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quarta-feira, 16 de março de 2016

CHÁ DAS CINCO: RUBEM BRAGA

ALMOÇO MINEIRO



Éramos dezesseis, incluindo quatro automóveis, uma charrete, três diplomatas, dois jornalistas, um capitão-tenente da Marinha, um tenente-coronel da Força Pública, um empresário do cassino, um prefeito, uma senhora loura e três morenas, dois oficiais de gabinete, uma criança de colo e outra de fita cor-de-rosa que se fazia acompanhar de uma boneca.

Falamos de vários assuntos inconfessáveis. Depois de alguns minutos de debates ficou assentado que Poços de Caldas é uma linda cidade. Também se deliberou, depois de ouvidos vários oradores, que estava um dia muito bonito. A palestra foi decaindo então, para assuntos muitos escabrosos: discutiu-se até política. Depois que uma senhora paulista e outra carioca trocaram idéias a respeito do separatismo, um cavalheiro ergueu um brinde ao Brasil. Logo se levantaram outros, que, infelizmente, não nos foi possível anotar, em vista de estarmos situados na extremidade da mesa. Pelo entusiasmo reinante supomos que foram brindados o soldado desconhecido, as tardes de outono, as flores dos vergéis, os proletários armênios e as pessoas presentes. O certo é que um preto fazia funcionar a sua harmônica, ou talvez a sua concertina, com bastante sentimento. Seu Nhonhô cantou ao violão com a pureza e a operosidade inerentes a um velho funcionário municipal.

Mas nós todos sentíamos, no fundo do coração, que nada tinha importância, nem a Força Pública , nem o violão de seu Nhonhô, nem mesmo as águas sulfurosas. Acima de tudo pairava o divino lombo de porco com tutu de feijão. O lombo era macio e tão suave que todos imaginamos que o seu primitivo dono devia ser um porco extremamente gentil, expoente da mais fina flor da espiritualidade suína. O tutu era um tutu honesto, forte, poderoso, saudável.

É inútil dizer qualquer coisa a respeito dos torresmos. Eram torresmos trigueiros como a doce amada de Salomão, alguns louros, outros mulatos. Uns estavam molinhos, quase simples gordura. Outros eram duros e enroscados, com dois ou três fios.


Havia arroz sem colorau, couve e pão. Sobre a toalha havia também copos cheios de vinho ou de água mineral, sorrisos, manchas de sol e a frescura do vento que sussurrava nas árvores. E no fim de tudo houve fotografias. É possível que nesse intervalo tenhamos esquecido uma encantadora lingüiça de porco e talvez um pouco de farofa. Que importa? O lombo era o essencial, e a sua essência era sublime. Por fora era escuro, com tons de ouro. A faca penetrava nele tão docemente como a alma de uma virgem pura entra no céu. A polpa se abria, levemente enfibrada, muito branquinha, desse branco leitoso e doce que têm certas nuvens às quatro e meia da tarde, na primavera. O gosto era de um salgado distante e de uma ternura quase musical. Era um gosto indefinível e puríssimo, como se o lombo fosse lombinho da orelha de um anjo ouro. Os torresmos davam uma nota marítima, salgados e excitantes da saliva. O tutu tinha o sabor que deve ter, para uma criança que fosse gourmet de todas as terras, a terra virgem recolhida muito longe do solo, sob um prado cheio de flores, terra com um perfume vegetal diluído mas uniforme. E do prato inteiro, onde havia um ameno jogo de cores cuja nota mais viva era o verde molhado da couve — do prato inteiro, que fumegava suavemente, subia para a nossa alma um encanto abençoado de coisas simples e boas.

Era o encanto de Minas.

São Paulo, 1934.


Texto extraído do livro "Morro do Isolamento", editora Record 
Rio de Janeiro, 1982, pág. 121.as".







terça-feira, 8 de março de 2016

CHÁ DAS CINCO: RUBEM BRAGA

DESPEDIDA

E no meio dessa confusão alguém partiu sem se despedir; foi triste. Se houvesse uma despedida talvez fosse mais triste, talvez tenha sido melhor assim, uma separação como às vezes acontece em um baile de carnaval — uma pessoa se perde da outra, procura-a por um instante e depois adere a qualquer cordão. É melhor para os amantes pensar que a última vez que se encontraram se amaram muito — depois apenas aconteceu que não se encontraram mais. Eles não se despediram, a vida é que os despediu, cada um para seu lado — sem glória nem humilhação.

www.pimenta.blog.br

Creio que será permitido guardar uma leve tristeza, e também uma lembrança boa; que não será proibido confessar que às vezes se tem saudades; nem será odioso dizer que a separação ao mesmo tempo nos traz um inexplicável sentimento de alívio, e de sossego; e um indefinível remorso; e um recôndito despeito.

