vamos em Novembro, o acontecimento mais marcante e impactante foi, sem sombra de qualquer dúvida, o encerramento há muito ameaçado d’O Cantinho, café-bar com esplanada, que também fazia as vezes de centro de dia e antro de batota, que a dona Fernanda e o sr. Zé aqui tinham tomado de trespasse no dia 2 de Agosto de 1986, 38 anos certinhos. Tinham vindo ambos do Norte, ele de Monção, ela de Góis, conheceram-se no Pereira de Alfama, o do cozido afamado, a Fernanda na cozinha, primeiro só a ajudar, ele a servir às mesas. Começou em 9 de Junho de 1975, ainda sabe a data certa de cor, e aí conheceu gente muito relevante dos tempos da revolução, o Rosa Coutinho e o outro, o Almeida Santos, e o outro que agora não me lembra o nome. Aqui cresceu-lhes um filho, o filho, o Filipe, que foi carteiro primeiro e depois mudou para a Uber, e que aqui casou, divorciou, foi pai de um menino e de uma menina, Leonor como a minha mais velha, e cujo sonho maior é ter um dia um iPhone (“daqueles da maçãzinha”, complementou o avô). Em contrapartida, poucos notaram a partida da dona Teresa, que desde que enviuvou ficou uma sombra, e já estava num lar, julgo que da Santa Casa. A vizinha ao lado dela, de quem nunca soube o nome e nem sei se tem filhos e netos (se tem, nunca os vi), continua a acenar-me sempre que lhe passo à janela, umas vezes com o cão, outras não. Um país em miniatura, Portugal dos Pequenitos visto da minha janela. Fiz obras em casa, tenho duas no Erasmus, e, pese o que para aí dizem sobre as alterações no clima, a luz de Lisboa continua um espanto. Assim morramos com ela.  


Escrito no dia da morte do meu amigo Pedro Machete (1965-2024).   

                                                                                     

                                                                               António Araújo





sexta-feira, 7 de março de 2025

São Cristóvão pela Europa (301).

 

 

 

Épernay, no departamento de Marne e na região de Grande Leste, é uma das capitais do champagne francês.

Aí se situa a Igreja de Nossa Senhora da Assunção. Foi inaugurada em 1915, num estilo neogótico, depois da demolição da anterior igreja praticamente arruinada. Mas logo em1918 foi vítima de bombardeamentos tendo de ser restaurada na década de 20.

No interior uma bela estátua de São Cristóvão.



A poucos quilómetros, situa-se uma das aldeias características da zona do champagne.

Chama-se Hautvillers e é a aldeia do célebre Don Perignon (1638-1715) que muitos consideram o inventor da bebida.

 




E aqui termino mais esta deambulação por São Cristóvãos de França.


                            Fotografias de 5 de Outubro de 2024

                                                                 José Liberato





Usbequistão, encruzilhada de civilizações (18).

 

 

 

Um dos monumentos importantes do centro histórico da cidade de Boukhara, Património Mundial da UNESCO, é o Chor Minor, quatro minaretes em persa, construído em 1807 por um comerciante turcomeno. Uma das torres caiu há 30 anos, mas foi rapidamente reconstruída.

 


A cidade tem vários ateliers de miniaturistas e calígrafos. Um dos mais interessantes é o de Toshev Davlat situado nos arredores num ambiente verdejante

São belíssimas as pinturas sobre papel artesanal:

 





Finalmente, o Conjunto arquitectural de Bahouddin Nakshband, importante local de peregrinação.

Bahouddin Nakshband (1318-1389) foi o fundador e o leader de uma das principais correntes sunitas sufis. Nasceu em Boukhara e o seu mausoléu ocupa um lugar proeminente no Complexo.

 

                        

    


    
                              Fotografias de 1 de Outubro de 2024


                                                                        José Liberato

quarta-feira, 5 de março de 2025

Que palavras guardaremos quando formos todos mortos?

