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quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

OUTRAS LEITURAS: ROBERTO DA MATTA

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Adão e Eva: expulsos do Éden

SE EU SOUBESSE...

Afinal de contas, o que nos havia tornado humanos?
Teria sido a alma dada por Deus, essa inventora
da consciência e da linguagem articulada, ou o tabu do incesto?

Por Roberto DaMatta
O Globo – 17/01/2018

Bebíamos o terceiro ou quarto uísque quando surgiu no infinito horizonte dos nossos copos vazios uma questão burguesa: afinal de contas, o que nos havia tornado humanos? Teria sido a alma dada por Deus, essa inventora da consciência e da linguagem articulada — ou o tabu do incesto? Teria sido a proibição de comermos a nós mesmos, como tendem a fazer a democracia igualitária e o globalismo desenfreado?

Todos falaram, mas eu fiquei com aquele que soltou o seguinte: “Somos humanos porque temos o condicionante virtual, o ‘se’ da frustração e do arrependimento. Ah! Se eu soubesse, ou pudesse...”

Eis algumas coisas que ouvi.

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Roberto DaMatta é antropólogo


Se eu soubesse o que hoje sei, eu não sei se estaria escrevendo estas linhas... Se eu soubesse que o “se eu soubesse” é algo recorrente — pois sempre pensamos saber mais do que sabemos —, eu não teria ficado tão magoado com meu pai... Se eu soubesse que a democracia americana ia dar em Trump, disse um tal de Alexis Charles-Henri-Maurice Clérel de Tocqueville, eu teria refeito o meu livro “Democracia na América”... Se eu soubesse que insistir em pegar na mão dela ia me custar o emprego, eu teria ficado fiel ao meu inútil voto de castidade... Se eu soubesse que tudo o que eu fiz e ainda vou fazer vai ser fatalmente esquecido, eu teria pensado mais em escrever menos... Se eu soubesse o resultado da Mega-Sena, eu (diz um lado meu) estaria longe daqui... 

Se eu soubesse que o tempo realmente passa, eu teria terminado o livro que jamais vou escrever... Se eu soubesse que roubar era sinônimo de “cuidar do povo”, eu teria me suicidado politicamente... Se eu soubesse que a descoberta do planeta como um todo — o planeta visto de fora para dentro — ia me dar a certeza de que estamos matando o mundo, eu não seria otimista... Se eu soubesse que ser professor seria viver numa luta decepcionante contra a indiferença do saber em toda a parte, mas sobretudo no Brasil, eu teria — mesmo assim — sido professor... Se eu soubesse que o meu medo do escuro ia estar sempre ao meu lado, eu teria acendido a luz... 

Se eu soubesse que ia construir uma tribo, eu jamais saberia como a leveza do papel de avô compensa amplamente o papel pesado de pai... Se eu soubesse que iria ser vítima das intrigas humanas que, por sua vez, são o resultado não previsto das intrigas que os intrigantes realizam nas suas próprias cabeças, eu teria vivido com serenidade as calúnias assacadas contra mim... Se eu soubesse que, mesmo sendo o filho mais velho, eu poderia ter mais latitude para errar, burlar, brincar e pecar, eu talvez tivesse sido um artista — medíocre, sem dúvida — um ser mais alinhado com os encontros decisivos entre a força da vida e o silêncio dos túmulos... Se eu soubesse Latim, Francês e Matemática como meus professores gostariam que eu aprendesse, eu seria engenheiro ou militar... 

Se eu soubesse que a ambição humana é tão ou mais poderosa que os protocolos, eu estaria menos preocupado com um mundo que exige muito menos de mim do que eu dele... Se eu soubesse de memória tudo o que ouvi dos meus professores, eu estaria num hospício... Se eu soubesse que não saber é uma condição da vida, eu não teria consultado aquela cartomante famosa que tinha como clientes diplomatas, altos funcionários, frades e materialistas... Se eu soubesse que despertava tanta inveja, meu sentimento de culpa caberia num dedal... Se eu soubesse que o mapa social do Brasil estava traçado antes do meu nascimento, eu não teria me esforçado tanto — teria me esforçado muito mais... 

Se soubesse tudo, eu não teria que aprender nada... E se eu não soubesse nada, como foi o caso, eu não ficaria tão decepcionado em saber tão pouco... Se eu soubesse puxar o saco dos poderosos, eu teria ido muito mais longe... Se eu soubesse que ele ia morrer subitamente, eu lhe diria o quanto eu o amava todo os dias... Se meus pais estivessem vivos, eu iria perguntar tudo sobre a vida deles... Se eu soubesse que o passado jamais volta, exceto pelos bons momentos do presente, eu não estaria firme neste pedaço de jornal...

