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terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Os Selos da Lituânia / 12


 12,
masturbo-me vai para três ou quatro anos
e estou só pele e osso.
na minha cara abriram-se crateras
que mais do que com a acne juvenil têm a ver
com o meu propósito lunar,
rebelde e deslumbrado,
por não querer conter a natureza
e, por ela, ultrapassar a última fronteira
de uma libido pertinaz, sem mais remédio
que ter que a exercer.
segundo creio, não tarda e estou cego.
é isso, pelo menos, o que prior avisa,
enquanto, com certeza, estou cego é dos ouvidos
para não ter que lhe ouvir a litania sonsa.
à noite, indo para a cama, não vou
para adormecer, mas para acordar
definitivamente, fazendo do desejo
isto que não sei porque me chama
mas se institui como uma celebração,
ora porque me morde e pica o sangue,
ora porque um rio
ambrosiano palpita entre os lençóis
em que me encontro nu, enérgico e pronto
a recomeçar a injunção premente
a que chamo oblação, por ser palavra rara,
passível de escutar-se nas aulas de moral,
a que, quando estou distraído, estou atento.
não sei se acabarei por me esgotar
nisto em que ando, ou se estou louco
por me terem marcado uma consulta
num psiquiatra, amigo desta casa,
sob o pretexto absurdo de que ando alheado
de tudo à minha volta e leio em demasia poesia.
não faço ideia do que dirá o médico,
que presumo ser parecido com o freud,
de bata branca e barba grisalha,
sempre a tomar notas e a pôr questões em tudo
sobre os sonhos que recorrentemente me acometem.
de ciência certa sei que nada
me apoquenta muito para além do que é normal
da minha idade, que tenho sem porquês,
e se injurio, como dizem, o corpo muitas vezes
é porque sou inocente e o fascismo
pôs os rapazes longe das meigas raparigas,
ou por má consciência, ou o absurdo
de impor aos costumes a premência
vital de um sacrifício sem sentido.
ah, eu mordo a almofada, eu faço
do prazer o que me estremece a alma e amplia
o fogo concreto de querer viver
sem qualquer censura ao corpo,
profícuo e viril, por mais cegueira que me atinja os olhos
por hoje não voltar a ver algumas das vizinhas
na correnteza intrépida
com os mamilos espetados debaixo das blusas,
as vulvas palpitantes sob as mini-saias,
as línguas lânguidas de fora da boca
a fazer-me caretas pela melancolia densa.


in Os Selos da Lituânia, Lisboa, & Etc, 2008

© do poema e da foto: Amadeu Baptista~





quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Os Selos da Lituânia / 11

11.
atrasei-me muito no caminho da escola
para casa porque o bosque
enfeitiçou os meus sentidos.
fiquei a olhar as pedras e as árvores
e a tocar o chão com as mãos para perceber
de que matéria a luz é feita ou como podem
certos pássaros voar, assim tão negros,
como se fossem o segredo que se encontra
entre o ágil e o fluido, a limpidez
e o abundantemente imponderável.
comigo ia a evanescência das coisas, o caminho
em que se decide tudo, a fonte de água
pura que os animais procuram, esse fumo
invisível que atravessa o coração
e nos há-de acompanhar durante a vida,
se à vida devolvermos claridade
pelo que vemos e ouvimos, esse frágil
rumor de mil cintilações à nossa volta.
caía a tarde célere e a noite próxima
fez-me despertar deste fascínio, o regresso
impunha-se e a inocência
poderia seguir num outro dia
o rastro que na tarde havia descoberto.
tinha que me apressar, ainda havia
uma longa distância a percorrer
entre as cintilações e a casa inatingível.
nunca tive uma relação pacífica
com a mulher que me criou. quando cheguei,
abriu-me a porta impacientemente,
pressenti-a nervosa e pude ler-lhe
uma infinita censura no rosto,
não bem pelo atraso com que vinha,
mas porque é mesmo assim a crueldade,
com aqueles traços finos de quem sabe
que há sempre castigo exemplar
para um miúdo de nove anos. em silêncio,
indicou-me a porta das traseiras e faz-me entrar
na garagem deserta àquela hora,
onde uma fila de garrafas e um monte de jornais
foram a fria testemunha de como pagaria
o facto de ter visto uma libélula
e perscrutado o vento. não me bateu
com as mãos, ou mesmo com um cinto,
mas com uma velha correia de borracha com arame dentro  
que estava ali abandonada de um arranjo
do carro, há já bastante tempo.
não verti uma lágrima.
nem disse uma palavra.
o bosque ainda hoje me extasia
e a esta mulher morta desejo
a terra leve.