 

 

 



Para quem sorria à pergunta, lembremos Ahmad Muaddamani, morto. Ou Omar Abu Anas, morto também. E as mais de 700 vítimas, das quais 63 crianças, do massacre de Daraya, perpetrado no Verão de 2012 pelo regime de Damasco, com o apoio do Hezbollah e do Irão. A 25 de Agosto desse ano, enquanto gozávamos férias, o centro de Daraya ficou pejado de cadáveres, muitos dos quais executados sumariamente e a sangue-frio, a tiro ou à baioneta. Dos cerca de 200 corpos descobertos nesse dia, 80 eram civis, massacrados no interior das próprias casas ou perto da mesquita Abu Suleiman Derane, já que então se celebrava o Eid al-Fitr, a data que no calendário islâmico assinala o fim do Ramadão.

No dia 27, o exército regressou para novas atrocidades. Cometidas provavelmente, à mesma hora em que, a partir de Nova Iorque, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, se mostrava consternado por aquele “crime terrível e brutal”, ou que a Alta-Comissária para os Direitos Humanos falava em possíveis “crimes de guerra e contra a humanidade”, exortando a uma “investigação imediata e completa”, que nunca seria feita: no Conselho de Segurança, a Rússia vetou a instauração de um processo no TPI contra Bashar al-Assad, este fugiu do país, vive hoje com a família num apartamento de luxo em Moscovo, e o principal responsável pela matança, Qathan Khalil, cognominado “Carniceiro de Daraya”, encontra-se em lugar incerto. Estima-se que, entre 2011 e 2024, a guerra civil na Síria tenha provocado mais de 600 mil mortos, sendo as forças governamentais responsáveis por 90% das baixas civis.  



 

          Uma fotografia, uma biblioteca

 

Em Outubro de 2015, a jornalista francesa Delphine Minoui, então a residir em Istambul, descobriu no Facebook uma estranha fotografia. A imagem encontrava-se na página de um colectivo de fotojornalistas, os “Humans for Syria”, e mostrava dois homens junto das estantes de uma biblioteca. À primeira vista, nada de mais, não fora o facto de essa biblioteca ficar situada em Daraya, um subúrbio de Damasco cercado pelas tropas governamentais desde 2012. Dos 250 mil habitantes da cidade, ainda nas mãos dos rebeldes, restavam uns 12 mil, não mais.

Através do Skype e do Whatsapp, Delphine conseguiu chegar à fala com o autor da fotografia, Ahmad Muaddami, um antigo estudante de engenharia de 23 anos, que, contra a vontade da família, decidiu permanecer na cidade e juntar-se aos rebeldes. Em finais de 2013, Ahmad e alguns companheiros – cerca de quarenta, todos na casa dos 20 anos –, começaram a resgatar livros dos escombros da cidade, apanhando-os na rua ou no entulho dos prédios bombardeados. Ao fim de uma semana, tinham conseguido salvar seis mil livros. Ao fim de um mês, quinze mil.

Formaram uma biblioteca num lugar secreto, com um gerador eléctrico improvisado e belas estantes feitas por voluntários, que repararam também os livros desfeitos, catalogando-nos pacientemente por ordem alfabética de autor, um a um. Em todos os livros, colocaram a lápis o nome dos proprietários, caso o soubessem, para que aqueles os recuperassem um dia, quando a tormenta passasse. Um comovente sinal de esperança.

Debaixo de bombas e de fogo constante, de ataques com gás sarin e napalm, a biblioteca de Daraya sobreviveu vários anos, abrindo todos os dias, excepto às sextas, das nove da manhã às cinco da tarde. Com cerca de vinte leitores presenciais por dia e empréstimos domiciliários, a biblioteca espalhou milhares, milhões de palavras entre os sitiados da cidade, servindo também de centro de debates e de universidade clandestina. Com uma fotocopiadora resgatada do entulho, os rebeldes produziram também um jornal de tiragem reduzida, 500 exemplares, com ensinamentos sobre como recolher a água da chuva ou cultivar verduras nos logradouros dos prédios. O Karkabeth, assim se chamava o periódico, tinha até crítica de cinema, palavras cruzadas e um horóscopo humorístico, com tiradas mordazes sobre a catástrofe em curso (“impossível trabalhar, as estradas estão todas cortadas”, dizia uma).