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

POLÍTICA/OPINIÃO: ROBERTO DAMATTA

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Há quem sinta saudade do império ou de regimes
totalitários e busque um salvador da pátria

A DEMOCRACIA COMO PROBLEMA

Sofremos a nostalgia do império e dos regimes ditatoriais
que o imitaram. Neles, não havia bate-boca, imprensa
livre, denúncias negociadas, juízes independentes

Por Roberto DaMatta
O Globo – 11/01/2018

Todo regime democrático tem problemas, e prova mais clara deste ponto é a crise presidencial da primeira democracia de massa do planeta, a americana. Qualquer investigação vai demonstrar que o regime democrático moderno não pode ser reduzido às suas dimensões econômicas, mas deve ser lido, como ensinou Marcel Mauss, como um “fato social total” — a democracia é um estilo de vida que afeta todos os espaços de nossas vidas. Ele produz tanto um Roosevelt e um Obama quanto a KKK e um Trump.

Motivada, como compreenderam Marx e Polanyi, pelo desejo desabrido (e legitimado como virtude e talento) de ganhos e empoderamentos infinitos, ofertados num mercado ou palco, a dinâmica democrática seria sempre sujeita a crises ou vista como burla.

Para tanto, basta lembrar que a democracia liberal é o único regime aberto à proposta de sua destituição, conforme vimos na Europa dos socialismos de esquerda e de direita. Tais desvios são o resultado de um paradoxo: a democracia liberal é o único regime explicitamente aberto à autocorreção.

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Roberto DaMatta é antropólogo
Foto: YouTube

No caso do Brasil, o experimento democrático tem promovido um permanente clamor contra a desordem, a roubalheira e o aumento da desigualdade — questões a serem sanadas pelo retorno da boçalidade dos salvadores da pátria. Ou seja: reestabelecendo privilégios, impedindo acabar com a consciência de inferioridade, com a aristocratização por meio do Estado, com um sistema educacional destinado a garantir a desigualdade; e, como faz a elite, malandramente mantendo um sistema político alinhavado por semi-ideologias e abençoado por amizades instrumentais. Tudo isso produziu uma estratificação social impecável, na qual todos têm um lugar e todos sabem do seu lugar. Para o nosso lado mais atrasado, o ideal seria não ter mais que lembrar aos inferiores (que pensam serem nossos iguais) com quem eles estão falando!

Como dar liberdade aos seus inimigos, dizem os reacionários de direita; e como, dizem os de esquerda, ter essa liberdade que rompe tabus e leva a desigualdades?

Sofremos a nostalgia do império e dos regimes ditatoriais que o imitaram. Neles, não havia bate-boca, imprensa livre, denúncias negociadas, juízes e procuradores independentes, e a crise, cujo incômodo maior é a constatação da corrupção estrutural e contraditória dos eleitos.

Nos impérios, governa-se por “direito divino”. Deus abençoava o governante de sangue azul, cujo poder transcendia às forças deste mundo. Pensar que grandes impérios tenham tido como base dimensões fora deste mundo permite uma visão mais clara da revolução republicana, a qual abriu o sistema de poder a todos os seus membros que não são mais acólitos ou súditos de ninguém, exceto de si mesmos. Nela, a família imperial não é mais a dona do Brasil ou a personificação da civilização europeia depauperada nos tristes trópicos. Agora — eis o desafio insuportável — somos administradores de nós mesmos. A chamada “coisa pública” pertence a todos e não pode ser apropriada nem abandonada por ninguém. O traço distintivo das democracias não é uma casta, classe, partido, família ou casa, mas consciências individualizadas e livres.

“As democracias são odiadas por partidos totalitários
e por boçais que não suportam dúvidas”

A passagem de um todo abençoado por Deus à sua parte mais insignificante e mortal — o ser humano individualizado, republicanamente visto como um cidadão detentor de direitos inerentes à sua condição — é um feito de extraordinária coragem e um projeto capaz de desafiar não somente reis e ditadores, mas os deuses!

Não é por acaso que as democracias sejam muito mais predispostas a terem problemas do que a preveni-los. Não é também por acaso que elas são odiadas por partidos totalitários e por boçais que não suportam dúvidas.

