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domingo, 18 de fevereiro de 2024

(...) um jardim quase perfeito. (...)

“O Alfarrabista de Ponta Delgada” é uma narrativa construída a duas vozes em geografias e tempos diferentes.


«(…) Provocava-o: Porque não voas, Avelino? Aproximava-me, quase corpo a corpo, quando ele levantava a cabeça, dava-lhe um beijo. A ternura atarantava-o. Já longe, voltava-me, e via o meu amado a seguir-me com os olhos verdes, muito verdes, como os campos de Busteliberne. As mãos em concha ao redor da boca, para a palavras não se perderem no destino, gritava: “Voa Avelino. Voa para dentro do meu coração.” Um amor juvenil, doce, na extraordinária primavera, que tudo aviva, até as pedras da serra pareciam felizes no seu silêncio comunicante. (…)»


«(…) O Vento. Quem educa o vento terá um jardim quase perfeito. Educar não significa barrar-lhe o voo, uma sebe de pau branco ou louro açoriano resolveria o problema. Educar o vento é deixá-lo circular, limpo de bravuras, melodioso como um rouxinol. Trabalhando-o, ele ficará uma espécie de música. Falei uma vez do cultivo do vento ao proprietário do jardim, numa das suas passagens por S. Miguel, vindo de Paris. “Para poeta, basta-me o meu Camões”, disse.» (…)


«(…) Hei de voltar a esse sítio, quase mágico, onde julguei ser feliz, como se a juventude fosse infinita, onde beijei o único homem da minha vida. Eu não me casaria com o Avelino. Ele primeiro que eu, pressentiu: o nosso amor era como uma rabanada de vento, um capricho de Laurinha em tempo de férias. Por isso com a serenidade de quem escuta as penedias, disse para eu não voltar a procurá-lo. Nesse dia, Avelino olhou-me bem nos olhos, como se quisesse guardar a minha imagem no coração, e seguiu a falar ao rebanho e ao cão sem olhar para trás, sem nunca olhar para trás. (…)»


«Brown, meu bom amigo, não deixes cair os sonhos, mesmo que a teus pés a terra pareça fértil. Um jardineiro destituído de utopias desmerece a amizade das árvores, o canto dos pássaros sobre a manhã.»


Francisco Duarte Mangas brinda-nos com este romance que é, antes e depois de tudo, uma narrativa de singular beleza, mas também uma obra literária comprometida com as mulheres e homens de um país por construir. 


terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

“O cheiro da tinta acalma-me,” …

 

“A Força das Sentenças” retrata uma dura realidade que afeta um número significativo de cidadãos e famílias. 

Este premiado romance de Pedro Almeida Maia, tendo como tema uma situação de doença irreversível não é, contudo, uma narrativa misericordiosa, poderá ser esclarecedora e até didática para quem cuida (família ou instituições), mas não assume, em momento algum, um caráter de comiseração nem induz, outros sentimentos, que não sejam de respeito por quem é vítima da doença e por quem cuida. 

A narrativa é crua e dura sem ser indiferente ao drama que se abateu sobre um reformado professor e homem de Letras que continua a escrever como terapia para retardar a evolução da doença.

“(…) Não faço a mínima ideia do porquê de estar aqui a sangrar letras, números e símbolos, só sei que ajuda. A mente deixa de mentir e o pânico descruza os braços, à procura da próxima vítima. Deixá-lo ir! (…)”

“(…) O cheiro da tinta acalma-me, o som da esfera a escorregar seduz-me, a imagem desta imensidão da folha vicia-me. E enquanto as linhas deslizam e se cruzam e se tocam e se beijam e se amam e se orgasmam, eu vivo mais um pouco. (…)”

A estrutura e a construção narrativa aliciam e a leitura flui como um rio para a foz.

“(…) A nossa mente não sabe o que é a felicidade, nem sequer do que necessitamos para ser felizes. É um estado de graça que só reconhecemos quando o habitamos. (…)”

Pedro Almeida Maia tinha este tesouro guardado, mas em boa hora lhe deu uso público.

Os leitores agradecem.


Aníbal C. Pires, Arranhó, 13 de fevereiro de 2024


domingo, 15 de janeiro de 2023

breve registo sobre “O Quarto do Pai”

Maria Brandão - Imagem surripiada da página da própria 
Acompanho a escrita da Maria Brandão desde o tempo em que os blogues ganharam importância e projeção. O blogue da Maria Brandão era uma das minhas referências e seguia-o atentamente. Não conhecia a Maria, mas interagia virtualmente com ela. A sua escrita, talvez por ter uma não sei quê de provocatório, sempre me empolgou. 

Li todos os livros que já publicou e sobre eles tenho grafado sempre algumas notas. Terminei há uns dias a leitura da sua última publicação, “O Quarto do Pai”, e, não resisto a escrever algumas e simples palavras sobre este seu último trabalho literário.

O tema que dá mote à narrativa é de uma pungente atualidade, mas não é de fácil abordagem. As sociedades ocidentais estão a envelhecer, o envelhecimento e tudo o que isso carrega para quem vive as maleitas da velhice, mas também para os familiares próximos que acompanham o processo.

A estória de um debilitado e dependente octogenário é construída com realismo e a gravidade que caraterizam a situação, mas a autora não abdica de lhe introduzir um humor subtil que estimula o leitor e, confere à narrativa a necessária leveza conciliadora com o dramatismo da dependência no envelhecimento e as memórias do tempo em que o corpo a tudo dava resposta.

A sua leitura é aconselhável.

Maria Brandão, O Quarto do Pai, Lajes do Pico, Companhia das Ilhas, 2022

Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 15 de janeiro de 2023


domingo, 8 de janeiro de 2023

territórios literários

imagem retirada da internet

(…) a poesia é, direi eu, o seu território literário (…), a afirmação é minha e foi feita durante a apresentação de um dos romances de Henrique Levy, quando me referia à sua vasta obra poética e ficcional.

Li, por estes dias, a última obra de ficção de Henrique Levy “Vinte e sete cartas de Artemísia”. Para além de outras apreciações que possa vir fazer, há uma que não posso deixar de partilhar já, este romance é, de toda a obra publicada pelo autor, a que mais me tocou. Estes são os mais sublimes e poéticos textos que, em minha opinião, o Henrique já publicou.

Tratando-se de ficção pode-se perguntar: Então e onde fica a tal afirmação (…) a poesia é, direi eu, o seu território literário (…)!? E eu direi que as “Vinte sete cartas de Artemísia” têm uma dimensão poética que em nada abala o que afirmei, o território literário do Henrique Levy é, continua a ser: a poesia.





As “Vinte sete cartas de Artemísia” são, no seu conjunto, o mais belo poema construído pelo Henrique Levy.

Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 6 de janeiro de 2023


sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Henrique Levy vence o Prémio Literário Natália Correia, edição de 2022

Henrique Levy - imagem retirada da internet
Hoje, durante a tarde, foi anunciado o vencedor do Prémio Literário Natália Correia.

O premiado foi o poeta e romancista Henrique Levy.

Sobre a obra literária deste escritor nada vou acrescentar, ficam apenas os meus parabéns ao Henrique Levy pelo prémio que o júri lhe atribuiu por unanimidade, mas deixo também um excerto da nota de imprensa divulgada pelo júri no site da Câmara Municipal de Ponta Delgada e que acompanhou a divulgação do vencedor do prémio em 2022.


(...) "A escrita, poderosa em densidade e originalidade, revela, finalmente, uma voz consanguínea de Natália Correia. Não só pelo húmus açoriano que a percorre sem que se perca a ligação comunicante com o sentir e viver nacionais, como também pelo apelo universal de liberdade, corre, quente e frondoso, nas suas páginas desabrigadas, um espírito revolucionário, indomável, feito de coragem e de amor." (...)