A biblioteca de Daraya foi, em suma, e nas certeiras palavras de Delphine Minoui, uma “arma de instrução maciça”. Entre as suas obras mais requisitadas, O Alquimista de Paulo Coelho, mas também Saint-Exupéry, O Príncipe de Maquiavel, Os Miseráveis de Vítor Hugo. Também muito populares os livros de autoajuda, com conselhos práticos de bem-estar e de ânimo, talvez porque, no meio daquele caos e da fome, eles transmitissem uma reconfortante sensação de normalidade e de que a vida continuava.






Alguns dos voluntários, como Ahmad Muaddamani ou Omar Abu Anas, acabaram sendo mortos pelas tropas de al-Assad, mas a biblioteca permaneceu aberta, pese ter sido alvo, em finais de 2015, de uma bomba que destruiu dois dos seus pisos.

Em Dezembro de 2014, um dos rebeldes, Shadi, conseguiu que lhe trouxessem uma Canon 70D. Foi levada por uma mulher, de que ele nunca soube o nome, que escondeu a máquina nas vestes e percorreu de noite o caminho até Daraya, uma das estradas mais perigosas e mais mortíferas da Síria. Graças a este gesto de tremenda coragem, Shadi pôde fotografar e filmar as bombas ainda no ar, prestes a explodir, ou os seus devastadores efeitos no solo, imagens depois transmitidas para o exterior através da Internet ou das redes sociais.

Em 2016, depois de 1.352 dias debaixo de bombas, sem água potável nem electricidade, e após umas breves tréguas, as tropas de al-Assad entraram finalmente na cidade. A biblioteca de Daraya teria o mesmo destino de outras livrarias-mártires: a de Sarajevo, em 1992, com perda de um milhão e meio de livros; a de Tombuctu, em 2013, 20 mil manuscritos destruídos pelas milícias islâmicas; a de Mosul, arrasada pelo Daesh em 2015; as mais de 700 bibliotecas da Ucrânia devastadas pelos russos e, há pouco, todas as treze bibliotecas de Gaza, destruídas ou seriamente danificadas.




Na sequência de um acordo precário, os rebeldes foram evacuados em três dezenas de autocarros rumo a Idlib, no noroeste do país. Ahmad e os seus companheiros levaram consigo o tesouro mais precioso que tinham – livros – e, mantendo o vício das palavras, ali montaram uma biblioteca itinerante, muito popular e sempre muito concorrida. A seguir, partiram para lugares longínquos. Residem hoje na Turquia e em França, por aí. Centenas de outros, mais de 700, entre os quais 63 crianças, tiveram menos sorte. Com que palavras morreram? 



 

          O mundo de ontem

 

Em 2017, um ano depois do fim do cerco, Delphine Minoui publicou em livro a história extraordinária da biblioteca de Daraya. Desde que o comprei há pouco, na livraria Palavra de Viajante (obrigado, Ana Coelho), tenho-me perguntado se um dia também ele não será resgatado por um grupo de jovens rebeldes das ruínas e dos escombros de uma guerra a cada hora mais iminente. Que palavras guardaremos quando formos todos mortos?

Muitas, decerto, pois o Zeitgeist é verboso, palavroso e, sobretudo nos últimos tempos, a incompreensão e o medo impelem-nos a falar em excesso, talvez como resposta à torrente de impropérios e desvergonhas que, num caudal demencial, aflui diariamente do outro lado do Atlântico, numa estratégia de “choque e pavor” a que inelutavelmente cedemos, pois, com as debilidades que acumulámos ao longo de décadas (v.g., na defesa, na economia, na tecnologia), outro remédio não temos. É espantoso observar como, em poucos dias ou semanas, as antigas batalhas das palavras, “woke” de um lado, “fascista” do outro, pertencem agora a um mundo de ontem, aquele em que éramos felizes e não sabíamos.