E que houve momentos perfeitos que passaram, mas não se perderam, porque ficaram em nossa vida; que a lembrança deles nos faz sentir maior a nossa solidão; mas que essa solidão ficou menos infeliz: que importa que uma estrela já esteja morta se ela ainda brilha no fundo de nossa noite e de nosso confuso sonho?

Talvez não mereçamos imaginar que haverá outros verões; se eles vierem, nós os receberemos obedientes como as cigarras e as paineiras — com flores e cantos. O inverno — te lembras — nos maltratou; não havia flores, não havia mar, e fomos sacudidos de um lado para outro como dois bonecos na mão de um titeriteiro inábil.

Ah, talvez valesse a pena dizer que houve um telefonema que não pôde haver; entretanto, é possível que não adiantasse nada. Para que explicações? Esqueçamos as pequenas coisas mortificantes; o silêncio torna tudo menos penoso; lembremos apenas as coisas douradas e digamos apenas a pequena palavra: adeus.

A pequena palavra que se alonga como um canto de cigarra perdido numa tarde de domingo.



quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

CHÁ DAS CINCO: RUBEM BRAGA

AS BOAS COISAS DA VIDA


Uma revista mais ou menos frívola pediu a várias pessoas para dizer as “dez coisas que fazem a vida valer a pena”. Sem pensar demasiado, fez esta pequena lista:

- Esbarrar às vezes com certas comidas da infância, por exemplo: aipim cozido, ainda quente, com melado de cana que vem numa garrafa cuja rolha é um sabugo de milho. O sabugo dará um certo gosto ao melado? Dá: gosto de infância, de tarde na fazenda.

- Tomar um banho excelente num bom hotel, vestir uma roupa confortável e sair pela primeira vez pelas ruas de uma cidade estranha, achando que ali vão acontecer coisas surpreendentes e lindas. E acontecem.

- Quando você vai andando por um lugar e há um bate-bola, sentir que a bola vem para o seu lado e, de repente, dar um chute perfeito – e ser aplaudido pelos serventes de pedreiro.

- Ler pela primeira vez um poema realmente bom. Ou um pedaço de prosa, daqueles que dão inveja na gente e vontade de reler.

- Aquele momento em que você sente que de um velho amor ficou uma grande amizade – ou que uma grande amizade está virando, de repente, amor.

- Sentir que você deixou de gostar de uma mulher que, afinal, para você, era apenas aflição de espírito e frustração da carne – a mulher que não te deu e não te dá, essa amaldiçoada.

- Viajar, partir…

- Voltar.

- Quando se vive na Europa, voltar para Paris, quando se vive no Brasil, voltar para o Rio

- Pensar que, por pior que estejam as coisas, há sempre uma solução, a morte – o assim chamado descanso eterno.

quinta-feira, 18 de junho de 2015

CHÁ DAS CINCO: RUBEM BRAGA

O CONDE E O PASSARINHO


albalegendario.blogspot.com

Acontece que o Conde Matarazzo estava passeando pelo parque. O Conde Matarazzo é um Conde muito velho, que tem muitas fábricas. Tem também muitas honras. Uma delas consiste em uma preciosa medalhinha de ouro que o Conde exibia à lapela, amarrada a uma fitinha. Era uma condecoração (sem trocadilho).

Ora, aconteceu também um passarinho. No parque havia um passarinho. E esses dois personagens – o Conde e o passarinho – foram os únicos da singular história narrada pelo Diário de São Paulo.

Devo confessar preliminarmente que, entre um Conde e um passarinho, prefiro um passarinho. Torço pelo passarinho. Não é por nada. Nem sei mesmo explicar essa preferência. Afinal de contas, um passarinho canta e voa. O Conde não sabe gorjear nem voar. O Conde gorjeia com apitos de usinas, barulheiras enormes, de fábricas espalhadas pelo Brasil, vozes dos operários, dos teares, das máquinas de aço e de carne que trabalham para o Conde. O Conde gorjeia com o dinheiro que entra e sai de seus cofres, o Conde é um industrial, e o Conde é Conde porque é industrial. O passarinho não é industrial, não é Conde, não tem fábricas. Tem um ninho, sabe cantar, sabe voar, é apenas um passarinho e isso é gentil, ser um passarinho.

