Há pouco tempo passou no
cinema um filme com a Julianne Moore que muitos acharam impressionante.
Chamava-se O Meu Nome é Alice e conduzia-nos a um patamar moderado de
perda de identidade e autonomia da protagonista.
Fui ver o filme com
a minha mãe. Ambas calámos a dor indelével da ferida retocada até ao
final da exibição. Então, virámo-nos uma para a outra e concordámos que o
filme (tal como o livro em que se baseia) apenas aflora a doença.
Alzheimer é sentença pior que outros males, porque significa o fim da esperança. Para o doente e para quem o ama.
Não digo que o filme seja mau, mas incompleto. Fica-se pela perda de
sentido de orientação, incapacidade de prosseguir a vida profissional,
deterioração dos cuidados pessoais.
Para nós, Alzheimer começou com a
incapacidade para preencher as palavras cruzadas acompanhada da perda
de vocabulário e a compra do jornal sem dinheiro, que acautelámos
prevenindo as senhoras da papelaria.
Depressa começaram as idas
constantes ao hospital, para hidratação e nutrição do meu pai que, antes
dos 60 anos(!), desaprendera de comer e deixara de sentir sede. As
saídas furtivas à rua, o impulso de meter a mão num tacho ao lume ou
numa tomada, os comentários e comportamentos inadequados. Rapidamente
evoluiu para um estado de magreza gritante e uma vulnerabilidade que
troca o sentido à vida da família. O olhar vazio de quem tudo
desaprende.
O doente desconfia da própria imagem reflectida no
espelho e deixa de reconhecer quase toda a gente. Multiplicam-se
infecções respiratórias e urinárias.
As crises de agressividade
podem ser frequentes e o(s) cuidador(es) sofre(m) de exaustão,
isolamento e suportam um fardo económico brutal.
Alzheimer não é como o filme com a Julianne Moore nem é doença que deva servir de base a piadas de mau gosto.
Hoje é o Dia Internacional da doença este texto é a minha forma de sensibilizar para a demência.
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21 setembro 2018
02 fevereiro 2015
Alzheimer
Terminei a leitura do livro que serviu de base ao argumento
para o filme que estreia esta semana, sobre uma professora a quem, aos 50 anos,
é dito que sofre de Alzheimer.
O livro é duro? Nada, quando comparado com a realidade.
Ficamos com uma leve ideia do que será o declínio.
Não assistimos aos acessos de agressividade. Ao isolamento a
que o doente e a família são condenados. Não sofremos ao ver alguém que amamos
enfiar uma mão num tacho com água ao lume ou numa tomada. Não presenciamos as
quedas, o uso de fraldas, os conflitos familiares que desencadeia.
Não tanta coisa…
Ainda assim, aconselho.
Sobretudo para quem ainda tem a desfaçatez de fazer piadas
acerca de Alzheimer. Não é uma amnésia. Não é “só” desorientação, perda da
capacidade de cálculo. É tudo. São infecções respiratórias recorrentes,
seguidas de infecções urinárias. É descoordenação motora, incapacidade para se
alimentar ou beber, uma total ausência da realidade, presente ou passada.
É a falta de respeito de quem desconhece. É a morte antes da
morte.
Não há por que lutar.
Porque, quando alguém que amamos tem Alzheimer, a esperança
é a primeira a morrer.
21 setembro 2012
Com Alzheimer não se brinca...
Se há
palavra que não gosto de ouvir pronunciada à toa, essa palavra é “Alzheimer”.
Quantas vezes
dita quando alguém constata ter-se esquecido de algo, nem sempre se referindo
ao nome em si mas, em jeito de piada, “já deve ser o amigo alemão”.
Não acredito
que quem já sentiu a dor do Alzheimer, aquela que mora cá dentro para sempre,
possa sequer pensar em associar um simples lapso ao pesadelo duma demência como
esta e com ela tentar ser engraçado.
Não é uma
memória enfraquecida. Não é a incapacidade de fazer contas. Não é a
desorientação, nem a perda da noção do perigo.
Alzheimer é
uma doença incapacitante, sem cura e que apaga tudo.