Imagem retirada da internet


O texto do júri que acompanha o anúncio o vencedor do prémio literário Natália Correia, em 2022, pode ser lido integralmente aqui 


domingo, 14 de agosto de 2022

um olhar sobre “A Escrava Açoriana”

foto by Aníbal C. Pires

O mais recente romance de Pedro Almeida Maia aborda, desta vez no feminino, a temática da emigração açoriana. Depois de “Ilha-América”, eis que o autor nos oferta “A Escrava Açoriana”.

É com a jovem e irreverente Rosário que calcorreamos as ruas de Ponta Delgada nos finais do século XIX e com ela embarcamos, clandestinamente, no Lidador rumo ao sonho na margem Sul deste Atlântico que nos aprisiona, mas também nos liberta. Sonho que nem sempre é prazeroso, quantas e quantas vezes os percursos migratórios se transformam em pesadelos.

Com a Rosário vivemos num “cortiço” do Rio de Janeiro, com ela somos escravos numa plantação de café, com ela passamos a servir na “casa grande”, com ela nos libertamos do sonho vendido por um engajador e, com ela regressamos a S. Miguel para, de novo, ouvir o “pio do milhafre”.


Pedro Almeida Maia - imagem retirada da internet
Pedro Almeida Maia com a sua escrita escorreita e aliciante traz-nos a estória de um percurso migratório com regresso, mas sem sucesso material. Um percurso de enganos, abusos, escravidão, desumanidade, mas também de humanidade. A jovem Rosário não cumpriu nenhum dos sonhos que motivaram a sua viagem, mas regressou indelevelmente marcada pela sua estadia em terras de Vera Cruz.

Rosário não fez fortuna, não trazia bens materiais, mas carregava consigo, ao desembarcar em Ponta Delgada, a preciosa bagagem que a transformou numa ativista pelos direitos das mulheres e da República. A rebeldia e a irreverência da jovem Rosário transformaram-se em consciência, ação e luta.

Esta é uma estória de mulher que se libertou do sufoco do capote e capelo, como soube livrar-se das amarras da prostituição, da escravidão e da servidão aos homens.

Rosário regressou, talvez numa sexta-feira que é, como sabemos, quando “a vida começa”, para ouvir o “pio do milhafre” e fazer ouvir a sua voz.

Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 14 de agosto de 2022


domingo, 25 de abril de 2021

leitura para gente madura e despida de preconceitos




Apresentação do livro

Memórias de Madre Aliviada da Cruz, 

Henrique Levy, Letras Lavadas, 2021“

Às 18h Açores, 19h Lisboa, de 25 de abril de 2021, 

live streaming no Facebook e no Youtube da Letras Lavadas





(…) pensada por homens e destinada a mulheres (…)

Henrique Levy


Leitura para gente madura e despida de preconceitos

Quero antes de mais, agradecer o convite do autor para apresentar o seu mais recente romance, agradeço também à Editora e Livraria Letras Lavadas o acolhimento desta iniciativa e a disponibilidade deste espaço virtual para partilhar com os leitores uma leitura, a minha leitura, destas memórias.

Ainda antes de vos falar de Madre Aliviada da Cruz julgo ser importante fazer menção ao Henrique Levy e à sua, já vasta, obra poética e ficcional.

o autor e a obra

Henrique Levy, poeta e romancista, é portador de uma identidade com várias pertenças. Cidadão português, nascido em Lisboa, com nacionalidade cabo-verdiana. Viveu em diversos países da Europa, Ásia, África e América. Reside, por opção, na ilha de S. Miguel. É autor de cinco romances: Cisne de África, 2009; Praia Lisboa, 2010; Maria Bettencourt Diários de Uma Mulher Singular, 2019; Segredo da Visita Régia aos Açores, 2020; e o novel Memórias de Madre Aliviada da Cruz, 2021.

O Henrique é também autor de seis livros de poesia, aliás a poesia é, direi eu, o seu território literário de eleição. São os seguintes os títulos de poesia publicados: Mãos Navegadas, 1999; Intensidades, 2001; O Silêncios das Almas, 2015; Noivos do Mar, 2017; O Rapaz de Lilás, 2018; Sensinatos, 2019. 

Editou em coautoria com Ângela Almeida, em 2020, o livro de poemas Estado de Emergência.

Editou e anotou A Sibylla Versos Philosophicos, 2020, de Marianna Belmira de Andrade, cuja primeira edição data de 1884.

O Henrique Levy é coordenador da editora açoriana Nona Poesia.

Deixei esta nota sobre o autor, embora tenha consciência de que o autor das Memórias de Madre Aliviada da Cruz é sobejamente conhecido nos meios literários, mas, ainda assim, julgo ser relevante esta informação.

o primeiro registo

Quando finalizei a leitura das memórias da longeva Madre Aliviada da Cruz publiquei nas redes sociais, como faço habitualmente, uma foto da capa com a seguinte legenda: uma sugestão de leitura para gente madura e despida de preconceitos. E assim é como tentarei explicitar, mas antes gostaria de olhar para a capa que, como todos sabemos, é um elemento importante do livro. 

a capa 

foto by Madalena Pires
E esta é, diria, uma capa muito bem conseguida que nos remete para um ambiente monástico, recatado e bucólico tão adequado a quem se dedica a escrever, sejam memórias, ou não. A mancha do lettring remete-nos para outras épocas, embora como poderão, depois, constatar as memórias foram escritas, pela própria Aliviada da Cruz, em maio de 2020, a cor também não será, de todo, inócua pois, a sua proximidade com uma das cores do Vaticano é uma evidência. Nada ficou ao acaso, nem mesmo o pequeno círculo, no canto superior direito, bordeado a vermelho e onde se pode ler: “aconselhável a mais de 18”, ou seja, este será um livro para gente adulta. 

Eu direi que este livro, independentemente da idade cronológica dos leitores, se destina a pessoas que tenham estórias de vida e, a maturidade que só essas estórias lhes pode conferir, por outro lado, e como já referi, para esta ficção de Henrique Levy é, também, aconselhada uma abordagem despida de preconceitos, ou seja, não será uma leitura para todas as almas, mas estou certo agradará a muitas mais.


as memórias – uma breve abordagem

Madre Aliviada da Cruz relata-nos, na primeira pessoa, as suas memórias ainda que tenha obliterado, por opção sua, um período da sua vida partilhada com Constança, ou melhor com Cacilda este sim o verdadeiro nome de uma santomense que veio servir para Lisboa, em casa dos tios de Madre Aliviada da Cruz.

Bento de Castro, Virgulino, Madre Benedita da Cruz e, mais tarde, Madre Aliviada da Cruz, estes são os nomes pelos quais, Benedita de Portugal e Castro, assim é o seu nome de batismo, foi conhecida em diferentes momentos da sua longa vida, alguns por opção, outros fruto da necessidade que a sua atribulada existência lhe impôs.

Já me referi, por mais de uma vez, à longevidade de Madre Aliviada da Cruz, importa, por isso, dizer as suas memórias atravessam o século XIX, o século XX e são escritas, pela própria, em maio de 2020.

O registo das memórias de Bendita de Portugal e Castro não obedece a uma ordem cronológica mais se parecem como a escrita de uma partitura, como a própria justifica: “(…) Optei por fazer seguir o ritmo destas Memórias como quem escreve uma partitura. (…)”. Esta escolha de Madre Aliviada da Cruz em nada prejudica a leitura e a compreensão, fiquem os leitores descansados, e tem uma justificação. Benedita de Portugal e Castro tem uma sólida formação humanística onde a música tem um papel importante como se verá quando, no Convento de Santo André, em Vila Franca do Campo, propõe a criação de um Orquestra de Câmara composta por algumas das freiras em clausura.

