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Super-Kamiokande, está encravado no fundo de uma mina de zinco em Kamioka, |
Qual o destino do universo? Essa talvez seja a mais
inquietante das perguntas que intrigam os cosmologistas. Ele continuará a se
expandir infinitamente, para em algum momento se estabilizar, ou seu destino
será contrair-se e terminar como uma gigantesca bola de fogo? A resposta
depende da quantidade de matéria - e, portanto, da força de atração
gravitacional - existente no universo. Se não houver matéria suficiente, ele
seguirá em uma expansão sem fim. Se, ao contrário, houver matéria demais, ele
se contrairá e acabará entrando em colapso.
Quanto é "matéria demais"? A resposta não está, ainda, ao alcance dos
estudiosos. A quantidade de matéria visível não basta para explicar certos
fenômenos, como a velocidade de rotação de algumas galáxias; além disso, muitos
cálculos indicam que até 90% da massa existente no universo pode estar
"escondida" - ela existe mas não é percebida porque não emite luz.
Para detectar e medir essa massa oculta, os cientistas criaram as mais
estranhas hipóteses, imaginando novas partículas - mas nenhuma delas chegou a
ser detectada.
É aí que o neutrino entra em cena. A partícula foi imaginada e proposta em 1930
por Wolfgang Pauli, para explicar uma certa forma de decaimento radioativo. O
cientista italiano Enrico Fermi chamou-a, então, de "pequeno nêutron"
(neutrino), mas foi só 26 anos depois, em 1956, que Frederick Reines e Clyde
Cowan Jr. a detectaram. Para enquadrar-se nas leis da mecânica quântica, o
neutrino deveria ser eletricamente neutro e totalmente sem massa - uma espécie
de partícula-fantasma. No entanto, teorias recentes sugeriram que os neutrinos
poderiam ter alguma massa - quem sabe, a matéria não visível. Para testar a
idéia foram construídos detectores - enormes tanques de aço instalados em
profundas minas no Canadá, Itália, Japão, Rússia e EUA, e até um no pólo Sul,
sob centenas de metros de gelo.
Alguns experimentos já haviam indicado que os neutrinos têm mesmo massa, mas
eram observações ainda pouco confiáveis. Até junho passado. Nesse mês, numa
pequena cidade do interior do Japão, um gigantesco detector de neutrinos
produziu uma prova bem mais concreta de que essa massa realmente existe.
O aparelho, chamado de Super-Kamiokande, está encravado no fundo de uma mina de
zinco em Kamioka, a 200 km de Tóquio. É um colossal tanque de aço inoxidável,
com 40 metros de altura e 36 de diâmetro, contendo 47,2 milhões de litros de
água ultrapurificada e rodeada por 11.146 amplificadores de luz. Controlado por
um time de 120 físicos de 23 instituições japonesas e americanas, esse é o
maior detector de neutrinos já construído, e o que oferece maiores chances de
capturá-los.
Para entender como se chegou à descoberta, é preciso saber um pouco sobre os
neutrinos. Eletricamente neutros e virtualmente sem massa, eles raramente
interagem com a matéria. Podem vir do sol, de interações entre raios cósmicos,
das supernovas (explosões estelares) ou de outras violentas ocorrên-cias
astrofísicas, e atravessam a Terra em alta velocidade. Na prática, pode-se
dizer que são invisíveis. A cada segundo, trilhões deles passam por nossos
corpos sem causar qualquer efeito. Mas, nas raras ocasiões em que um neutrino
colide com o próton ou nêutron de uma molécula de água, dentro do
Super-Kamiokande, uma pequena faísca azul é captada pelos amplificadores de
luz. Se os pesquisadores contarem menos faíscas que o esperado, é porque há
neutrinos mudando de forma antes de passarem pelo detector. E esse fenômeno só
pode acontecer se eles tiverem massa.