A globalização inventou sua ideologia. Ela põe em foco o planeta como um sujeito do individualismo. Se não há mais limites transcendentais, há o limite planetário, que é a nossa totalidade — o nosso palco.

O Brasil vive num oceano de crise, mas o que fazer com o nacionalismo isolacionista de Donald Trump, cuja fúria pode destruir o planeta e cuja proposta de censurar um livro que o critica como presidente perturba a mais estável experiência democrática do mundo?

O retorno do proibir como um direito dos que um dia foram proibidos é bem conhecido entre nós. Bem como a convivência com uma pervertida e insuportável contradição entre atores e papéis. Não nos surpreenderia descobrir um santo que jamais acreditou em si mesmo porque sabe de sua salafragem.

O globalismo é tão bipolar quanto as múltiplas éticas brasileiras. A América vai ficando mais parecida conosco e — queiram as fadas — nós com ela, mas não em tudo...

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

POLÍTICA/OPINIÃO: ROBERTO DAMATTA

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IMAGEM: REPRODUÇÃO

DIREITA E ESQUERDA

Se a prova do pudim está em comê-lo, a esquerda não mudou
a receita e governou seguindo as mesmas práticas sociais
que dominam o campo da política

Por Roberto DaMatta
O Globo – 22/11/2017


A crise é deflagrada por um impeachment e pela descoberta da corrupção num governo de esquerda. O fato marcante é o assalto aos bens públicos fora dos polos canônicos — esquerda e direita. Não há como ignorar como a desonestidade desmanchou a solidez das polaridades políticas.

Enquanto a esquerda foi um lugar na topografia política inaugurada com a Revolução Francesa, como mostrou J. A. Laponce num livro notável, não havia novidade. Mas quando ela chega ao poder, cabe discutir como e onde sua moralidade fica semelhante à de uma cavernária direita.

Um governo de esquerda decepciona justamente por sua semelhança com a direita no que tange à ineficiência pública e à corrupção. Se a prova do pudim está em comê-lo, a esquerda não mudou a receita e governou seguindo as mesmas práticas sociais que dominam o campo da política — um campo dinamizado mais pelos relacionamentos e favores pessoais do que por princípios ideológicos.

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Antigamente, a “direita” significava manter o status quo que a “esquerda” queria mudar. Minha geração tinha como ideal reduzir a distância entre os poucos com muito e a multidão empobrecida. Até meu reacionário e alienado pai entendia isso, embora ponderasse que relativizar a propriedade seria promover o terremoto que derrubaria tanto o sistema quanto a nossa casa.

Era correto, entretanto, entender a história nesta chave, desde que a esquerda não desempenhasse o papel da direita. A troca de lugar — esse movimento democrático — foi um avanço, pois democratizou também a esquerda. Ela deixou a lista negra e passou a fazer suas listas negras. No governo, foi obrigada a abandonar o “quanto pior, melhor” e exibiu poderosos e fracos no seu próprio espaço. Perdeu a inocência.

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Até onde a dualidade entre esquerda e direita disfarça hierarquias? Num ensaio famoso e em outro contexto, Lévi-Strauss questiona se as organizações dualistas existem — ou seriam um modo de esconder hierarquias. Tal ocorreu quando a França revolucionária acabou com aristocracia, clero e povo e reduziu tudo a uma dualidade. Quem era contra o rei ficava à esquerda; os que o sustentavam, à direta.

É prático, como sugere Laponce, reduzir o complexo campo da política à polaridade das mãos. Afinal, vive-se sem uma das mãos — como revelam os despotismos de direita e de esquerda —, mas não se caminha sem os pés ou sem a cabeça. A polaridade entre esquerda e direita integra diferenças porque suprime relações e estabelece, como mostrou Hertz, o destaque da mão direita. Mas, como ensina Dumont, não podemos esquecer que as mãos, distintas num juramento, juntam-se numa prece. São interdependentes.

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Roberto DaMatta é antropólogo
FOTO: Arquivo Google

Minha geração viu realizado o sonho de ter a esquerda no poder e observou, desencantada, como as peculiaridades do Estado à brasileira — associado a práticas sociais como o familismo e o favor — a transformaram em direita. Nela, vimos também surgir uma selvagem corrupção. Um hóspede sempre convidado do poder nacional, mas lamentavelmente escancarado pela esquerda.