Não vou tirar, aos potenciais leitores, o prazer de página a página, irem descobrindo esta inspiradora mulher. Mulher e religiosa que se eleva para o seu Deus através da sexualidade:“(…) As línguas humanas não encontraram nem sintaxe nem léxico para comunicar a relação das mulheres com o divino através do orgasmo. (…)”, ou “(…) nesta mulher destinada a encontrar no amor-dos-homens a consagração ao divino (…), mas também uma mulher libertária para alguns, proscrita para outros, pelo entendimento que tem dos ensinamentos de Cristo e que, em sua opinião, contrariam as práticas da sua igreja. Como quando se refere às contradições que encontra entre o que Jesus pregou e uma prática religiosa ao serviço dos poderosos. Esta nobre, duquesa, marquesa e duas vezes condessa, ao dirigir-se ao povo no dia em é empossada destes títulos nobiliárquicos e dá início a uma revolta dos trabalhadores da terra contra os proprietários que os exploram e animalizam, afirma o seguinte: “(…) Os senhores das terras, apoiados pela hierarquia da Igreja Católica, pressagiam ser a pobreza consequência do pecado e, nesse sentido, castigo de Deus. O objetivo é claro! Continuarem a explorar-vos, meus sagrados irmãos em Jesus Cristo. (…).

Este novo livro de Henrique Levy, se dúvidas tivesse, confirma o autor como um escritor de causas e, claramente, um homem de convicções, mas também um profundo conhecedor da sociedade em que vive, não só a sociedade açoriana, em particular a de S. Miguel, mas a sociedade global.

As mulheres e as suas lutas contra a misoginia e a sociedade patriarcal continuam a ser o objeto da sua intervenção literária, intervenção sim, escolhi a palavra. Henrique Levy dá um propósito interventivo á sua ficção. Diria, como Henry Miller: “If you can’t make words fuck, don’t masturbate them”, assim é, na minha opinião, a escrita de Henrique Levy, as palavras atingem o âmago, não escorrem por entre os dedos das mãos que folheiam as páginas dos seus livros.

Mas se o Henrique é um escritor que dá propósito à sua obra ficcional, e também um autor que domina a linguagem com uma mestria invejável, seja a linguagem popular, sejam os códigos mais eruditos.

Como exemplos deixo-vos algumas passagens que, procurarei não contrariem a promessa que há pouco vos fiz, ou seja, não vos retirar o prazer da descoberta destas Memórias, assim e para ilustrar o que atrás ficou dito sobre o estilo, a criatividade e o domínio da língua portuguesa, leio-vos estes excertos das Memórias de Madre Aliviada da Cruz:

(…) A sala de música pareceu pequena para o arredondado silêncio que a percorreu (…)

(…) Escusado será dizer que nessa noite me senti como Deus. Escrevi direito por linhas tortas. Os leitores que me perdoem, se este texto vos parecer um enviesado. É o que dá, escrever como Deus. (…)

(…) Misturávamos as línguas e a saliva com o mesmo ímpeto com que se amassa o pão. (…)

(…) A madre meteu esse homem na conversa e eu fiquei baratinada. Mas que homem, Diabo-a-Sete!? Que homem! Mulher de Deus! Esse tal Advérbio (…)

(…) Juro não mais pronunciar o nome desse tal seu eleito e, quem sabe, para sempre amado, senhor Advérbio (…)

(…) Daí ter-me entregado à clausura monástica feminina, pensada por homens e destinada a mulheres. (…)

(…) Vestia um luto que de tão negro era assustador. Não lembrava uma andorinha. As andorinhas são leves, frágeis e esvoaçantes. Minha mãe era pesada, nunca levantando voo. Assemelhava-se mais a uma panela bojuda, assente na trempe da cozinha, tisnada pelo fogo. (…)

Estes pequenos excertos exemplificam, em minha opinião, a dimensão literária deste novo romance de Henrique Levy. Livro sobre o qual muito mais virá a ser dito por quem, devidamente qualificado, venha a avaliá-lo através de recensões e ensaios de crítica literária, por mim sempre direi, como já o fiz em outras ocasiões que: a prosa literária de Henrique Levy é surpreendentemente provocadora e a sua leitura um prazer indizível.

Para terminar apenas mais duas breves notas. 

Estas memórias estão depositadas, segundo nos diz Benedita de Portugal e Castro, na Biblioteca Pública e Arquivo Histórico de Ponta Delgada dando até a referência à cota para mais fácil pesquisa.

Pode, ainda, o leitor endereçar correspondência a Madre Aliviada da Cruz pois encontrará no livro o endereço para tal. Se o fizer espero que venha a ter a sua resposta.

Obrigado pela Vossa atenção!

Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 25 de Abril de 2021


sábado, 9 de janeiro de 2021

Segredo da Visita Régia aos Açores, de Henrique Levy


Texto que serviu de base à apresentação do livro:

SEGREDO DA VISITA RÉGIA AOS AÇORES, Henrique Levy(*), Plátano Editora, 2020“

20h Açores, 21 h Lisboa, de 7 de janeiro de 2021 

live streaming no Facebook e no Youtube da Plátano Editora

Quero, antes de mais, agradecer ao Henrique Levy o convite para fazer a apresentação pública do seu mais recente romance, Segredo da Visita Régia aos Açores. Agradeço, também, à Plátano Editora que nos proporciona a plataforma virtual para esta informal troca de impressões. Não será uma apresentação nos moldes habituais, os tempos ditam que nos adaptemos e, como tal, também o formato desta apresentação será adequada ao suporte de comunicação que estamos a utilizar.

Agradeço e desejo que estes momentos sejam do agrado de quem acompanha este live streaming. Espero que não deem o vosso tempo por mal empregue e, sobretudo, que esta conversa possa vir a despertar interesse na leitura deste novo livro de Henrique Levy e, quiçá por toda a sua obra literária.

Ainda antes de deixar algumas notas sobre o Segredo da Visita Régia aos Açores quero deixar uma declaração de princípio: Não sou um especialista em literatura, sou tão-somente um leitor, nada mais do que um leitor que, de vez em quando, torna pública a sua opinião sobre alguns dos livros que lê. Dito isto, não esperem uma análise de critica literária, o que por mim ficar dito é apenas a opinião de um cidadão que gosta de ler e que acompanha a atividade editorial nacional, em particular o que se vai fazendo, e não é pouco, nos Açores. Entenda-se a atividade editorial dos autores açorianos, como é o caso do Henrique Levy.

O Segredo da Visita Régia aos Açores é uma narrativa minuciosa e aliciante que retrata um tempo histórico atribulado, o limiar do século XX português, visto pelo olhar de uma jovem mulher que, por via do seu casamento com um par do reino integra a comitiva régia na visita à Madeira e aos Açores.

O novo romance de Henrique Levy tem, uma vez mais, uma mulher como narradora, mas também como figura central desta estória.

