Mostrar mensagens com a etiqueta Histórias. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Histórias. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

A injustiça da morte: uma história de M. S. Lourenço

Há anos atrás, M. S. Lourenço escreveu no semanário O Independente várias crónicas chamadas Os Degraus de Parnaso, depois publicadas em livro com o mesmo nome.

Na crónica que mais gostei (e cujo título infelizmente não recordo) descreveu uma situação ocorrida em Angola, na Guerra Colonial. Recordo que, em poucas linhas, descreve magistralmente o sufocante calor africano e a sua atrapalhação por ter de comandar um posto militar, já que o capitão que tinha essa responsabilidade metera baixa (por motivos psicológicos, se bem me lembro) e ele era o oficial mais graduado.

M. S. Lourenço conta que um dia, após o almoço, estava ele mergulhado na leitura de um livro, um grupo de pessoas se aproximou inesperadamente do posto militar, fazendo muito barulho e atirando algumas pedras. Os soldados de sentinela (assustados, confundidos pelo calor, pelo barulho e pela poeira) julgaram tratar-se de um ataque e dispararam alguns tiros.

Perceberam depois que se tratava de um grupo de homens, mulheres e crianças a quem um missionário evangélico qualquer dissera que na Bíblia estava escrito que os portugueses não deviam estar em África. Aquelas pessoas tinham ido, portanto, explicar aos soldados portugueses que se deviam ir embora. Iam de Bíblia na mão e entoando ruidosos e frenéticos cânticos. Não estavam armadas. Não era um ataque!

Havia diversos mortos e feridos. M. S. Lourenço ajudou o médico a tratar dos vivos e dos mortos. Quando terminaram, horas depois, o médico disse. “Não acredito na ressurreição dos mortos. Mas agora vejo que é uma ideia justa.”

o filósofo M.S. Lourenco

M. S. Lourenço morreu no sábado: 1 de Agosto de 2009. Além de filósofo, foi professor de Filosofia, poeta e tradutor. Dedicou a maior parte do seu trabalho à Lógica e à Filosofia da Matemática. Embora muitos dos seus trabalhos não sejam acessíveis a não especialistas, vale a pena espreitar a sua página pessoal - M. S. Lourenço.

(Mais informações na revista Crítica e aqui e aqui.)

domingo, 19 de julho de 2009

O valor do esforço – uma história de Isaac Asimov

«Isaac Asimov, num conto com mais de cinquenta anos publicado nos Nove Amanhãs, relata a seguinte história. Num futuro imaginário, as crianças brincam 364 dias por ano e um dia por ano o seu cérebro fica ligado a uma máquina com discos que lhes administram automaticamente todos os conhecimentos de que necessitam. Assim fazem toda a escolaridade e aprendem tudo o que precisam, da primária à Universidade. Todos menos um rapazito.

Desde os 7 anos de idade este rapaz foi obrigado a aprender à maneira antiga: estudando, tendo aulas, esforçando-se, compreendendo, investindo o seu tempo. Enquanto os seus amigos brincavam 364 dias por anos, ele estudava. E assim foi, para sua grande frustração, incompreensão e mesmo revolta, até à idade adulta.

Nessa altura foi chamado pelas classes governantes da sociedade. Começa por expor toda a sua revolta. Porque é que me trataram assim? Porque é eu tive de me esforçar para aprender por mim próprio tudo aquilo que ensinaram aos outros sem esforço? E a resposta foi “Porque tu foste escolhido para escrever os próximos discos”.»

No post Para que serve a Matemática? foi referido um brilhante texto de Jorge Buescu sobre a importância do estudo da Matemática. Nesse texto é contada esta história de Isaac Asimov, cujo significado não se cinge ao estudo da Matemática, pois mostra a importância do ensino rigoroso e exigente, seja qual for a área.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Sem Deus tudo seria permitido?

«Afirma-se muitas vezes que é prejudicial atacar uma religião, porque ela torna os homens virtuosos. Confesso que não estou convencido disso. Conheceis, por certo, a paródia que Samuel Butler fez deste argumento no sue livro Erewhon Revisited.

