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Mas crise, crise, qual crise?



Eu avançava dentro de mim. Via o mundo em guerra e desconhecia o que era a guerra, excepto na indigestão de guerras que estudava nos livros de História. Tudo guerras, as páginas e páginas de compêndios que me obrigavam a engolir relatavam umas com cem anos, outras com trinta, batalhas, cercos, tratados, pilhagens, nomes de heróis, e finalmente vinha a paz. Eu assistia pela primeira vez na vida, cá de longe, aos reflexos da guerra, coisa que se passava para lá dos Pirenéus, em avançadas, em destruições totais, carnificinas de aldeias, cidades, um mundo que me chegava nas primeiras páginas dos jornais, no noticiário que relatava as campanhas pelos vários campos da Europa. Ia aprendendo geografia. Um vazio enorme apoderava-se de mim no momento preciso em que escalava a ladeira dos anos. O pneu furado deixava sair tudo o que de bom e mau lá tinha dentro. Aquilo a que mais tarde chamariam um 'washbrain'. Esvaziara-me o esforço desconexo de tanto exame e de tanto trânsito para ser homem. Nunca pensei o que era ser homem, desconhecia que um homem só é digno quando aceita as consequências das suas acções, desconhecia os esforços empregados para se fingir que se mantém um zelo permanente pelas instituições. E tal a inconsciência do nosso estado de espírito, que estou a ver o actor António Silva, em representação no teatro Variedades, pleno de guerra, notícias aterradoras, ele, no meio da confusão do palco, em que toda a gente perguntava as últimas notícias, onde se relatavam casos que só podiam ser salvos pela Cruz Vermelha. No encontro dessas conversas, o António Silva, como vindo das cavernas, olha para aqueles tipos que discutiam e, muito admirado, diz: "Mas guerra, guerra, qual guerra?" 

Ruben A., «O Mundo à Minha Procura», vol. II, Assírio & Alvim, p.121-122

Shakespeare



«Para lá do organizado, do metódico, das horas certas, dos acontecimentos de calendário, das festas com os primos dos primos dos primos de um nobre, estava o verdadeiro valor universal do Inglês, esse, ele sabia da sua existência, era-lhe dado todos os dias por Shakespeare. Quis conhecer esse fenómeno, sabia de umas peças que tinha escrito, 'Hamlet' e Macbeth' para ilustrar, mas o resto não chegava muito além das fronteiras, talvez umas comédias para chorar no irreal quotidiano. Sem Shakespeare eu não podia meter o dente na Inglaterra, menos ainda na humanidade. Comecei à cata, devorando jornais, indo aos sítios mais espantosos para o ver no palco. Lembro-me dos tempos heróicos de Campden Town onde o actor Donald Wolfit deve ter dado umas vinte peças, representando sempre os principais papéis - seu Rei Lear arrebatou-me, fisgou-me no mundo que eu procurava. O final, com Cordélia nos braços, atingiu o sublime, arrasou-me, fui ao camarim para o abraçar. Precisamente para isto que eu emigrara, encontrava-me certo, encontrava o que queria. Estava feliz, a felicidade do contentamento, do homem que realiza em si uma obra de arte, efémera, mas verdadeira escultura que permanece. Lear actuava no mundo, a mensagem presente, o domínio da tragédia sem mácula. Por detrás da organização aparente dos Ingleses, vivia o caos da humanidade, o grito de sobrevivência, o andar para a frente nos domínios infinitos de um dia a dia que, à vista desarmada, era chocho, chato, insonso, mal condimentado, cerveja quente sem tempero, na decadência. Um mundo que tem o Shakespeare nunca está na decadência, esta a verdade que os meus conterrâneos vedavam no seu panorama míope. O Shakespeare puxava outros lá para longe, para fora do âmbito do jornal, das partidas e chegadas, das sessões solenes, da energia ociosa. Quem não tem um Shylock na família? Quem não tem um Iago? Quem não tem um Bruto? Quem não tem um Banquo? Quem não tem um Romeu?»


Egos

«As pessoas bem bem lá no fundo são todas uns mundos que passeiam em órbita sem quererem instintivamente tocar nas outras. Têm de respeitar-se as regras de trânsito, como nos jogos, ao menos isso, estabelecer leis, codificar a natureza rebelde, implacavelmente viva na luta» [Ruben A., «O mundo à minha procura», III vol, p.48]