O Henrique pelas “palavras” desta mulher, de quem nem sequer viremos a saber o nome, brinda-nos com uma prosa elegante, mas plena de intenção. Pode constatar-se ao longo do livro, mas deixo esta citação (pp 30 e 31) para ilustrar o que acabo de dizer: “(…) Nunca, como naquele dia, havia reparado na quantidade de crianças subnutridas que proliferavam pela cidade, nos velhos miseráveis sentados de mão estendida nas esquinas das ruas, nas jovens varinas descalças com um rancho de filhos ranhosos à cintura, nos rostos esfaimados dos explorados operários, nos tisnados vendedores de carvão e limpa-chaminés, nas carroças de ciganos, no chiar dos choras puxados por mulas esquálidas. (…)”, ou ainda, “(…) Nesta cidade, que se diz capital de um império, nem todos têm água canalizada, obrigando-se muitos a mergulhar no tejo para o banho semanal. Está imunda. As doenças proliferam, e são poucos os cuidados de saúde com os mais pobres, os excluídos pela sociedade na qual me incluo em lugar cimeiro. Este pensamento envergonhou-me como mulher e portuguesa. Durante algum tempo tentei afastá-lo, arrumá-lo escondido num lugar que não afetasse o meu quotidiano burguês. (…)”, ou seja, o autor, não se circunscreve aos salões da aristocracia e vem para a rua para nos dar conta de uma outra realidade. Realidade que envergonhou a narradora. Realidade que não sendo central no desenrolar da estória e, como tal, dispensável, o autor quis dar-lhe visibilidade, ou seja, é o autor a dar um propósito à sua prosa.

Neste romance Henrique Levy continua a brindar-nos com uma prosa meticulosa, aliciante e envolvente onde o papel da mulher é valorizado, ainda que a narrativa se refira a um tempo histórico em que o papel da mulher era secundarizado e as mulheres estavam desprovidas de direitos cívicos e políticos. O pai da narradora, um proprietário agrícola do Alentejo, traduz bem o pensamento dominante à época, quando se dirige às filhas, a propósito da sua formação e instrução, nestes termos: “(…) Uma casa de mulheres instruídas é pior que uma república! (…)”. 

Um dos momentos mais desafiantes desta meticulosa narrativa será a profunda e filosófica reflexão da mulher que regressa sozinha a Lisboa depois do drama que se abateu sobre ela em Ponta Delgada. E da qual vos deixo estas passagens: “(…) Sou mulher, esta condição toca as asserções de várias fantasias e certezas, aos homens incompreensíveis. Nós distinguimo-nos pela constância dos sentimentos. Pelo surgimento de realidades míticas próprias. Pela turbulência a regular desejos calados, aniquilados pela sociedade masculina que nos disciplina atitudes, pensamentos e forma de amar. (…), ou ainda: “(…) Desde jovem apercebi-me do poder que a sociedade conferiu ao homem e da vida subjugada das mulheres. Não fomos nós, mulheres, quem forjou esse poder Ele tem vindo a ser-nos imposto, sem deixar expressar outras vontades. Os homens parecem estar tão inseguros do seu poder que temem a vida em plenitude de uma mulher sem homem. Para mim, por nada ter que me oponha ao masculino, essa é a maior de todas as virtudes (…)”. 

São assim as mulheres de Henrique Levy: fortes, determinadas, esclarecidas e independentes, sem que essas qualidades femininas, tal como ficou dito pela narradora desta estória, se constituam com base numa opção de ordem sexual.

Este romance, como todos os romances do autor, não deixa de aflorar a sexualidade e o erotismo. Veja-se logo na pp 8, “(…) Esse jovem mancebo, moço de estrebaria, era mais atraente do que um precipício numa tarde de vertigens. (…)”. Sem vulgarizar nem chocar as almas mais suscetíveis, Henrique Levy descreve algumas cenas da intimidade da narradora com a mestria que nos tem vindo a habituar, veja-se a pp 45: “(…) Vem, senta-te na cama, afasta as pernas. Ordenei, enquanto lhe despia as calças. Ignorava se conseguiria realizar o que alvitrara. Acrescentando com voz meiga. Verás que observar as estrelas no firmamento não será comparável à viagem que te proponho inaugurar. Prometi. (…)”

A prosa literária de Henrique Levy é surpreendentemente provocadora e a sua leitura um prazer indizível.

Quanto ao segredo que dá mote ao romance, por respeito aos potenciais leitores, não será por mim desvendado.

Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 7 de janeiro de 2021


(*) Henrique Levy

Poeta e romancista, é portador de uma identidade com várias pertenças. Cidadão português, nascido em Lisboa, com nacionalidade cabo-verdiana. Viveu em diversos países da Europa, Ásia, África e América. Reside, por opção, na ilha de S. Miguel. É autor de três romances, Cisne de África (2009), Praia Lisboa (2010), Maria Bettencourt – Diários de Uma Mulher Singular (2019), e de seis livros de poesia, Mãos Navegadas (1999), Intensidades (2001), O silêncio das almas (2015), Noivos do Mar (2017), O Rapaz de Lilás (2018), Sensinatos (2019). Editou em coautoria com Ângela Almeida, em 2020, o livro de poemas Estado de Emergência. Editou e anotou A Sibylla – Versos Philosophicos, 2020, de Mariana Belmira de Andrade, cuja primeira edição data de 1884.

Tem vários poemas dispersos por diferentes Antologias, sendo, também coordenador da editora açoriana Nona Poesia.


domingo, 22 de novembro de 2020

Há um ano. Contos Bizarros, de João Pedro Porto

 

Escrita incomum, Leitura estimulante (*)

Antes de vos falar do livro e do autor, razão maior que nos mobilizou para, nesta tarde quase noite, nos juntarmos neste espaço que, sendo novo, é um lugar recuperado à nossa memória coletiva, permitam-me algumas palavras de agradecimento.

E agradeço, desde logo, a Vossa presença. Presença sem a qual pouco sentido faria este momento. Os livros cumprem a sua finalidade por via dos leitores e, neste caso, os leitores não faltaram à chamada.

Estamos num lugar de livros, de leitores, de escritores, de editores e livreiros e, por isso, quero deixar um agradecimento, na pessoa do Senhor Ernesto Resendes, ao Grupo Publiçor/Nova Gráfica/editora LetrasLAVAdas que hoje inaugura oficialmente  esta livraria, num espaço retomado para o presente da cidade de Ponta Delgada e que, permitam-me a ousadia, é um contributo para nos devolver a alma da cidade. Não só, mas também por isso, fica o meu reconhecimento público à LetrasLAVAdas.

Ao João Pedro Porto, não sei se agradeça o convite para esta empreitada, afinal eu gosto muito mais de estar do Outro Lado, gosto muito mais de ouvir do que falar. Mas sim, agradeço convicta e sinceramente o convite do João Pedro para fazer, em partilha com a Leonor Sampaio, a apresentação pública do seu livro Contos Bizarros

Convite que me surpreendeu, mas que me muito me honra e ao qual acedi sem reservas, mas com a consciência de que pendia sobre mim uma enorme responsabilidade. Ainda assim aceitei o desafio pois, não sou pessoa de recuar perante os reptos que me colocam, sejam eles de que natureza forem.

O João Pedro Porto e a sua obra não necessitam de apresentações, contudo, não posso deixar de referir que este jovem escritor, sendo micaelense de nascimento, é antes de mais e depois de tudo um autor do Mundo, com vasta obra já publicada. Este é o seu sétimo título, e é tido no contexto nacional como um dos autores de referência da nova geração de escritores portugueses. 

O João Pedro tem quatro romances publicados. O Rochedo que Chorou, 2011, O 2egundo M1nuto, 2012, Porta Azul para Macau, 2014, A Brecha, 2017.

O João Pedro publica agora o seu terceiro livro de contos, para trás ficam O Homem da Mansarda, 2014, e Fruta do Chão, 2018, este último em versão bilingue, traduzido para o espanhol por Blanca Martin-Calero. Mas as experiências literárias do João Pedro não se ficam por aqui, são, também, suas as letras dos álbuns musicais Terra do Corpo e Sol de Março, de Medeiros e Lucas. A produção literária do João Pedro Porto não se esgota apenas nos seus títulos, mas avancemos.

