
Durante décadas, lá em casa, a data de hoje foi de festa e alegria. Houve um dia de uma falsa alegria, então, quando comemoramos a data por última vez, que foi quando ele já se despedia da vida que só duraria mais quatro dias e, após isso este passou a ser um dia de saudades. Este data marca o aniversário de nascimento de meu marido, Ubirajara, minha eterna saudade...
Quando ele já estava bem doente, escrevi uma crônica que transcrevo aqui, agora, como homenagem a ele,
Olho para ele ali sentado, cabisbaixo, olhos cerrados, um ar de tristeza estampado em cada canto de seu rosto, coração mergulhado no passado, e não posso deixar de me entristecer, não posso evitar comparações entre o homem que foi e o que é agora... Não poso evitar, eu mesma, de mergulhar no passado e de lá resgatar lembranças e saudades...E volto décadas no tempo para vir lentamente caminhando com ele, passo a passo percorrendo de novo nossos caminhos, ora atribulados e pedregosos, ora suaves e plenos de luz, numa jornada ao mesmo tempo semelhante a tantas outras embora única, só nossa. Jornada que se prenunciou numa linda tarde de verão, no final dos anos dourados, quando, voltando do meu trabalho, dei com dois olhos castanhos, profundos, firmes, postos em meus olhos.
Nossos caminhos se cruzaram então, como se cruzavam os caminhos que tínhamos que percorrer todas as tardes, eu voltando do Senai, onde trabalhava, e ele voltando da IBM, onde fazia um curso técnico de manutenção de máquinas, na Rua Piratininga, no Brás. E durante uma semana, entre trocas de olhares e sorrisos, foi crescendo em mim uma expectativa, um sonho... Trago ainda bem viva em minha lembrança a sensação que tomou conta de meu coração quando o vi aproximar-se de mim por primeira vez, o som doce, suave de sua voz ao me dirigir as primeiras palavras, tão prosaicas, tão usadas pelos jovens de então, quando se aproximavam de uma moça, como se fora um pedido de licença para chegar: “Posso acompanha-la?” E tem me acompanhado pela vida afora, tem sido desde então namorado, noivo, marido, amante, companheiro, irmão, pai, amigo, servo e senhor...
Dez meses depois eu entrava na Igreja do Brás para, diante de Deus, tornar-me sua mulher. Começava então a longa jornada... Homem inteligente, amante do saber e da cultura, passou a dividir seu tempo entre os cuidados para com sua família, a formação de nossos três filhos, seu trabalho e seus estudos que seguiram constantes ao longo de todas estas décadas e que o tornaram conhecido entre os familiares e os amigos como uma pequena enciclopédia viva. Não há o que ele não conheça, o que não tenha ouvido falar... E nesse exemplo maravilhoso criamos nossos filhos e os vemos hoje buscando sempre novos conhecimentos, novas realizações.
Mas o tempo inclemente, unido à doença implacável, vergaram esse homem alto e forte, fizeram dele quase uma criança frágil, carente de cuidados e atenções constantes, de afeto, de companhia, já que nem seus livros tão queridos podem ocupar-lhe o tempo, pois seus olhos já quase não conseguem ler... E passa horas olhando para o nada, mergulhado no passado, encontrando algum lenitivo na música, nas vozes de seus interpretes favoritos. Abre-se, porém, em sorrisos quando da chegada dos netos ou dos filhos (e as noras e o genro estão incluídos na categoria de filhos), ou quando recebe amigos, porque é um contador de histórias nato e adora bater papo. Volta então a ser o Bira que conhecemos e aprendemos a admirar. E como é um lutador, e os lutadores vergam-se mas não se rendem, ainda vai ao computador trabalhar em suas pesquisas matemáticas, tentando terminar um projeto começado há algum tempo, evidenciando assim que ainda conserva acesa lá bem dentro de si a chama do conhecimento, o desejo de realizar os sonhos acalentados por tanto tempo e que o mantém vivo, apesar de tudo.
Dulce Costa
Março/2001