Enquanto a Oriente impera o mais loquaz dos silêncios, com a potência ascendente à espreita, sempre sábia, na Europa e no que resta da América os intelectuais e os opinion-makers concorrem entre si para encontrar o melhor qualificativo para o inqualificável, recorrendo a expressões como “autoritarismo democrático”, “autoritarismo competitivo”, “tecno-oligarquia” ou até “neofascismo”. Mesmo conceitos como “populismo” ou “polarização”, outrora tão em voga, parecem ter caído em desuso, ultrapassados que foram na voragem das palavras, a cada dia mais contundentes – e alarmantes.

Os mais eufemísticos falam de “um presidente transacional”, apresentando Trump como um fala-barato disposto a tudo negociar, até a mãe ou a Ucrânia, com isso ocultando o que de mais sinistro nele existe, um ditador em potência e já em acto. Outros, porventura mais ingénuos ou insensatos, referem-se um momento “disruptivo”, como se tudo não passasse afinal de um sonho mau, mas passageiro, do qual em breve todos acordaremos.

A desfaçatez vai ao ponto de nos quererem convencer de que estamos perante uma orteguiana “rebelião das massas”, um natural e saudável movimento contra as “elites” e as “oligarquias”, só por acaso protagonizado por um milionário corrupto várias vezes falido, com a cumplicidade submissa e interesseira dos homens mais ricos do planeta, aqueles de quem mais se esperaria coragem e independência, que nos venderam ser as grandes virtudes dos “empreendedores”.

Em todo este desconcerto, há, contudo, uma lógica e um propósito precisos, evidentes: quanto mais acreditarmos no inverosímil, mais este se torna real e assim tudo será permitido, até sair imune de um homicídio na 5.ª Avenida em pleno dia, de um assalto ao Capitólio ou de 34 condenações judiciais por fraude, uma das quais envolvendo o silêncio pago de uma actriz hard-core.

De facto, não precisa ser verdade, basta só que acreditemos. Que acreditemos no vice-presidente dos EUA quando este, num cúmulo de cinismo e hipocrisia, se arvora em paladino da “liberdade de expressão” na Europa, enquanto na Casa Branca impedem o acesso dos jornalistas que não adiram ao novel “golfo da América”. Ou que acreditemos em Musk, que em 2016 prometeu voos tripulados para Marte em 2022, três anos antes da data prevista, depois adiada para 2024, para 2025 e agora para… 2028. Não precisa ser verdade, basta só que acreditemos.

Por tudo isto, e o muito mais que ainda veremos, é hoje muito grande, e muito avassaladora, a sensação de cerco e sequestro, experienciada por cada qual no seu íntimo, na solidão do seu eu, no interior da família, no apertado círculo dos mais próximos. É como se estivéssemos todos na biblioteca clandestina de uma cidade sitiada pelos bárbaros, sem outro amparo que não o das palavras e das imagens, dos livros, dos jornais. Assim morramos com eles.

 

            António Araújo   




Usbequistão, encruzilhada de civilizações (17).

 

 

 

O complexo Poi Kalon, ou o Pedestal do Muito Alto, é o centro religioso de Boukhara e a parte melhor preservada da antiga cidade. Aí se encontram muitas construções medievais e um bazar vendendo de tudo, como é o caso dos objectos de cutelaria.

 





Mas o monumento mais imponente do complexo é, sem dúvida, o Minarete Kalon, com 47 metros de altura. O que vemos foi terminado em 1127, resistindo posteriormente a um tiro de obus do Exército Vermelho em 1920 e ao terramoto de 1976. Diz-se que Gengis Khan, nómada das estepes e pouco habituado a tal verticalidade, se prostrou perante ele e o poupou durante o saque de Boukhara. E encontrou-lhe uma utilidade: metia os inimigos dentro de sacos e precipitava-os do alto…



Do complexo fazem também parte a Madraça Mir i Arab, e o seu pátio interior com 111 celas monásticas, e a Mesquita Kalon:




 


 

                                        Fotografias de 30 de Setembro de 2024

                                                                                 José Liberato