O seu último romance A Brecha, de 2017, foi finalista do Prémio Casino da Póvoa, Correntes d'Escritas. O blogue literário “Somos Livros”, referencia João Pedro Porto como um dos cinco autores portugueses a conhecer, sobre João Pedro e o seu último romance disse Valter Hugo Mãe: “Reverberam séculos nas suas construções. Um invasor absoluto, um denunciador. João Pedro Porto é cénico, performativo, esdrúxulo, temperamental, mas sem arrogância. Apenas luxuoso, desse luxo de poder fazer.”

Também por cá foram produzidas algumas opiniões sobre o último romance de João Pedro Porto de entre as quais destaco o magnífico texto de Leonardo Sousa, “Atrelai o pensamento à popa destes navios – uma abordagem ao universo d’A Brecha”, publicado no blogue “um elefante na loja de cerâmica”.

E foi com a Brecha, ainda antes dos concursos e das opiniões oriundas dos meios literários regionais e nacionais que conheci o João Pedro Porto escritor e cidadão, ou seja, esta é uma relação que nasceu da leitura do seu último romance. Foi o gosto pela leitura e pela escrita que nos aproximou. Essa será, quem sabe, a razão pela qual estou aqui para vos apresentar Contos Bizarros.

Mas, ainda antes de vos falar destes contos, e assim como uma espécie de aperitivo, permitam-me citar A Brecha e Fruta do Chão para se perceber de que escrita laboriosa e densa, mas encantadora, estamos a falar.

(…) A terra terá sido sempre lida com as páginas e as cabeças erigidas a Norte, salvo pelos povos da meia-lua. Desse Norte se disse, por anos, ser o hemisfério superior, que é como quem diz: de superior condição. O Sul será sempre algo selvático, onde se dançam os tangos e se matam os homens por ninharias. A futilidade é mortal, no Sul. Será por isso que lá vamos. Não há banalidade no Sul. Se o mistério tiver esconderijo, esse será sempre austral. Até o órgão mais carnal e o pórtico mais recôncavo de todo o éden moram no lugar sulino do corpo dos homens e das mulheres. (…)

Dirão que bem podia ser dito de uma outra e simples forma. Sim podia, mas, para nosso deleite, a linearidade não é uma caraterística da escrita de João Pedro Porto.

A propósito deste trecho de A Brecha, do qual gosto particularmente, acrescento da minha lavra: O meu Norte é o Sul. 

Fica um outro fragmento da escrita de João Pedro, agora de um dos contos de Fruta do Chão.

(…) A filha da lavadeira, essa, era cereja-brava, embrulhada em alfazema. Dançavam-lhe as bordas da saia num vento que não fazia. Parei de olhar sem modéstia nem tempo. Ela olhou também, e sorriu vermelha. Como uma cereja, pensei, e olhei mais um pouco. Oh quantas glórias trocariam beligerantes guerreiros por uma vida de alfazema. (…)

Há, certamente, muitas formas de descrever e cantar o balancear do corpo feminino. Vinicius de Moraes aborda esse balancear na conhecida canção A Garota de Ipanema quando diz: “(…) o seu balançado é mais que um poema (…)”, mas João Pedro Porto fá-lo de um jeito inigualável e sem recurso à utilização de uma referência, que seja, à anatomia feminina, e recordo: 

(…) Dançavam-lhe as bordas da saia num vento que não fazia (…). Esta é uma escrita que não está ao alcance de todos. Valter Hugo Mãe tem razão quando afirma que o João Pedro Porto é: (…) “cénico, performativo, esdrúxulo, temperamental, mas sem arrogância. Apenas luxuoso, desse luxo de poder fazer.” (…).

Depois desta breve introdução à escrita de João Pedro Porto vamos então ao que nos traz e junta aqui, os Contos Bizarros.

Este livro tem algumas peculiaridades que importa, antes de mais, referir. 

É uma edição bilingue, mas não tem tradutor. Pois é, o João Pedro Porto escreveu, também, em inglês. Não faço outras considerações sobre esta, julgo que, invulgaridade pois, para isso temos aqui a Leonor Sampaio. Mas sempre direi que este é um ato de coragem, quer do autor, quer do editor.

A ilustração da capa é do João Pedro Porto.

Estes dois aspetos de pormenor dizem, só por si, muito do espírito inquieto, culto, criativo e corajoso deste miúdo, sim um miúdo de 35 anos, que hoje partilha connosco os seus Contos Bizarros.

À semelhança dos que o precederam, também, este livro necessita de tempo. Estes contos não são para leitores apressados, cada uma das onze estórias que o compõem são para ser saboreadas. Se preferem uma refeição rápida então peguem num policial, se pelo contrário se deleitam com um repasto de degustação, então leiam os Contos Bizarros

Não será a melhor abordagem para divulgar um produto!? Talvez não. Vivemos num tempo de pressas e de imediatismo e eu estou a pedir-vos tempo. Tempo que é o nosso bem mais precioso. Mas é por isso, por o tempo ser escasso e precioso que não o devemos desperdiçar com o lixo mediático e virtual descartável, mas que degrada, tal como a fast food danifica o nosso equilíbrio fisiológico. Regressemos, pois, à dieta mediterrânica que é como quem diz: à literatura, ao pensamento crítico e ao equilíbrio entre a razão e a emoção.

Quando acabei a leitura de Contos Bizarros publiquei, em diferentes redes sociais, uma foto da capa com a seguinte legenda: Escrita incomum, Leitura estimulante. E assim é a escrita de João Pedro Porto, diria que esta forma de escrever, goste-se ou não, é um ato de rebeldia que poderá afrontar os clássicos cânones literários, E eu gosto, e admiro, quem não se resigna.

Uma outra ideia que retive foi a de que, neste como em outros livros, o autor utiliza uma criativa paleta de cores para construir ambientes. Eu diria, se me permitem, que estes contos são, também, uma construtiva orgia cromática, vejamos: cor de cimboa, avioletada, azul prussiano, um turquesa, e o outro de areia-molhada-a-seca, azul meia noite, hialinos e esbranquiçados, cabelos cor de vime ratã, azul cobalto a caribenho, veneno e morte anil, fato pardo a gris, caravelas garrafa-azul, avermelhar a cor lívida da morte, um mar malhado de céu, cor de cardo, exangue e alabastrino, cor de gamboge-a-tangelo-vivo, um céu daquele azul que não faz fronteira com o mar. 

Estas são algumas das cores dos Contos Bizarros, outras há, sendo que os gradientes de azul são criativamente infindáveis.

Estes contos, não sendo só, são estórias que se aproximam muito de notas autobiográficas. Se em todas as narrativas e em todas as geografias se pode encontrar muito do que foi, e é, o seu autor, nestes contos deparamos com o João Pedro ao virar de cada página. Nem sempre será fácil encontrá-lo, mas ele está por aqui, nestas páginas, ou pelo menos um pouco de si. O que já é muito. Nem todos os escritores, aos 35 anos terão coragem para se desnudar perante os seus leitores.

O primeiro dos contos, a Torre de Palha, tem um protagonista. Um daqueles seres que não encaixa no padrão com que os Homens costumam categorizar tudo, e todos. Catalogação que está na origem dos muitos males que se perpetuaram à sombra da medieva ignorância e da pós-moderna estupidificação global.

Anton Moller assim se chama o jovem que tinha “sede por torcer o pescoço ao mundo”, ia a Sorenga pelas madrugadas sublimar a “dor jovem do desprezo” nadando nas águas frias do fiorde no estreito de Skagerrak, talvez assim como o equivalente ao nosso Pesqueiro.