in Os Selos da Lituânia, Lisboa, & Etc, 2008

© do poema e da foto: Amadeu Baptista~




sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Os Selos da Lituânia / 10

10.
primeiro dia de aulas, nunca vi
tantas crianças juntas. tenho medo
deste desconhecido, onde paira no ar
um cheiro grave a ameaça e giz.
em casa, tentaram convencer-me
de que é bom saber escrever e ler,
mas só a perspectiva de ter que sair cedo
e de ficar fechado numa sala,
durante tanto tempo, dá-me volta
ao estômago e vomito ali mesmo.
não compreendo a azáfama desta gente
que se aglomera num corredor sombrio,
decorado com uns desenhos tristes
de cores muito desbotadas e plantas
cinzentas, que há meses
não devem ser regadas. as mães
acotovelam-se no exíguo espaço
e incitam-me a que vá ver o recreio
onde uma árvore raquítica sobressai
e um anexo em ruínas contém
dois lavatórios, um urinol colectivo
e três latrinas, de onde vem um odor
nauseabundo e em que é preciso
ficar acocorado para fazer o que é preciso.
de novo agoniado, alheio-me dos rapazes
que correm sem destino e das meninas
vestidas de lavado, sentadas nas escadas
contíguas ao refeitório, e volto para dentro,
onde ainda dura aquela confusão, sem nenhum sentido.
de súbito entrevejo a sala onde
decorrerão as aulas, um latifúndio
de quarenta carteiras com tinteiros
de louça branca, esbotenados
e sujos e um estrado descomunal com uma secretária
castanha picada do caruncho e uma cadeira
em frente ao quadro negro, ladeado
por duas fotografias emolduradas
que dominam o espaço, representando
um militar algo embaciado e um civil
seráfico de nariz adunco. entre as molduras
um crucifixo ostenta uma teia de aranha
que vai até ao tecto e nas paredes
repetem-se os desenhos que vi no corredor,
além de vários mapas de portugal continental
e das províncias ultramarinas pintalgados
pelas moscas e a reprodução de um homem
que muito simplesmente me apavora,
porque o desenho mostra como ele
é por dentro, com as vísceras à mostra,
o coração, o pâncreas, os dentes amarelos,
o fígado, o abdómen, a cerviz,
as veias, a boca entreaberta, a garganta, os brônquios,
a traqueia e outras atrocidades indizíveis,
como, por exemplo, não ter sexo. compungido,
peço para sair dali para fora, mas logo avisam
de que se me ponho a chorar é bem provável
que piore o meu estado. a senhora
directora detesta seres mimados
e usa facilmente a palmatória.
alheio-me daquilo, sem saber
o que fazer para ter paz.
começo a ficar tonto, com a cabeça
a andar à roda, como se o chão se abrisse
debaixo dos meus pés e nem sequer voar
me fosse permitido. manhã, manhã,
que a tua luz tão nítida me proteja.