Apaga
da mente de quem dele padece a capacidade verbal, a noção do dinheiro e dos
números, a autonomia.
Alzheimer transforma uma pessoa num ser que deixa de reconhecer quem ama, passa a não saber cuidar de si mesmo e termina sem ser sequer capaz
se alimentar e beber, isso é um inferno.
Viver de perto a doença de Alzheimer é
ver um pai, uma mãe, alguém que nos é tudo, pôr a mão num tacho com água ao
lume sem saber do perigo desse gesto, enfiar os dedos numa tomada, guardar
sapatos na gaveta da roupa interior. É olhar nuns olhos que nos deram vida e
ver só ausência. Nem pingo da pessoa que foi. Um modelo que tivemos, convertido
em bebé grande, num corpo que definha e adoece com outras mazelas. São infeções
respiratórias e renais, sucessivas, é o perigo das escaras quando as pernas já
não têm ligação ao cérebro que as comandou, é a incontinência dum organismo que
entrou em colapso.
Alzheimer é
a dor duma doença que deixa os familiares cuidadores ao abandono. Porque os
restantes familiares se afastam “prefiro lembrar-me dele(a) como era..”, porque
as dúvidas são mais que muitas, a angústia sufocante e a revolta infinita. Não
há uma resposta social para quem tem Alzheimer na família, e deixa de haver
apoio emocional para quem quer ter de volta o que já não retorna.
O futuro
torna-se aterrorizador, o presente impossível.
Alzheimer é
um monstro mau, pior que todos os terrores duma infância normal.
É o nosso
sorriso roubado, a vida sem sentido, o luto antes do luto.
(Publiquei
anteriormente alguns posts sobre este tema, que podem ser visualizados ao
clickar na barra lateral direita sobre a etiqueta “Alzheimer”)
21 setembro 2008
Dia Mundial da Pessoa com Doença de Alzheimer
(imagem retirada do blogue esic.3kta.net)
Há um ano, publiquei um post com este mesmo título.
Para quem não o leu, pois na altura este blogue tinha menos leitores, deixo aqui o link, que os conduzirá a um dos meus textos impregnados de saudade:
http://escritoaquente.blogspot.com/2007/09/dia-mundial-da-pessoa-com-doena-de.html
Alzheimer é uma doença colectiva, uma doença familiar, sobretudo.
Porque afecta não só a pessoa que dela padece como também os seus familiares e amigos.
É um pesadelo latente no dia-a-dia; garanto que, durante os dias, anos, de vida do meu pai em que a doença já dele tomara conta, não passou um momento em que não fizesse sentir no mais íntimo de mim mesma. E é um pesadelo sem fim, pois ainda hoje o sinto: sinto-o na saudade, no sentimento de revolta de quem se sente roubada por ter apenas, durante anos, um corpo sem a personalidade que o identificava como meu pai. E sinto-o na minha própria maneira de estar na vida. Muito mais sofrida, muito mais envelhecida, mas capaz de valorizar muito mais todas as pequenas coisas boas que estão ao nosso alcance.
A Doença de Alzheimer começou por me arrebatar a gargalhada, mais tarde roubou-me o meu pai, arrebatou o avô da Vasco, enegreceu a minha gravidez da Mafalda.
Mas não me surripiou esta necessidade premente de comunicar, nem o impulso de sensibilizar toda a gente para esta doença.
Para quem não o leu, pois na altura este blogue tinha menos leitores, deixo aqui o link, que os conduzirá a um dos meus textos impregnados de saudade:
http://escritoaquente.blogspot.com/2007/09/dia-mundial-da-pessoa-com-doena-de.html
Alzheimer é uma doença colectiva, uma doença familiar, sobretudo.
Porque afecta não só a pessoa que dela padece como também os seus familiares e amigos.
É um pesadelo latente no dia-a-dia; garanto que, durante os dias, anos, de vida do meu pai em que a doença já dele tomara conta, não passou um momento em que não fizesse sentir no mais íntimo de mim mesma. E é um pesadelo sem fim, pois ainda hoje o sinto: sinto-o na saudade, no sentimento de revolta de quem se sente roubada por ter apenas, durante anos, um corpo sem a personalidade que o identificava como meu pai. E sinto-o na minha própria maneira de estar na vida. Muito mais sofrida, muito mais envelhecida, mas capaz de valorizar muito mais todas as pequenas coisas boas que estão ao nosso alcance.