Não vou dissecar, nem este, nem os restantes contos, isso seria retirar-vos um pouco do prazer da vossa leitura, mas Torre de Palha despertou o meu interesse particular pelo facto de se iniciar com a saída de um navio cargueiro do porto norueguês de Narvik que trazia no bojo minério e hulha, e, no convés o protagonista que viaja clandestinamente, com a cumplicidade do imediato do navio. Narvik fica no Noroeste da Noruega, no círculo polar ártico, e por aí se escoa o minério de ferro extraído nas minas suecas de Kiruna e Gallivare.

Mas se estes territórios são bem reais, outros como Halm destino temporário de Anton Moller, quer outras geografias, são lugares criados pelo autor, territórios imaginados e descritos, como se de lugares reais se tratassem para servirem o objeto de cada uma das estórias.

Os Contos Bizarros, não serão tão estranhos como título nos pode fazer crer. O nascimento, a infância e a juventude mais ou menos invulgar, a descoberta da leitura e as viagens que esse e outros novos nasceres nos permitem, que Oleandro Sandoz, faz e cito: “Montado no dorso dos verbos mais corridos. Aos ombros de adjetivos alados”. Ou a tentativa do médico legista de fugir à morte porque, e volto a socorrer-me das palavras do autor, “viver era a coisa mais importante das coisas importantes” e “demasiada morte estava a matá-lo”.

Mas Contos Bizarros também nos fala do drama dos escritores quando são atormentados por momentos de bloqueio criativo, ou como diz o autor “… um embargo da imaginação.” Não vai, caro leitor, encontrar a solução, porque receitas não existem, mas ficam muitas pistas para vencer o bloqueio, desde logo não desistir, lutar contra o embargo ainda que seja escrever às escuras, de costas ou com a mão esquerda. Fazer o pino pode ser uma hipótese, não muito aconselhável, está bom de ver, porque lhe farão falta as mãos.

O autor de uma forma mais ou menos explícita não deixa a sua ilha e cidade fora destes contos e surpreende-nos com a “crónica de um futuro ido” onde nos fala do passado, não muito distante. Mas também do presente e do futuro, assim, com esta formulação, e cito, 

“Se o presente já durava pouco, agora também o futuro é vivido com a urgência de o tornar passado”.

Sobre o “Guardador de Ondas”, pouco direi. Ou melhor direi muito utilizando, ainda que parcas, mas, eloquentes palavras do autor.

E cito da página 69, o parágrafo que encerra este conto: “(…) Como se recebesse uma visita que esperava há muito, o homem arregaçou o linho e roçou a face. Sentiu o pêlo do fim do dia. Abandonou Úrsula com um único beijo nas obras mortas. A grande alforreca estendeu-lhe os galhos venenosos. O velho também. E naquele abraço, a noite surgiu e o sol desceu também abaixo das ondas.”

Entenderão agora razão pela qual eu estava reticente em agradecer ao João Pedro o convite para apresentar este livro, ainda que partilhando essa responsabilidade com a Leonor Sampaio. O que é que eu, um leitor comum, é o que sou, nem mais nem menos, tem para dizer de um autor que trabalha a escrita como o artesão lapida a forma alotrópica do carbono até obter dele um diamante.

Que falar de um autor que escreve desta forma sublime!? Mas cá estou a fazer o melhor que posso, afinal não sou homem de voltar as costas aos amigos e, muito menos de fugir perante as dificuldades que a vida nos apresenta.

O medo da mudança no quotidiano pacato, mas qualitativamente bom e os erros que podem ser cometidos na luta contra as alterações ao nosso modo de vida. São, digo eu, o mote do conto “Águas Assopradas”.

Já alguma vez pensaram como se deitam os Canários. Como será!? E o que isso poderá ter a ver com a feira de livros de Calcutá, uma porta que não abria, mas que depois do canário se deitar facilmente se franqueou para a libertação de uma jovem aprisionada e dependente de um certo modo de vida e de pensar. É no bizarro conto “Como se deitam os Canários” que encontrarão as respostas, se é que o são, ou tudo não passará de um conjunto de evidências que por serem tão visíveis nem nos damos conta delas. 

A procura da eternidade, o fim da vida na terra, um pinhão que já foi um homem, mas que sendo agora um pinhão cumpre o seu fim, ou seja, e volto a utilizar as palavras do autor, “Todos os pinhões fazem propósito em ir longe, e chegar sem saber aonde.”

Não resisto, e devia fazê-lo, para não vos privar do prazer da descoberta, quando lerem, mas aqui vai o trecho que encerra o conto “A cintura de Vénus”, “Agora a esfera de Collodi roda na imensidão com a sua incessante barriga brunida. Aproxima-se de um Vénus solitário. E sonha com gente.”

E estamos a chegar ao fim. Contos Bizarros encerra com o Homem de Andas. Aqui o autor fala-nos de alguém que caminhava, desde que tinha adquirido a verticalidade, sobre umas andas que um tio, “amante de todos os cumes”, lhe fez em madeira de pau santo. Olhar de cima, para gente rasa que habitava o chão, Talvez. Talvez denote uma atitude de superioridade e distanciamento, um afrontamento. Mas não é assim que o entendo. Prefiro outra leitura deste conto e que poderei referir como olhar de um outro ponto de vista. Uma opinião que contraria o pensamento e a cultura dominante. Alguém a quem é pedida uma opinião alternativa, uma justificação do que não se entende, mas na qual se acredita piamente. É claro que o destino final do Homem de Andas, irá ser o mesmo de todos os Homens e Mulheres que ousam ser diferentes, a pira onde se queimam os que ousam.  

Para terminar e a propósito, mas também com um propósito, diria numa adaptação livre dos primeiros versos da canção Manifesto de Vítor Jara que rezam assim: 

Yo no canto por cantar/Ni por tener buena voz/Canto porque la guitarra/Tiene sentido y razón

Diria que, João Pedro Porto/não escreve por escrever/escreve porque a escrita/tem de ter sentido e razão.

E a produção literária de João Pedro Porto, para além de muitos outros atributos, tem sentido e tem razão.

Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 22 de Outubro de 2019

(*) texto que serviu de base à apresentação pública de Contos Bizarros/Odd Tales), de João Pedro Porto, na Livraria Letras LAVAdas, Ponta Delgada, 22 de Novembro de 2019.

terça-feira, 27 de outubro de 2020

pelo direito a sonhar - Ilha-América, de Almeida Maia

 


“(…) Passo a passo, começou a corrida, o chão da pista a desfilar debaixo dos pés, a respiração a fender o ar, o peito a transbordar bravura, como se preparasse um salto em comprimento. Pareceu-lhe ouvir Chuck Berry e as malhas de ‘Johnny B. Goode’. Tornou as passadas ainda mais lestas e sentiu o corpo a comover-se no sabor da liberdade. O mundo preparava-se para abrir-lhe os braços.

Go, Johnny, go, go!

Go, Johnny, go, go! (…)”

E assim tem início a aventura migratória de Mané.

Quando acabei a leitura de Ilha-América publiquei a minha opinião sobre o mais recente romance de Almeida Maia. Uma opinião de leitor, as apreciações de ordem literária ficam para quem tem, para isso, qualificações.

Partilho, de novo, as palavras que na espontaneidade do momento foram escritas e publicadas.

Para quem preferir ouvir e ver fica um vídeo no final da publicação.

Pelo direito a sonhar

Almeida Maia recupera para a nossa memória coletiva um passado não muito distante. Um passado de pobreza, de isolamento, de repressão, um passado que não devemos esquecer. E Ilha-América cumpre esse objetivo. A ficção também serve, e muito bem, para revisitar a história. 