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Temo que, fora do poder, esquerda e direita se diferenciem, mas tal não ocorre quando elas se mudam para o palácio. Nele, o eleito tem que lidar com a matriz hierárquica nacional com seu atávico e engenhoso legalismo, o qual lhe assegura uma capacidade de mando maior do que esperava. Tal matriz tem feito milagres no Brasil. Se ela foi capaz de ordenar eleição com escravismo, por que não seria igualmente competente para conciliar austeridade socialista com riqueza capitalista? Além disso, o palácio tem suas portas abertas aos movimentos populares e aos projetos milionários. Governar, logo se descobre, é criar elos e fazer amizades cruzadas. Não é, pois, sem espanto que descobrimos como o político atua por meio de um espesso tecido de favores pessoais, amparado por um igualmente denso e arcaico legalismo de cunho teológico destinado a criar e manter privilégios.

Resumo da ópera: além da luta de classes, temos que nos haver com o combate entre o bom senso e um arraigado fetichismo legal. Com ele, mascaramos crimes e garantimos impunidade. Hoje, fica muito claro que eleições livres e competitivas não consagram apenas representantes do povo, mas também fazem com que os eleitos pelo povo entrem numa casta — fiquem além da lei. Quem deveria dar o exemplo de cidadania é tentado a virar mestre de mistificação e oportunismo. E aqui, caros leitores, as mãos lamentavelmente se unem e igualam embolsando dinheiros...

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

OUTRAS LEITURAS: ROBERTO DAMATTA




Opressão (Foto: Arquivo Google)
ARQUIVO GOOGLE




DOS NOSSOS MALES

POR ROBERTO DAMATTA
O GLOBO - EM 02/11/2016

No Brasil, o problema é como acabar de vez com o “Você sabe com quem está falando?”, esse brasileirismo inventado como último recurso hierárquico e escravista contra a igualdade republicana que obriga a entrar na fila, ser parado por um guardinha qualquer, ser compelido a responsabilidade quando se ocupa um cargo público e — eis o escândalo dos escândalos — ser enjaulado por um crime porque a lei vale mesmo para todos, e a igualdade perante e lei acaba com os privilégios.

Antes de sermos presidentes, ministros, juízes, senadores e donos de grandes empresas, somos todos cidadãos. Mas como lidar com a contradição que transforma um eleito pelo povo com o nosso dinheiro numa superpessoa acima da lei? Ontem ele pedia votos, hoje — eleito por meio de um fundo partidário! — ele acha legítimo assaltar os cofres públicos.

É desprezível essa batalha judicial (mistificada como política) para manter privilégios. Estou convencido de que o discurso quase sempre vazio que enquadra as pessoas no velho dualismo de direita e esquerda dissimula muito mal o cerne da questão: somos uma sociedade dividida entre aristocratas (ancorados no Estado) e babacas — as pessoas comuns. Os que conhecem os limites dos seus papéis sociais e, com o seu trabalho, sustentam um palacianismo kafkiano de direita e de esquerda, duro de eliminar.

Somos os últimos escravos...

Roberto DaMatta é antropólogo

domingo, 12 de junho de 2016

OUTRAS LEITURAS: ROBERTO DAMATTA

NEOBRASILEIRISMOS OU O SUCESSO DA VAQUINHA


www.palestrativa.com.br

Brasileirismos são invenções brasileiras. No campo da música, da comida e da sexualidade, elas abundam. São brasileirismos o jogo do bicho, o samba, a feijoada, confundir fama com inteligência, não prender autoridade e dizer que bunda não tem sexo.

A presença mascarada dos elos pessoais abraçados pela norma do dar-para-receber e do vice-versa como algo obrigatório no espaço público é um outro brasileirismo que contraria a lei válida para todos e nos faz desconfiar da liberdade.

Liberdade que leva a escolhas, individualiza e acontece justamente na rua. Toleramos a liberdade porque ela é um conceito chave nas constituições "avançadas" que copiamos dos americanos, franceses e ingleses. Daí a contradição tragicômica: temos leis avançadíssimas, sínteses das melhores normas jamais produzidas no chamado "mundo civilizado", mas lamentavelmente não temos franceses, americanos e ingleses para segui-las.

Voltemos, entrementes, aos temas clássicos. Se a liberdade tem sido usada pelas elites sobretudo para matar o competidor, a igualdade permanece sem solução. Continuamos alérgicos à sua aplicação e o seu uso é sempre constrangido pelos rotineiros "esse tem biografia", "esse é meu amigo", "esse é do nosso partido", que são parte de um outro brasileirismo. A duplicidade ética, expressa no axioma: aos inimigos a lei; aos amigos, tudo. Um postulado que impede, no modelo e na realidade, o tratamento igualitário e um mínimo de coerência.