in Os Selos da Lituânia, Lisboa, & Etc, 2008

© do poema e da foto: Amadeu Baptista



quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Os Selos da Lituânia / 9

9.
a casa sobrepõe-se e confunde-se
com outras casas que já não conheço
ou conheço apenas se a memória
for de casa em casa procurar
alguns instantes que de todo se perderam.
aqui menti sobre o paradeiro
de um punhal que estava guardado
na gaveta de baixo do roupeiro.
ali apavorei-me pela sombra
que senti perseguir-me na cozinha,
onde numa tigela ainda fumega
o sangue de uma galinha degolada.
deste lado do muro reconheço
um homem louco mas apaziguado
pelas árvores em redor e o rio, ao fundo,
que corre pelo mundo até ao cabedelo.
além está uma cigana a ler a sina
e as criadas da casa assimilam
o oráculo das palavras como sendo
uma lei peremptória que se ergue.
nesta despensa obscura cheira a fruta
e há uma gata preta que fez ninho
sobre os sacos de cimento amontoados
entre toda a espécie de acessórios para a pesca
e latas de diluente e gasolina
e caixas com sementes e um ancinho.
pela janela aberta deste quarto
entrou a trepadeira florida
e deste lado da cama o enfermeiro
fez o curativo a uma criança
que rasgou os joelhos e passa aqui as tardes
enquanto a mãe não arranja trabalho
e o pai continua detido na polícia
política por actividades ditas subversivas.
a este espaço só vimos pela páscoa.
no centro desta sala há uma mesinha
com uma garrafa de vinho fino já aberta
e biscoitos sortidos que se guardam
numa caixa prateada forrada com um pano
bordado a fio de ouro, igual aos paramentos
que o senhor padre enverga.
a família reúne-se e ajoelha
muito compenetrada do momento
e eu fascino-me pela cruz e o menino jesus
que cada um de nós tem que beijar no pé.
aqui espreitei pela fechadura
e vi a mulher nua e o luís
esconder num lenço azul a hemoptise,
procurando refúgio na varanda
para que o não pudessem ver naquele estado.
ali abri um baú com meadas de renda cor de rosa
com um odor intenso a cânfora, que me extasia,
por aquele cheiro lembrar o cobertor
de lã em que dormi certa noite de grande tempestade
com trovões e relâmpagos formidáveis.
no patamar de paredes brancas
dei o meu primeiro beijo, pela primeira vez fumei
e vi o mar inamovível atravessar o inverno,
quando a terra tremia e toda a infância
enchia até ao tecto a casa
e um denso mistério ampliava
os recantos do sótão com os uivos indizíveis
dos cães da vizinhança. ah, as casas,
as casas sobrepõem-se e confundem-se,
as casas que habitei e que me habitam,
de onde olho fixamente para fora
para que a demolição se suspenda
ou tenha início.


in Os Selos da Lituânia, Lisboa, & Etc, 2008

© do poema e da foto: Amadeu Baptista



quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Os Selos da Lituânia / 8

8.
do pomar de limões da casa ao lado
desprende-se uma fragrância inebriante
que invade as ruas circundantes
e se nota ainda no largo do viriato.
pelo estreito postigo do vestíbulo
surpreendo-me a observar aqueles metros
de terra onde a luz refunde noutra luz
as formas arredondadas dos frutos
que se assemelham à lua em quarto-crescente.
além dos limoeiros, junto ao muro,
cresce uma madressilva,
de onde vem um delicado aroma que transmite
um vínculo a uma origem que não julgo
poder descrever com eficácia
aos meus filhos, por culpa minha, creio.
outros sinais lhes hão-de revelar
a frágil ascendência de que venho
e outras marcas haverá para entender
o inverosímil pretexto que me fez
indagar assim as árvores e a brisa que as percorre
hoje ou ontem, alguma vez, outrora,
sabendo que catástrofe contamina
com feroz galope a beleza
e só a memória pode alguma coisa
entre a cisão e o limite.
morria a tarde, vinha o crepúsculo e a noite,
e eu continuava a ver nesse quintal
a índole de um mistério inexplicável
que como um plano de incandescências breves
constituía o meu lugar no mundo,
a minha descoberta do que havia
de ter como meu, para além de o descobrir.
era verão, chegavam em cardumes
pequenas aves, a escuridão
abria as sombras de uma sombra
nesse espaço remoto onde me lembro
de silenciosamente perscrutar
uma coruja ou uma cobra de água,
uma estrela de papel ou um pirilampo, o arco-íris,
um homem e uma mulher a transpor o muro
para perante os meus olhos ampliarem o fascínio,
dando início a um vendaval sem tréguas de volúpia
que era como se se matassem
ou morressem nesse incêndio,
enquanto recrudescia o odor a limões sobre a cidade
e o universo de repente enlouquecesse.