A Doença de Alzheimer começou por me arrebatar a gargalhada, mais tarde roubou-me o meu pai, arrebatou o avô da Vasco, enegreceu a minha gravidez da Mafalda.
Mas não me surripiou esta necessidade premente de comunicar, nem o impulso de sensibilizar toda a gente para esta doença.
21 setembro 2007
Dia Mundial da Pessoa com Doença de Alzheimer
Hoje, volto a falar-lhes da Doença de Alzheimer. Não na perspectiva de médica ou técnica de saúde, nem de investigadora ou jornalista.
Falo-lhes, como habitualmente, do que vivi, como filha de um doente.
No princípio, era a negação. A minha mãe estranhava os comportamentos, criticava-o por não ir ao médico, já que ouvia tão mal... Quando a resposta se tornou inequívoca de que não se tratava de falta de audição, chamei-a à realidade; ele não podia estar a protelar. Porque respondia "mas nós temos máquina?" quando o informava que a louça que procurava ainda devia estar por retirar da máquina. Ou quando lhe dizia "vê ali pela janela da marquise" e ele ripostava "onde é a marquise?".
Não se pense, como há tendência, que é uma questão de falta de memória progressiva. É muito, muito mais que isso.
Por acaso, eu sabia o que a doença operava numa pessoa. E dava-se a coincidência de ter acabado de me estrear na indústria farmacêutica. O médico que nos dava formação pressentia, tal como eu receava, tratar-se de uma situação de demência.
A vida já fora dura comigo, no que tocava a situações de doença. Mas aproximava-se a confirmação da que eu mais temia.
Quem não conhecesse o meu pai não notaria nada. Só nós, conscientes de que ele já não completava as palavras cruzadas (que habitualmente só punha de lado após resolver até as que requeriam o próprio preenchimento das quadrículas pretas) nem lia o jornal, nos apercebemos.
Nesta primeira fase, o empobrecimento do léxico era também um sinal. E, novamente, apenas para nós. Para os outros, que passavam menos tempo com ele, não era visível. Os cachimbos permaneciam intocados. Aos cigarros, ainda proporcionava passeios, em que não sabia o uso que haveria de dar-lhes.
Tendo dedicado a sua vida aos transportes marítimos, era conhecedor de todos os nomes de portos do mundo. Enquanto eu trabalhava e finalizava a licenciatura em Relações Internacionais, cheguei a dedicar-me ao estudo das matérias teóricas, contando com o resumo diário que o meu inspirador para a vida me fazia acerca do que andamento do planeta.
Um ano depois, apenas 59 anos da sua vida percorridos, desaba sobre nós o rótulo que nos recusávamos a pronunciar: Alzheimer.
Não lho comunicámos, pois de nada valia. Julgo que, nos momentos de lucidez que então ainda tinha, terá desconfiado. Chegou a ter conversas acerca de como a morte, se viesse entretanto, o não perturbaria, porque, dizia, já vivera bastante.
Eu tinha-o levado ao médico. Ele, muito contrariado e receoso (lembrava-se da situação de um vizinho e temia que lhe fizessem "um buraco na cabeça"), apenas anuiu porque o convenci que ia apenas para não me deixar mal vista, já que se tratava de uma consulta difícil de obter. Disse-lhe que queríamos ver como estava o ouvido dele.
Para nós, foi a teatralização das emoções. Dar um tom de normalidade quando tudo ruía.
Era aterrorizador imaginar o futuro. Alzheimer é, desde logo, a depressão de uma família. A dedicação total, que nos envelhece precocemente. É a quase ruptura económica. O luto antes da morte. Um luto que se nos cola à alma para nunca mais a largar.
Para o doente, é a cessação da vida enquanto ainda existe. O doente era o meu pai.