Soube, ainda na década de 80 e após ter chegado aos Açores, do evento que está na base deste novo livro de Almeida Maia. Como passou a ser do meu conhecimento inferi que a história era do domínio público. Equivoquei-me.

Poucos conhecem o episódio da história da emigração ilegal açoriana que está na génese deste novo livro de Almeida Maia, e este, para além de outros, será um bom motivo para ler Ilha-América.

Quando iniciei a leitura, Aconteceu. Tinha consciência que seria, assim: empolgante. 

Li de um fôlego. Pela escrita, pela viagem a um passado recente (1960), pela descrição rigorosa dos aspetos do viver insular dos anos 50/60 do século XX, pela influência da presença de cidadãos estado-unidenses em Santa Maria, é na ilha de Gonçalo Velho que tudo começa, mas também da importância do Aeroporto Internacional de Santa Maria na travessia aérea do Atlântico Norte. Pela descrição da brutalidade dos métodos da PIDE e o horror dos seus calabouços. 

Em Ilha-América, Almeida Maia reabilita o direito a migrar rumo à utopia.

Aníbal C. Pires, Ponta Delgada, 14 de Outubro de 2020




segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Maria Bettencourt, de Henrique Levy




Passa hoje um ano sobre a apresentação pública, no "Outono Vivo" do romance "Maria Bettencourt - diários de uma mulher singular, de Henrique Levy.

O autor convidou-me para fazer a apresentação pública do livro, tarefa a que dei a minha anuência e realizei com agrado.

Partilho o texto que serviu de base à minha intervenção.





Apresentação do livro

Maria Bettencourt – Diário de uma mulher singular, de Henrique Levy

Outono Vivo - Praia da Vitória



Minhas senhoras e meus senhores,

Caros amigos,

Agradeço ao Henrique Levy o convite para fazer a apresentação pública do seu mais recente trabalho literário e, agradeço a vossa presença.

Agradeço e desejo que estes momentos sejam do vosso agrado, mas que, sobretudo, possam despertar o vosso interesse em conhecerem, pela leitura das páginas do diário desta mulher singular, a Maria Bettencourt. Bem e depois, Depois se assim entenderem, partam à descoberta de toda a obra literária do Henrique Levy.

Sobre o homem e a sua obra, mais tarde, farei algumas referências, mas antes quero partilhar convosco uma pequena estória. Uma estória breve e que não é do domínio da ficção.

Conheço o Henrique Levy ainda não se completou um ano. É certo que já tinha algumas referências da sua obra poética e romanesca, mas, como disse, só o conheci recentemente. E é sobre o dia em que conversámos pela primeira vez que versa a estória que agora partilho convosco.

Era dia de “Ler na Livraria”, evento que acontece regularmente numa livraria de Ponta Delgada para celebrar os livros e os seus autores. Um dos convidados era o Henrique que iniciou a sua participação com a leitura de um soneto de Camões, até aí, nada de novo. Outros leitores se lhe seguiram. E eis que o Henrique volta à carga, desta vez, e diria para surpresa da generalidade dos presentes, com um belíssimo poema de Maria Ana Yamagnini. Uma poeta orientalista portuguesa. Era o Henrique a trazer-nos a poesia de um Mundo distante, ainda assim um Mundo português. Seguiu-se mais uma ronda de leituras que o Henrique fechou de forma irónica, sem ser depreciativa, mas, quiçá, provocadora. A sessão encerrou com o Henrique Levy a declamar a receita de “Malassadas de S. Miguel”, texto do livro “Cozinha Tradicional Portuguesa”, de Maria de Lourdes Modesto.

Não pude deixar de pensar ora aqui está uma daquelas personalidades que eu, incondicionalmente, admiro. Aqui está um rebelde. 

E, eu gosto dos desalinhados, gosto dos rebeldes e dos insurgentes. 

É com eles, com os insubmissos que a humanidade cresce e se liberta. 

E eu gosto.

Depois seguiu-se uma breve conversa que nos aproximou e que serviu para consolidar aquilo que hoje podemos classificar com uma sólida amizade ancorada em princípios e valores que nos são muito caros.

Depois de vos dar a conhecer este episódio julgo estar perfeitamente justificado o motivo que me levou a aceitar o convite do Henrique para vos apresentar este diário de uma mulher singular, a Maria Bettencourt.

Quanto às razões do Henrique que, vá-se lá saber porquê, me confiou esta tarefa para a qual não estou, de todo, talhado. Afinal sou apenas um cidadão que gosta de ler, não mais do que isso. Bem, talvez tenha sido essa a razão da escolha do Henrique, um leitor e não um especialista em literatura. Mas, como dizia, quanto às razões do Henrique ele as dirá, se assim o entender. Quanto aos especialistas e críticos literários terão, certamente oportunidade, se lhes aprouver, de dedicar algum do seu tempo e estudo à análise literária deste novo livro de Henrique Levy.


Minhas senhoras e meus senhores,

Caros amigos,

Ainda antes de referenciar a mais recente peça literária do Henrique Levy, afinal é para isso que aqui estamos, não posso, tal como já referi, deixar de mencionar algumas notas sobre o autor e a obra anteriormente publicada.

O Henrique é, antes de mais e depois de tudo, um viajante. Nasceu em Lisboa, mas grande parte da sua infância viveu-a em S. Tomé e Príncipe e Moçambique. A sua vida profissional repartiu-se entre Macau, Turim, Lisboa e agora a Maia, na ilha de S. Miguel. Mas este incansável viajante fez incursões noutras geografias. África, América, Ásia e, naturalmente, a Europa foram destinos deste viandante.

Mas são as ilhas o centro do seu Mundo. As ilhas atlânticas.

Cabo Verde onde tem raízes familiares, S. Tomé e Príncipe onde viveu, e os Açores que conhece há muito e onde atualmente vive e trabalha. 

São as ilhas que mais fascinam o autor e que dão mote a muitos dos seus escritos.

O Henrique adotou os Açores como sua casa, à meia dúzia de anos. Os Açores como um lugar de libertação. Parece ser um paradoxo, os ilhéus vivem confinados pela terra e limitados por um mar sem fim. Onde está essa liberdade!? Poderão perguntar. 

Num lugar onde a Terra é exígua e imenso o Mar o que é que isso tem, ou terá de libertador!? Eu direi que é no mar, na espiritualidade que esse mar revela e representa que o Henrique encontra a sua libertação enquanto Homem, mas também como fonte inesgotável de inspiração para a sua criação literária.

Obra literária que é, sobretudo, poética. De entre nove títulos publicados este é o seu terceiro romance.

Henrique Levy iniciou o seu percurso literário em 1999, com “Mãos Navegadas”, poesia, a que se seguiu “Intensidades”, em 2001 um outro livro de poemas. O seu primeiro romance, “Cisne de África”, data de 2009, a que se segue “Praia Lisboa, o segundo romance, logo em 2010. Depois, retoma um ciclo de edição de livros de poesia, “O Silêncio das Almas”, em 2015, “Noivos do Mar” em 2017, “O Rapaz de Lilás”, em 2018, e finalmente, já este ano, “Sensinatos”.

Passados que são quase dez anos depois da edição do seu segundo e último romance, “Praia Lisboa”, eis que Henrique Levy nos maravilha com o regresso à prosa literária, ou não fosse, ele mesmo, um Homem surpreendente.

E eis-nos aqui neste fim tarde quase noite a, agora sim, falar do que nos trouxe aqui. 

Quem é esta mulher micaelense que na década de 60 saía de casa, sem roupa interior, para um encontro amoroso no Alto da Mãe de Deus.