Estais recordados de que um certo Higgs chegou a uma remota região onde passa algum tempo e depois se escapa num balão. Vinte anos depois, tendo aí regressado, ficou Albrecht Durer's Praying Hands rezar surpreendido ao deparar com um novo culto no qual ele próprio era adorado sob o nome de Filho do Sol. Recorde-se que, com efeito, subiu aos céus. Estava para breve a celebração da Festa da Ascensão, quando ouviu (…) [dois] altos dignitários da religião dos Filhos do Sol confidenciar uma ao outro que nunca tinham visto o chamado Higgs e que esperavam que jamais isso acontecesse. Cheio de indignação, aproximou-se e disse-lhes: ‘Vou esclarecer neste dia toda esta mistificação e dizer ao povo de Erewhon que eu, Higgs, sou apenas um homem como os outros e que, simplesmente, me servi de um balão para deixar o vosso país.’ Responderam-lhe: ‘Não faças isso, porque todos os princípios morais deste povo estão ligados a esse mito, e se souberem que não subiste ao céu, transformar-se-ão todos em malfeitores’. Persuadido, abandonou o país silenciosamente.»

Bertrand Russell, Porque não sou Cristão, Brasília Editora, Porto, s/d, pp. 28-29.

Os sacerdotes convenceram Higgs a não dizer a verdade argumentando que sem a fé religiosa não haveria razões suficientemente fortes para convencer as pessoas a agir moralmente: cumprir regras, respeitar os outros e os seus bens, etc. O romancista russo Fiódor Dostoiévski exprimiu essa ideia através destas célebres palavras: “Sem Deus tudo seria permitido”.

A ideia de que as pessoas não agiriam moralmente se não tivessem uma motivação religiosa presta-se a objecções óbvias, nomeadamente esta: há imensas pessoas que não têm qualquer crença religiosa e mesmo assim procuram agir moralmente. Por isso, é possível que mesmo sem Deus nem tudo fosse permitido.

Mas, mesmo que admitíssemos a necessidade de uma tal motivação religiosa, isso não seria – como sugere a história contada por Bertrand Russell – uma prova a favor da existência de Deus ou de outro ser sobrenatural qualquer. Com efeito, para se adquirir esse tipo de motivação e para que esta seja eficaz, não é necessário que Deus exista – basta que as pessoas acreditem que existe.

[Uma discussão mais detalhada destas ideias levar-nos-ia a considerar vários tópicos filosóficos, nomeadamente a teoria dos mandamentos divinos (acerca da natureza dos juízos morais) e o argumento moral a favor da existência de Deus.]

Na imagem: Betende Hände, Desenho a pincel sobre papel azul de Albrecht Dürer (1471-1528).

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

A origem da censura

Os actos de censura motivados por acusações de obscenidade ou de pornografia fazem-me sempre lembrar uma história que li ou ouvi já não sei onde.

Ontem, a apreensão de alguns livros por terem na capa uma reprodução do quadro “A origem do mundo”, de Courbet, trouxe-me a história à memória. Infelizmente, hoje recordei-a também, pois li esta coisa hilariante: o Comando da PSP de Braga justificou a apreensão dos livros com o “perigo de alteração da ordem pública” que a exposição pública da obra supostamente estava a provocar.

A interpretação da história fica a cargo do caro leitor, pois, embora a Filosofia tenha muito a dizer acerca da liberdade de expressão, os motivos que levam alguém a armar-se em censor enquadram-se sobretudo na Psicologia e na Sociologia.

Eis a história.

Um dia uma senhora telefonou à Polícia queixando-se que, exactamente em frente à sua casa, um homem se banhava nu no rio. Depois de um polícia falar com ele o homem foi embora.

Pouco depois a senhora voltou a telefonar queixando-se que o homem continuava a banhar-se nu no rio, tendo-se limitado a afastar-se um pouco. Mais uma vez foi um polícia falar com o homem e ele foi embora.

Mas, ao fim de alguns minutos, senhora telefonou outra vez à Polícia e com a mesma queixa. O homem tinha-se afastado um bom bocado, mas continuava a banhar-se nu no rio.

O polícia, um pouco impaciente, disse-lhe:

- Minha senhora, é verdade que o homem continua a banhar-se no rio. Contudo, da sua casa já não é possível vê-lo, por isso...

A senhora interrompeu o polícia:

- Está enganado. Com uns binóculos ainda consigo vê-lo!