Eu quisera ser um passarinho. Não, um passarinho, não. Uma ave maior, mais triste. Eu quisera ser um urubu. Entretanto, eu não quisera ser Conde. A minha vida sempre foi orientada pelo fato de eu não pretender ser Conde. Não amo os Condes. Também não amo os industriais. Que eu amo? Pierina e pouco mais. Pierina e a vida, duas coisas que se confundem hoje, e amanhã mais se confundirão na morte.

Entendo por vida o fato de um homem viver fumando nos três primeiros bancos e falando ao motorneiro. Ainda ontem ou anteontem assim escrevi. O essencial é falar ao motorneiro. O povo deve falar ao motorneiro. Se o motorneiro se fizer de surdo, o povo deve puxar a aba do paletó do motorneiro. Em geral, nessas circunstâncias, o motorneiro dá um coice. Então o povo deve agarrar o motorneiro, apoderar-se da manivela, colocar o bonde a nove pontos, cortar o motorneiro em pedacinhos e comê-lo com farofa.

Quando eu era calouro de Direito, aconteceu que uma turma de calouros assaltou um bonde. Foi um assalto imortal. Marcamos no relógio quanto nos deu na cabeça, e declaramos que a passagem era grátis. O motorneiro e o condutor perderam, rápida e violentamente, o exercício de suas funções. Perderam também os bonés. Os bonés eram os símbolos do poder.

Desde aquele momento perdi o respeito por todos os motorneiros e condutores. Aquilo foi apenas uma boa molecagem. Paciência. A vida também é uma imensa molecagem. Molecagem podre. Quando poderás ser um urubu, meu velho Rubem?


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Mas voltemos ao Conde e ao passarinho. Ora, o Conde estava passeando e veio o passarinho. O Conde desejou ser que nem o seu patrício, o outro Francisco, o Francisco da Umbria, para conversar com o passarinho. Mas não era aquele, o São Francisco de Assis, era apenas o Conde Francisco Matarazzo. Porém, ficou encantado ao reparar que o passarinho voava para ele. O Conde ergueu as mãos, feito uma criança, feito um santo. Mas não eram mãos de criança nem de santo, eram mãos de Conde industrial. O passarinho desviou e se dirigiu firme para o peito do Conde. Ia bicar seu coração? Não, ele não era um bicho grande de bico forte, não era, por exemplo, um urubu, era apenas um passarinho. Bicou a fitinha, puxou, saiu voando com a fitinha e com a medalha.

O Conde ficou muito aborrecido, achou muita graça. Ora essa! Que passarinho mais esquisito!

Isso foi o que o Diário de São Paulo contou. O passarinho, a esta hora assim, está voando, com a medalhinha no bico. Em que peito a colocareis, irmão passarinho? Voai, voai, voai por entre as chaminés do Conde, varando as fábricas do Conde, sobre as máquinas de carne que trabalham para o Conde, voai, voai, voai, voai, passarinho, voai.

O Conde e O Passarinho. Rio de Janeiro: Record, 1982.



quinta-feira, 10 de abril de 2014

CHÁ DAS CINCO: RUBEM BRAGA

A OUTRA NOITE

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Outro dia fui a São Paulo e resolvi voltar à noite, uma noite de vento sul e chuva, tanto lá como aqui. Quando vinha para casa de táxi, encontrei um amigo e o trouxe até Copacabana; e contei a ele que lá em cima, além das nuvens, estava um luar lindo, de lua cheia; e que as nuvens feias que cobriam a cidade eram, vistas de cima, enluaradas, colchões de sonho, alvas, uma paisagem irreal.

Depois que o meu amigo desceu do carro, o chofer aproveitou o sinal fechado para voltar-se para mim:

-O senhor vai desculpar, eu estava aqui a ouvir sua conversa. Mas, tem mesmo luar lá em cima?

Confirmei: sim, acima da nossa noite preta e enlamaçada e torpe havia uma outra - pura, perfeita e linda.

-Mas, que coisa...

Ele chegou a pôr a cabeça fora do carro para olhar o céu fechado de chuva. Depois continuou guiando mais lentamente. Não sei se sonhava em ser aviador ou pensava em outra coisa.

-Ora, sim senhor...

E, quando saltei e paguei a corrida, ele me disse um "boa noite" e um "muito obrigado ao senhor" tão sinceros, tão veementes, como se eu lhe tivesse feito um presente de rei.