Tudo arrasado: os planos de viajar, ler a restante biblioteca que não pudera enquanto trabalhara (no sector marítimo, a recessão levara-o, como a muitos outros colegas, a pré-reformas um tanto ou quanto forçadas). O livro, cujo título idealizara muitos anos antes.
A partir daí, lamentei cada minuto que passava sem a sua companhia.
E temi o que estaria para vir: o dia em que ele perderia a noção do certo e do errado, do seguro e do perigoso. O dia em que deixaria de controlar os esfíncteres. O dia em que não saberia mais orientar-se na rua, ou mesmo em casa. O dia em que não reconheceria mais a mulher. Ou a filha. O momento em que o equilíbrio lhe faltaria, o momento em que as pernas deixariam de suportar o seu peso. O tempo em que andaria de internamento em internamento, alternando entre infecções respiratórias e infecções urinárias. Ou simplesmente para ser hidratado e nutrido. Porque a doença compromete, também, a capacidade de deglutir. Como todas as restantes.
E todos esses dias e todos esses momentos vieram.
E todas essas etapas nos faziam sentir mais roubadas, mais mergulhadas numa do interminável...
Quantas vezes era ele o doente com aspecto mais frágil de toda uma enfermaria de Neurologia!
Mas vencemos muitas fases, atrasando-as. Levando-o a passear, tentando fazê-lo rir, alimentando-o de acordo com as necessidades e o seu gosto, hidratando-lhe a pele e fazendo-o exercitar músculos e articulações enquanto estava acamado. Chegámos a tirá-lo da situação de acamado, fazendo com que voltasse a andar, e por muito mais tempo.
A minha mãe, lutadora, dava frequentemente o seu testemunho na tv, em dias como este, ou em peditórios.
As hospitalizações eram um retrocesso: não há pessoal hospitalar para se ocupar destes doentes. De modo que são limitados ao uso de fralda, quando, como o meu pai, ainda conseguíamos levá-lo à casa de banho. Regressava com escaras, unhas de quilómetros se não as cortássemos nas visitas. E pouco comeria se não fizéssemos por isso, estando presentes à hora das refeições.
O dia-a-dia, em casa durante a maioria dos anos de evolução da saga, era feito de desorientação, visões, agressividade, sapatos guardados em gavetas, dedos enfiados em tomadas ou mergulhados em tachos ao lume. Felizmente, acções logo contrariadas por alguém que se apercebia.
Porque ninguém consegue olhar por uma pessoa assim 24 horas por dia, teve de se recorrer a ajuda exterior. A peso de ouro, evidentemente.
A família e os amigos escassearam. Aqueles que iam lá a casa frequentemente almoçar, passaram a descartar-se com a desculpa de que não suportavam vê-lo assim. Sem pensarem se eu, e sobretudo a minha mãe, que vivia ali sozinha com ele, suportávamos este percurso sem apoio. À excepção da cunhada, minha tia, o meu pai recebeu, nos seus últimos três anos de vida, passados num lar, quatro pessoas que o visitaram pontualmente. Nós, íamos vê-lo diariamente, por vezes combinando uma alternância entre a minha ida e a da minha mãe.
De ambas, ele recebeu todo o suporte e o amor. Médicos elogiaram a forma como conseguimos, em diversas fases, ludibriar a doença.
Não há cura para a dor que nos acompanhará para sempre.
Vi-o definhar, perder a capacidade de reconhecer e de comunicar. Pareceu entender quando, pela segunda vez, lhe disse que estava grávida do meu filho, muitos dias após a primeira tentativa de lho comunicar, que fora uma tentativa gorada.
Ainda dedicou uns carinhos ao neto.
Falhou a contemporaneidade com a neta, nascida poucas semanas após a sua morte. De qualquer forma, não teriam dado pela existência um do outro, cada um na sua ignorância.
Faz hoje 17 meses, uma pneumonia soprou sobre a pluma em que se tornara o meu pai e levou-o para a esfera da eternidade. Ou o que restava dele...
Falo-lhes, como habitualmente, do que vivi, como filha de um doente.