in Os Selos da Lituânia, Lisboa, & Etc, 2008

© do poema e da foto: Amadeu Baptista





quinta-feira, 3 de setembro de 2015

DIES IRAE


Este é o tempo de pescar homens à mão.
Depois de Auschwitz e após setenta anos do fim da segunda
Guerra mundial, as criaturas morrem em balsas improváveis
No mar mediterrâneo ou acabam vitimadas

Nos camiões-frigoríficos das auto-estradas da Europa,
Famintas, esgotadas, enregeladas. Não sabemos
Quem somos neste tempo, o mais que somos
É refugiados da crueldade da guerra, e da sua miséria,

Da barbaridade que a desilusão do século XXI
Quis entregar-nos. Não há caminhos, montanhas,
Praias limpas. Na pólis da antiga Grécia não entravam
Mercadores e o paradoxo é que são agora os mercados que decidem

A nossa dor, a dor dos nossos coetâneos,
A dor universal de estarmos indefesos.
Tempos houve que se ergueram muros
Para evitar que as pessoas saíssem dos países,

Agora as barreiras são erguidas para que
Não entrem as pessoas nos países, essas vítimas
Que mais não fazem do que fugir da atrocidade
Com que as confrontam sob a ameça de serem

Espoliadas de tudo quanto têm e quanto são,
Sendo verdade que, mais cedo ou mais tarde, acabarão
Assassinadas em qualquer esquina de um campo por lavrar,
Ou numa estação de comboios em que não podem entrar.

Nada nos pertence quando a treva invade tudo,
A matéria da luz perde-se a cada instante,
Éramos os que tínhamos esperança e agora nada  somos,
A imbrincar silêncio sobre tudo, a tecer uma teia

De comércio de armas, de lavagem de dinheiro,
De custos cada vez mais elaborados no deve e haver
Das almas, cúmplices inconfessáveis dos dramas
Que não vemos, por mais que nos entrem pelos olhos dentro.

Ah, que chegue o dia da ira, que não haja salvação
Para os que nos condenaram. Não há caminhos, montanhas,
Praias limpas. A sordidez  ultrapassa qualquer realidade

E nem as lágrimas bastam, nem a cólera que não ousamos ter.


