" Ela tinha a beleza tranquila da maturidade. Alguns fios de cabelo branco davam ao seu rosto um encanto especial. De hábitos domésticos e simples, um de seus prazeres era assentar-se numa poltrona e entrar na bolha que a leitura cria. Quem lê está num outro mundo, muito distante.
O marido a observava de longe. Olhos que observam são aqueles que olham quando o outro não está olhando. Seu olhar era o de apaixonado que desconfia, olhar de ciúme. Os olhos do ciumento vigiam. Vigiam gestos, movimentos, horas, sorrisos. Vigiam porque as modulações silenciosas e distraídas da pessoa amada podem conter revelações sobre aquilo que ela esta pensando. O ciumento suspeita que o ser amado lhe esconda alguma coisa. Olha na esperança de ver algo escondido, de entrar dentro do segredo do outro. O ciumento detesta os pensamentos. Por mais que os vigie, eles estão além de sua vigilância.
Ele queria adivinhar seus pensamentos. E a sua vigilância se exacerbava quando ela sorria ou ria. Como explicar este sorriso se ele, o marido, não estava dentro do livro? Ela não precisava dele pra ser feliz. Porque ali, mergulhada no livro, o marido não existia..."
"O ciúme nasce quando se toma consciência de que a pessoa amada é livre. Ela é um pássaro pousado no ombro. Nada o prende. Pode voar quando quiser."
Extraido do livro: Cantos do pássaro encantado
Rubem Alves
Foto: Carolina Marques