No princípio, era a negação. A minha mãe estranhava os comportamentos, criticava-o por não ir ao médico, já que ouvia tão mal... Quando a resposta se tornou inequívoca de que não se tratava de falta de audição, chamei-a à realidade; ele não podia estar a protelar. Porque respondia "mas nós temos máquina?" quando o informava que a louça que procurava ainda devia estar por retirar da máquina. Ou quando lhe dizia "vê ali pela janela da marquise" e ele ripostava "onde é a marquise?".
Não se pense, como há tendência, que é uma questão de falta de memória progressiva. É muito, muito mais que isso.
Por acaso, eu sabia o que a doença operava numa pessoa. E dava-se a coincidência de ter acabado de me estrear na indústria farmacêutica. O médico que nos dava formação pressentia, tal como eu receava, tratar-se de uma situação de demência.
A vida já fora dura comigo, no que tocava a situações de doença. Mas aproximava-se a confirmação da que eu mais temia.
Quem não conhecesse o meu pai não notaria nada. Só nós, conscientes de que ele já não completava as palavras cruzadas (que habitualmente só punha de lado após resolver até as que requeriam o próprio preenchimento das quadrículas pretas) nem lia o jornal, nos apercebemos.
Nesta primeira fase, o empobrecimento do léxico era também um sinal. E, novamente, apenas para nós. Para os outros, que passavam menos tempo com ele, não era visível. Os cachimbos permaneciam intocados. Aos cigarros, ainda proporcionava passeios, em que não sabia o uso que haveria de dar-lhes.
Tendo dedicado a sua vida aos transportes marítimos, era conhecedor de todos os nomes de portos do mundo. Enquanto eu trabalhava e finalizava a licenciatura em Relações Internacionais, cheguei a dedicar-me ao estudo das matérias teóricas, contando com o resumo diário que o meu inspirador para a vida me fazia acerca do que andamento do planeta.
Um ano depois, apenas 59 anos da sua vida percorridos, desaba sobre nós o rótulo que nos recusávamos a pronunciar: Alzheimer.
Não lho comunicámos, pois de nada valia. Julgo que, nos momentos de lucidez que então ainda tinha, terá desconfiado. Chegou a ter conversas acerca de como a morte, se viesse entretanto, o não perturbaria, porque, dizia, já vivera bastante.
Eu tinha-o levado ao médico. Ele, muito contrariado e receoso (lembrava-se da situação de um vizinho e temia que lhe fizessem "um buraco na cabeça"), apenas anuiu porque o convenci que ia apenas para não me deixar mal vista, já que se tratava de uma consulta difícil de obter. Disse-lhe que queríamos ver como estava o ouvido dele.
Para nós, foi a teatralização das emoções. Dar um tom de normalidade quando tudo ruía.
Era aterrorizador imaginar o futuro. Alzheimer é, desde logo, a depressão de uma família. A dedicação total, que nos envelhece precocemente. É a quase ruptura económica. O luto antes da morte. Um luto que se nos cola à alma para nunca mais a largar.
Para o doente, é a cessação da vida enquanto ainda existe. O doente era o meu pai.
Tudo arrasado: os planos de viajar, ler a restante biblioteca que não pudera enquanto trabalhara (no sector marítimo, a recessão levara-o, como a muitos outros colegas, a pré-reformas um tanto ou quanto forçadas). O livro, cujo título idealizara muitos anos antes.
A partir daí, lamentei cada minuto que passava sem a sua companhia.
E temi o que estaria para vir: o dia em que ele perderia a noção do certo e do errado, do seguro e do perigoso. O dia em que deixaria de controlar os esfíncteres. O dia em que não saberia mais orientar-se na rua, ou mesmo em casa. O dia em que não reconheceria mais a mulher. Ou a filha. O momento em que o equilíbrio lhe faltaria, o momento em que as pernas deixariam de suportar o seu peso. O tempo em que andaria de internamento em internamento, alternando entre infecções respiratórias e infecções urinárias. Ou simplesmente para ser hidratado e nutrido. Porque a doença compromete, também, a capacidade de deglutir. Como todas as restantes.
E todos esses dias e todos esses momentos vieram.
E todas essas etapas nos faziam sentir mais roubadas, mais mergulhadas numa do interminável...