© do poema e da foto: Amadeu Baptista




quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Os Selos da Lituânia / 7

7.
já não me lembro se era inverno ou verão.
sei que o sol estava baixo e a sombra dos prédios
se alongava pelo rio e um último feixe de luz precipitava
o início de um crepúsculo de cores muito saturadas.
alguém veio chamar a minha ama
e ela levou-me pela mão como se houvesse
no ar o sinal de uma catástrofe
maior do que poderia pressentir.
só parámos em frente à entrada principal do palácio das sereias
de onde vi, ao longe, a carga policial
sobre os manifestantes que se aglomeravam no largo da alfândega.
de um lado havia gente em silêncio
e do outro guardas a cavalo.
dir-se-ia que apenas esperavam
o momento adequado para o impulso
de raiva que se lhes vislumbrava
estampada nos rostos. eu não sabia
o que não sabia existir. de súbito, senti
um nó na garganta
que apertava tanto que me fez doer
a nuca, os braços, as clavículas,
as pernas, os joelhos. a minha mão
na mão da minha ama, que senti tremer.
de súbito, provindo do silêncio
em que tudo decorria, sem prévio
aviso, ouvimos um estampido, e outro, e outro, ainda.
dos homens a cavalo, alguém puxara
de uma pistola e disparara sobre a multidão
silenciosa, que começou a gritar e a correr,
arremessando pedras sobre os guardas
de esporas nos cavalos, que espumavam
e levantavam as patas dianteiras.
nas janelas das casas vi
gente que levantava bandeiras negras
e vermelhas, outras brancas,
e apupava a polícia e clamava
palavras que até ali desconhecia
e aprendi, para sempre, serem
as mais essenciais para quem da vida
só espera a liberdade. do sítio de onde
estava, num relance, vi um homem
com sangue a escorrer do peito e da cabeça, estando muitos
caídos pelo chão, que os cavalos pisavam
e a quem os guardas batiam com bastões,
enquanto outros não paravam de correr,
procurando refúgio atrás das poucas árvores
e de alguns automóveis ali parados.
por essa altura, todo o meu corpo
se pôs em convulsões, acompanhando
os gritos que ainda hoje oiço
da infância.

in Os Selos da Lituânia, Lisboa, & Etc, 2008

© do poema e da foto: Amadeu Baptista



sábado, 1 de agosto de 2015

Os Selos da Lituânia / 6

6.
substituí  no coração o meu avô, que era barqueiro,
por este homem que morava no segundo andar
do prédio em frente. à porta, sobre uma coluna de madeira,
tinha uma begónia sempre florida e uma avenca,
e só me permitia entrar sob promessa
de estar calado e de, em caso algum, tocar em nada.
invejava-lhe a caneta azul-escuro montblanc, com aparo
de ouro, quase igual à que alguém me ofereceu
no último aniversário, e a caligrafia taquigráfica
que eu não sabia ler, mas admirava,
pelo negro brilhante a inscrever-se
no papel branco ou lilás que utilizava.
ele escrevia quase incessantemente.
à tarde recebia muita gente que trazia,
em pastas de couro muito velhas, inúmeros
documentos, áscuas de um mistério
absoluto. analisava tudo pormenorizadamente
e, com minúcia, anotava-os, sempre em busca
de um detalhe talvez inesperado e valioso, que o fazia
ir à procura em livros muito grossos
de coisas que ninguém mais entendia,
com os óculos de massa puxados para a testa
e um lápis viarco atrás da orelha. gostava imenso
de contar histórias, o que acontecia
quando estava bem disposto e se sentava
na poltrona forrada de veludo, ou porque os negócios
lhe corriam melhor do que esperara
ou o almoço estivesse para além das suas expectativas.
fazia uns cigarrinhos que fumava e deslumbrava-me
a extrema destreza com que punha
entre os dedos os fios de tabaco e os enrolava
na mortalha, molhando-a com saliva,
num movimento rápido dos lábios e da língua.
depois, ficava horas a desfiar aventuras em cima de aventuras,
que só tarde demais percebi que inventava
e nada tinham a ver com a sua própria história,
embora hoje ainda me espante como divagava
assim sobre tigres e leões sem os ter visto alguma vez
e as suas viagens não passassem 
de tristes itinerários entre os guindais e a cantareira.
falava sobre os vulcões da islândia e o mar de riga
com a familiaridade de quem lá tivesse vivido a vida inteira
e o seu olhar adensava-se sobre as coisas
como se nesse momento estivesse de partida.
havia dias em que estava deprimido
e mais para o fim, um dia, reparei
que secretamente observava
um volumoso conjunto de postais
de mulheres nuas que mais tarde
vim a encontrar reproduzidas numa edição
da forbiden erotika e o devem
ter aliviado do desalento de estar um homem velho
e muito fatigado deste mundo
que vale muito pouco para quem, como dizia,
já passou dos setenta e está casado
com uma megera há tantos anos
que só mesmo uma angina de peito faz sentido.
também para o fim, já não tolerava
mais nenhuma presença além da minha
e a de um gato siamês a que estimava
e dava lições de canto ao som de um disco
da callas, sempre o mesmo,
sempre na mesma faixa, durante tempos e tempos
infinitos. no dia em que se foi, jurei para mim mesmo
não mais entrar naquela dependência
e o faria não em sua memória mas em nome
do que me soube e quis ensinar com tanto afecto
e argúcia. é dele que preservo
os selos da lituânia.



