ULYSSES GUIMARÃES NA BAHIA (GOOGLE) |
ULYSSES – 100 ANOS DE UMA LENDA
A trajetória do homem que trazia a política na alma e cumpriu
a sua jornada como um servidor público da democracia
e do povo brasileiro. Políticos atuais deveriam seguir pelo menos
três de seus legados: moral, ética e vergonha na cara
Por ANTONIO CARLOS PRADO
Isto É Online – 07.10.16 - 18h00
Na última quarta-feira, dia 5,
a Constituição Brasileira completou 28
anos de vigência – e lá se vai no tempo, portanto, esse dia histórico de
outubro de 1988 quando o deputado federal Ulysses Guimarães, presidindo os
trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, emocionou-se e emocionou toda a
Nação ao proclamar que estava “promulgada a Constituição do Brasil”. Sua voz
firme e anasalada, mais anasalada ainda naquele instante porque inevitavelmente
embargada, fazia de Ulysses a mais fiel tradução do próprio Ulysses: um homem
que concebia a política como a “arte de viver e não mera busca do poder” (que é
“até afrodisíaco se servir ao povo”), um homem que sempre se colocou na política
como servidor público, um homem que sempre serviu a um Brasil que lhe conferiu 11 mandatos parlamentares consecutivos.
Naquele 5 de outubro, tanta festa
pela consolidação constitucional do Estado de Direito, que à exceção de sua
esposa, dona Mora, ninguém lembrou que no dia seguinte era o seu aniversário de
72 anos.
“O silêncio e o olhar de Ulysses pesavam mais do que a pata de
um elefante, tal era a liderança e o respeito de que gozava”
(Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente do Brasil)
O que é uma data íntima, particular, diante de uma data republicana
e democrática para um País que acabara de sair da noite da ditadura militar?
Para Ulysses Guimarães, o aniversário era fato menor. Maior, bem maior, é, no
entanto, lembrarmos agora que na quinta-feira 6 fez-se o centenário de seu nascimento. E, também é bom
lembrarmos, até porque não há hoje no Brasil homens públicos que se coloquem ao
lado do povo como ele se colocou, não como estratégia pré-eleitoral, mas porque
sua alma assim o cobrava. É impensável um Ulysses Silveira Guimarães, nascido
na cidade paulista de Rio Claro e desde jovem enfronhado nas questões
nacionais, em meio à maioria dos parlamentares da atualidade. Não julguem,
entretanto, que ele iria desistir. Ia é peitar um a um: ou todos mudavam de conduta
ou ficaria só ele legislando com sua moral e sua ética. Correr, jamais. A
coragem e a luta também tecem o temperamento de quem nasce em libra. Idem a
língua afiada. Em 1992, quando o
ex-presidente Fernando Collor o chamou de “desequilibrado e senil”, Ulysses o
fez engolir letra por letra: “Sou velho mas não sou velhaco”. Em plena
ditadura, quando a polícia o encurralou em Salvador, palavras viraram canhão:
“Respeitem o líder da oposição! Soldados da minha pátria, baioneta não é voto e
cachorro não é urna”. Os fuzis foram virados para o chão, cada militar ordenou
que o pastor alemão trazido na coleira parasse de latir e deitasse.
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Vocação para o
diálogo
Se o arrojo físico de Ulysses foi uma das marcas de seu
temperamento, o dom do diálogo e da conciliação o temperou e lhe deu a dimensão
de estadista – não é por acaso que ISTOÉ
o expõe nessas fotos (http://istoe.com.br/ulysses-guimraes-100-anos-de-uma-lenda/), em diversas situações e com políticos de diferentes
ideologias. Ele acreditava na interlocução, mesmo nos momentos mais duros,
como, por exemplo, quando comandava o Movimento Democrático Brasileiro (MDB),
partido que criou e que se opunha a Arena no bipartidarismo do regime de
exceção: “Não queremos a ruptura, não optamos pela luta armada. Acreditamos no
diálogo para servir ao povo do Brasil” – o “il” de Brasil de Ulysses era sempre
marcante, com a ponta da língua meio que encostando no céu da boa. Ulysses
tinha o tempo certo de tudo, tempo de brigar, tempo de dialogar. Não se inflava
com aplausos nem murchava com vaias. Tinha o tempo que o senador Pinheiro
Machado, citado por Érico Veríssimo no monumental “Solo de clarineta”, nos legou em 1915: “Nunca vá tão depressa que possam pensar que você tem medo,
nem vá tão devagar que possa parecer provocação”. Eis o jogo e cintura de
Ulysses.
Líder absoluto na luta pela anistia política (em 1979) e consagrado pelo povo no comando
das Diretas Já (que lhe valeu em 1983 o título de “O senhor Diretas”), ele
lançou pelo PMDB a sua candidatura à Presidência do Brasil em 1989. Perdeu,
ficou em sétimo lugar. Nenhum abalo, partiu então para a sua última
legislatura. Em 12 de outubro de 1992, voando em meio à neblina, o
helicóptero que o transportava (juntamente com dona Mora, o empresário Severo
Gomes e sua mulher, Anna Maria Henriqueta) caiu no mar. Seu corpo nunca foi
encontrado, e legistas acham que um fêmur, nada além de um fêmur daquele que
foi um dos maiores parlamentares brasileiros, o mar devolveu à areia. Mas a
trajetória do homem que virou lenda, essa permanece em terra firme, e bom seria
ser evocada por políticos atuais. Ulysses nasceu há um século em outubro, a
Constituição é de outubro, Ulysses morreu em outubro. A partir desse outubro de
2016, portanto, muitos políticos
deveriam segui-lo em pelo menos três de seus legados: moral, ética e muita
vergonha na cara.