* * *


jornalggn.com.br

A brasileiríssima máscara entra em cena em tempos democráticos. Impossível não tomá-la, como ocorre em outras sociedades, como um símbolo de forças antissociais: do incesto que nega a oposição entre afinidade e consanguinidade, ou de condutas abusivas e licenciosas cuja concretização exige a invisibilidade ou o disfarce como no Carnaval.

Estamos pensando em legislar o uso da máscara. Balas de borracha para policiais; máscaras para os manifestantes. Mas se até em centro espírita as almas dizem quem são, como admitir o poder dado a mascarados quando o ideal democrata é justamente conhecer o adversário? Em meio aos elos confusos entre as injustiças seculares e direito ao ativismo, o uso da máscara aumenta ou diminui a possibilidade do irracionalismo e da boçalidade contida na violência? Afinal, estamos querendo consolidar ou liquidar instituições?

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Vivemos um momento de exigências igualitárias que demandam o fim da separação entre a casa e a rua: lei e cadeia na rua para os pé rapados; e, na casa, embargos de todos os tipos para os amigos e parentes. Chamam isso de "corporativismo" mas o nome verdadeiro é personalismo, como disse faz tempo.

Brasileirismo agradável foi testemunhar a sinceridade que baixou na Câmara dos Deputados com o voto aberto. O voto sem máscaras porque ele liquida a duplicidade entre casa e rua. "Como companheiro e colega eu não posso te cassar. Amanhã pode ser minha vez e você, mesmo sem ser do meu partido, retribui. Mas no plenário eu sou obrigado a fazê-lo, compreende? Antigamente, quando o voto secreto era minha máscara eu votava contra a perda do teu mandato, pois tu és realmente um ladrão! Mas, agora, temos essa lei que me obriga que eu seja o mesmo tanto em casa quanto na rua. Então, vejam que coisa triste para a ética da casa e das amizades, eu sou obrigado a tirar a mascara e a ser sincero!"

A sinceridade é um neobrasileirismo. Ser o mesmo em todos os lugares é impossível. Mas ter o propósito de ser o mesmo é o que chamamos de honestidade. A próxima eleição vai dizer se a honestidade é uma tortura ou uma bênção.

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O ministro Gilmar Mendes aponta uma anomalia. As multas que os condenados devem pagar não podem ser transferidas, por meio de uma brasileiríssima vaquinha, para outras pessoas. A sugestão do ministro seria a de fazer uma vaquinha capaz de pagar o mensalão.

Tal parecer me lembra um evento bizarro mas idêntico, ocorrido nos primórdios da ditadura militar, em 1964, no governo Castelo Branco. Foi a campanha "Ouro para o bem do Brasil", destinada a reunir ouro para pagar a dívida externa brasileira. Tal vaquinha fez com que muitas pessoas doassem alianças e medalhinhas mas, diferentemente da vaquinha dos mensaleiros, jamais se soube onde o ouro foi parar. Mas o brasileirismo da vaquinha que retorna, como na ditadura, para livrar as multas do mensalão, é um sucesso.

E se um condenado a 20 anos, pergunta-me um amigo irritado, resolver fazer uma vaquinha e conseguir na internet gente que fique em seu nome na prisão por um dia? Façamos o calculo: 20 vezes 365 é igual a 7.300 dias. Ora, diz ele, considerando o que os mensaleiros condenados já arrecadaram até agora, seria tranquilo conseguir 7 mil e tantas pessoas solidárias para ficarem por um dia na cadeia no lugar do condenado. E eles, é claro, iriam continuar atuando como heróis nacionais injustiçados por uma mascarada de cunho político. Se tudo é injustiça burguesa, por que não aplicar a brasileiríssima vaquinha para outras penalidades?

Tento argumentar, mas o amigo toma uma cerveja.

* * *

O mesmo sujeito me diz o seguinte: "Olha aqui, DaMatta, estou pensando em fazer uma vaquinha para deixar de trabalhar como um condenado. Quero poder dizer não - esse imenso privilégio dos abençoados". Como bom brasileiro, não disse nada. Mas pensei: se der certo eu também faço!

(ARTIGO PUBLICADO EM O ESTADO DE S. PAULO, em 19/02/2014)