Não façam juízos precipitados nem levianos. O interesse dos seus diários vai muito para além dos aspetos da sua vida amorosa a que, nem sequer, dedica muitas páginas. 

Antes de mais importa dizer que esta é uma obra de ficção. Maria Bettencourt é uma personagem criada pelo autor.

A estória desenrola-se sem narrador o autor serve-se das entradas diarísticas, às quais não dá ordem cronológica, para nos dar a conhecer, na primeira pessoa, a vida de uma mulher oriunda de uma família de “ascendência aristocrática com dois pés na burguesia”, como a própria Maria afirma. 

Já sabemos que as entradas neste diário, que abrangem o período de 1965 a 1977, não obedecem a uma ordem cronológica, embora essa opção, como poderão constatar quando concluírem a leitura, não retire coerência ao todo que o compõe. Mas também nem todas as entradas diarísticas nos são reveladas pelo autor, por exigência expressa, de Maria Bettencourt que antes de perder a visão, quiçá, numa das suas últimas notas manifesta a vontade de nem tudo o que escreveu possa ser tornado público, nem mesmo os seus poemas, a não ser um. E muito menos os seus apontamentos gastronómicos, ou seja, as receitas culinárias que foi registando ao longo da sua existência.

Os diários de Maria Bettencourt revelam-se como uma sátira à sociedade do seu tempo, recheados por momentos de humor, por vezes requintado, mas sempre provocador e, como tal, capaz de provocar reações diversas, naturalmente, resultantes das idiossincrasias de cada um dos leitores. Ou não se tratasse de um texto literário que caricatura alguns aspetos das personagens, do pensamento e dos modos de vida com que Maria Bettencourt se foi cruzando e vivendo ao longo da sua vida. Pessoas e acontecimentos que em virtude da sua miopia, que a obrigava ao uso de uns pesados e desajeitados óculos, tinha conhecimento mais pelo que ouvia do que pelo efetivamente via.

Veja-se, por exemplo, o anúncio do seu casamento chega até si por via da criada, a Tázinha. Casamento que não passou de um terrível equívoco pois, não chegou a realizar-se porque o noivo não sabia de tal acontecimento, nem sequer da festa no Solar da Graça pois, por esquecimento, não foi incluído na lista de convidados.

A Tázinha, fiel serviçal que acompanha Maria Bettencourt ao longo da sua vida e assume um papel fulcral na vida dos Avelar Bettencourt, em particular da Maria. A Tázinha veio muito nova, como acontecia com muitas outras jovens mulheres, de uma freguesia rural da ilha de S. Miguel servir para a cidade. Era filha do povo, analfabeta e devota da Nossa Senhora de Fátima. A Tázinha acompanha toda a vida de Maria Bettencourt, mesmo quando esta, por indicação do Partido Comunista se desloca a Lisboa para frequentar um curso de formação de revolucionários e bombistas. A Maria, não a Tázinha, como está bom de ver. O interesse da Tázinha era bem diferente. A fiel serviçal de Maria Bettencourt queria concretizar um dos sonhos da sua vida, visitar o local onde em 1917 tinha aparecido a santa na azinheira. 

A viagem a Lisboa e os contatos com os revolucionários bombistas não correu da melhor forma, tornando-se mesmo uma experiência traumatizante para Maria Bettencourt. E, como não aceitou a tarefa que posteriormente lhe foi atribuída recebeu instruções para regressar a S. Miguel.

Ainda antes de regressar a Ponta Delgada jantou em casa da Condessa de Rilvas, onde conheceu Isabel, filha da Condessa. A Isabelinha era piloto de aviões e para-quedista tendo no seu currículo vários feitos que deixaram Maria Bettencourt fascinada, mas também algo surpresa por se tratar de uma mulher que abertamente apoiava o Estado Novo. E no Estado Novo o papel das mulheres não era pilotar aviões, saltar de noite em paraquedas para o mar, fazer acrobacia aérea, ou mesmo bater recordes de voo em planador. 

Maria Bettencourt regressou à sua ilha deslumbrada com aquela mulher. Uma mulher capaz de fazer o que para alguns parecia estar apenas reservado aos homens. Por outro lado, a Tázinha regressou triste por não ter podido concretizar o seu sonho, visitar o Santuário de Fátima.


Minhas senhoras e meus senhores,

Caros amigos,

Optei para esta apresentação pública não me socorrer da leitura de trechos dos diários de Maria Bettencourt, o que tornaria a minha tarefa bem mais fácil e, este momento bem mais agradável os meus caros amigos. Perdoem-me por este vosso sacrifício.

E vou continuar a resistir à tentação. Refiro, antes de terminar, mais um facto que Maria Bettencourt partilha connosco e que abalou a família Avelar Bettencourt e a sociedade micaelense de então. A descoberta da vida dupla de Armindo Bettencourt, pai de Maria. 

Quando se soube que Armindo Bettencourt não tinha ido em comissão para Cabo Verde e que os seus longos serões não se deviam ao trabalho na Capitania do Porto de Ponta Delgada tudo se esboroou naquela “família quase feliz”, era assim que Maria viria, mais tarde, a caraterizar a sua vida em família antes do terramoto que se abateu sobre os Avelar Bettencourt. 

A notícia levou à loucura de sua mãe, ao exílio perpétuo, para lugar desconhecido, do seu pai e à ida, antes de tempo, do seu irmão Inácio para a guerra colonial, onde acabou por morrer ao pisar uma mina.

Depois disto seguiram-se duas crises financeiras familiares só ultrapassadas, numa primeira instância, pela venda de um “T” do nome de família ao senhor Tavares que passou a ser conhecido por, TTavares. T mais tarde recuperado depois de ter obtido permissão para vender algumas propriedades agrícolas. E a segunda, pela dádiva de uma mulher que tinha o pai de Maria em muita consideração. Donativo que lhe permitiu requalificar alguns imóveis de família na Povoação. O produto da renda pelo aluguer era suficiente para ter uma vida tranquila com a Tázinha sem ter de contar os tostões, nem depender da solidariedade de alguns antigos amigos do pai.

Agora é esperada a minha opinião sobre este livro. Ou seja, algo que possa motivar o público a adquirir e ler Maria Bettencourt – Diários de uma mulher singular. Julgo que é para isso que aqui estou.

Poderia começar pelo objeto físico e tecer algumas considerações sobre a capa, a arte e a composição gráfica, mas vou dispensar-me dessa abordagem e assim poupar mais uns minutos para o autor que nesta altura já estará acometido de um enorme sentimento de arrependimento por me ter convidado.

Julgo que, tudo o que atrás ficou dito, será suficiente para despertar interesse pela leitura deste livro, bem assim como para conhecer um pouco mais da obra do Henrique Levy, contudo sempre acrescentarei que: 

- ninguém ficará indiferente à estória de Maria Bettencourt e à forma como ela interpreta, por detrás das grossas lentes de míope, o que à sua volta acontece. As reações dos leitores serão diversas, mas nunca reinará a apatia, nem a indiferença;

- a leitura, pela forma como o texto está construído, será um prazer sôfrego. Lê-se de um fôlego e as interrupções serão para algumas gargalhadas solitárias. Não leiam em público sob pena de vos poderem apanhar a rir sozinhos o que pode induzir juízos erróneos;

- este livro, surpreende, desconcerta, desassossega, diverte, ensina.

Com a leitura deste livro senti-me compensado pelo tempo que lhe dediquei. E esta, podem crer, é a melhor apreciação que posso fazer quando acabo a leitura de um livro. Sentir-me compensado. 

Valeu! 

Vale a pena!

Obrigado pela vossa atenção.

Aníbal C. Pires, Praia da Vitória, 26 Outubro de 2019