Enfim, a prova
No dia 5 de junho último, os cientistas do projeto divulgaram essa constatação ainda indireta, mas impressionante: os
neutrinos realmente têm massa. É muito pequena, talvez da ordem de um
décimo-milionésimo da massa de um elétron, ele próprio uma ínfima parte do
átomo. "Os físicos perseguiram ansiosamente essa descoberta por
décadas", garante John H. Bahcall, um dos "caçadores de
neutrinos" do Instituto Princeton para Estudos Avançados, nos Estados
Unidos.
Os físicos acreditam que os neutrinos existam em três formas diferentes:
neutrino-elétron - associado com o elétron -, neutrino-múon e o neutrino-tau,
ligados com esses dois "elétrons pesados", o múon e o tau.
Recorrendo-se mais uma vez às leis da mecânica quântica: se os neutrinos
tiverem massa, devem poder oscilar, ou seja, mudar de um tipo para o outro como
num passe de mágica. Foi exatamente essa oscilação dos neutrinos-múon que o
experimento japonês do Super-Kamiokande registrou.
O detector funciona da seguinte maneira: uma colisão de um neutrino-elétron
dentro do experimento libera um elétron; uma colisão de um neutrino-múon produz
um múon. Essas duas partículas se movem na água a uma veloci
dade maior do que a da luz na água. Com isso, cada múon e cada elétron geram um
cone de luz - conhecido como radiação de Cerenkov - interceptado pelos
amplificadores de luz. Analisando a geometria espacial e a energia das faíscas
de luz, os físicos conseguem diferenciar as colisões de neutrinos-elétron das
de neutrinos-múon.
Quando as colisões foram contabilizadas no Super-Kamiokande, constatou-se uma
escassez de neutrinos-múon. A conclusão inescapável: um grande número deles se
havia transformado em neutrinos-tau, os que não são detectados pelo aparelho.
Portanto, existem neutrinos, e existe massa no universo, não detectados.
"Temos fortes evidências da oscilação dos neutrinos-múon", assegura
Takaaki Kajita, físico do Instituto para a Pesquisa de Raios Cósmicos, na
Universidade de Tóquio.
Novo desafio
A descoberta, além de ajudar a elucidar o mistério da matéria oculta, obrigará
os estudiosos a repensar dois grandes pilares da física moderna: o "modelo
padrão" e o modelo de como o Sol brilha.
O primeiro deles é hoje a teoria mais aceita no campo da física de partículas.
Ele descreve o funcionamento de uma série de partículas subatômicas, incluindo os
"blocos de construção" fundamentais da matéria - elétrons, neutrinos
e quarks (que constituem, por exemplo, os prótons e os nêutrons). Esse modelo
teve grande sucesso na previsão de resultados experimentais, mas a teoria
quântica diz que, se os neutrinos tiverem massa, ainda que infinitesimal, ele
não pode estar correto. Alguns estudiosos acreditam que esse aparente obstáculo
pode apressar o desenvolvimento do maior sonho da física - a elaboração de uma
grande teoria unificadora, que abarcaria todas as partículas e forças da
natureza, incluindo a gravidade.
O segundo pilar, o modelo de como o Sol brilha, também pode ser afetado. Uma
dificuldade sempre presente nas teorias solares é o chamado déficit solar de
neutrinos. Baseados no modelo do Sol, foram feitos cálculos de quantos
neutrinos solares deveriam estar chegando à Terra. De acordo com experimentos
realizados até agora, o número detectado corresponde a apenas um terço ou
metade do previsto.
A busca pode avançar quando estiver pronto um novo detector de neutrinos, que
está sendo construído em Sudburry, no Canadá. Projetado para detectar neutrinos
do Sol e de supernovas, ele será preenchido com 1.000 toneladas de óxido de
deutério, também conhecido como água pesada. Os átomos de deutério podem interagir
com os três tipos de neutrinos - o elétron, o múon e o tau. Físicos e teóricos
esperam que os resultados do observatório canadense de Sudburry possam ampliar
a nossa compreensão do universo, e assim fazer coro com uma imagem poética do
gênio inglês John Milton: "Nenhuma luz, mas escuridão visível".
Artigo escrito pelo fisico alemão Arthur Fisher para a revista Galileu.