Quantas vezes era ele o doente com aspecto mais frágil de toda uma enfermaria de Neurologia!
Mas vencemos muitas fases, atrasando-as. Levando-o a passear, tentando fazê-lo rir, alimentando-o de acordo com as necessidades e o seu gosto, hidratando-lhe a pele e fazendo-o exercitar músculos e articulações enquanto estava acamado. Chegámos a tirá-lo da situação de acamado, fazendo com que voltasse a andar, e por muito mais tempo.
A minha mãe, lutadora, dava frequentemente o seu testemunho na tv, em dias como este, ou em peditórios.
As hospitalizações eram um retrocesso: não há pessoal hospitalar para se ocupar destes doentes. De modo que são limitados ao uso de fralda, quando, como o meu pai, ainda conseguíamos levá-lo à casa de banho. Regressava com escaras, unhas de quilómetros se não as cortássemos nas visitas. E pouco comeria se não fizéssemos por isso, estando presentes à hora das refeições.
O dia-a-dia, em casa durante a maioria dos anos de evolução da saga, era feito de desorientação, visões, agressividade, sapatos guardados em gavetas, dedos enfiados em tomadas ou mergulhados em tachos ao lume. Felizmente, acções logo contrariadas por alguém que se apercebia.
Porque ninguém consegue olhar por uma pessoa assim 24 horas por dia, teve de se recorrer a ajuda exterior. A peso de ouro, evidentemente.
A família e os amigos escassearam. Aqueles que iam lá a casa frequentemente almoçar, passaram a descartar-se com a desculpa de que não suportavam vê-lo assim. Sem pensarem se eu, e sobretudo a minha mãe, que vivia ali sozinha com ele, suportávamos este percurso sem apoio. À excepção da cunhada, minha tia, o meu pai recebeu, nos seus últimos três anos de vida, passados num lar, quatro pessoas que o visitaram pontualmente. Nós, íamos vê-lo diariamente, por vezes combinando uma alternância entre a minha ida e a da minha mãe.
De ambas, ele recebeu todo o suporte e o amor. Médicos elogiaram a forma como conseguimos, em diversas fases, ludibriar a doença.
Não há cura para a dor que nos acompanhará para sempre.
Vi-o definhar, perder a capacidade de reconhecer e de comunicar. Pareceu entender quando, pela segunda vez, lhe disse que estava grávida do meu filho, muitos dias após a primeira tentativa de lho comunicar, que fora uma tentativa gorada.
Ainda dedicou uns carinhos ao neto.
Falhou a contemporaneidade com a neta, nascida poucas semanas após a sua morte. De qualquer forma, não teriam dado pela existência um do outro, cada um na sua ignorância.
Faz hoje 17 meses, uma pneumonia soprou sobre a pluma em que se tornara o meu pai e levou-o para a esfera da eternidade. Ou o que restava dele...
18 maio 2007
Fazes-me falta. Cada dia mais.
Choro ao ler, num livro, cenas que me parecem reposições de um trailer em que eras o protagonista.
Censuro-me ao lamentar o destino incerto dos extensos textos que escrevi à medida que me foste sendo roubado. Incapacitado esquecido desmemoriado atrofiado apagado afastadao entrincheirado rotulado abandonado esmagado aniquilado despersonalizado alterado irremediado acabado sedado.
Eram textos que relatavam cenas idênticas às que acabo de ler.
Alzheimer: quando é que este pesadelo terá fim?
Até o teu neto já chorou a tua saudade...
(escrito às 2 da manhã, postado quando se proporcionou).
Choro ao ler, num livro, cenas que me parecem reposições de um trailer em que eras o protagonista.
Censuro-me ao lamentar o destino incerto dos extensos textos que escrevi à medida que me foste sendo roubado. Incapacitado esquecido desmemoriado atrofiado apagado afastadao entrincheirado rotulado abandonado esmagado aniquilado despersonalizado alterado irremediado acabado sedado.
Eram textos que relatavam cenas idênticas às que acabo de ler.
Alzheimer: quando é que este pesadelo terá fim?
Até o teu neto já chorou a tua saudade...
(escrito às 2 da manhã, postado quando se proporcionou).
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