in Os Selos da Lituânia, Lisboa, & Etc, 2008

© do poema e da foto: Amadeu Baptista






sexta-feira, 3 de julho de 2015

Os Selos da Lituânia / 4

naquele tempo, a vida indescritível do quintal
sulcava no meu peito os mais profundos sortilégios.
os dias pareciam ser intermináveis e era possível
sentar-me numa pedra a ver correr as horas
num lento êxtase
pelos muitos planos que os muros fixavam
entre as várias escadarias e as sombras
de um extenso jardim de rosas e agapantos.
um dos cães da casa era um cão cego,
negro, com as patas brancas e castanhas,
que dormia num recanto entre alguns sacos
de carvão vegetal e guardava
as coisas num silêncio que sempre me pareceu
atroz, seguindo com a cabeça os ínfimos ruídos
que suspeitosamente à sua volta vinham
perturbar a prestação guardiã.
após as escadas e um corredor
sombrio havia um tanque de água cristalina
e um outro mais pequeno circundado
por tufos de avencas e de pássaros
entre o silêncio das plantas e da pérgula
onde inúmeras trepadeiras formavam
uma pequena selva, com flores cor de fogo,
de pétalas diáfanas, irradiando clarões
pela tarde dentro. num minúsculo barraco,
quase destruído, guardavam-se as alfaias
e a minha aventura era ampliar
a serventia daqueles instrumentos,
sendo um ancinho a imagem de um dragão,
um carrinho de mão um carro de combate
e uma pá o símile de uma espada
que numa antiga batalha me tivesse transformado
num herói  absolutamente incontestado.
uma ameixoeira branca ampliava o encantamento
do lugar. nas suas folhas entrevia brilhos
que pareciam chuva, embora não chovesse.
o que era irreal mostrava-se, de súbito,
a única custódia possível para os olhos.
havia também um largo patamar
onde as mulheres da família se sentavam
a coser os vestidos ou a bordar
uns panos que me pareciam asas de algum anjo
vagamundo, no lugar em que mãos ladinas
e cruéis matavam as galinhas para o domingo próximo,
enquanto o cão cego permanecia a um canto
com os olhos brilhantes,
como dois topázios.

n Os Selos da Lituânia, Lisboa, & Etc, 2008

© do poema e da foto: Amadeu Baptista




terça-feira, 9 de junho de 2015

Os Selos da Lituânia / 1

escrever pode ser, naturalmente, ter três anos,
estar na praia num dia muito quente
e sentir que alguém nos apanha pela cintura
e mergulha nas ondas violentas
de um mar revolto, vendo num relance
a multidão em volta, toucas amarelas,
biquínis coloridos e o homem da bolacha
americana, de boné enfeitado com uma âncora,
a percorrer o areal em toda a extensão
que vai do paredão à casa do banheiro.
vir num soluço à tona de água e voltar
a submergir com um grito preso na garganta
para ver do mar o fundo, aquelas algas
ameaçadoras num bailado aquoso
que as lágrimas ainda mais adensam.
se não for isso, pode ser, exactamente,
ter um profundo conhecimento da palavra
garrotilho, ter estado de cama com sarampo
e a janela para a rua resguardada
por um pano vermelho que vai do chão ao tecto,
sentindo muita sede, sem poder
sequer molhar os lábios. ou, então, ouvir
a tarde toda os gemidos de alguém
a quem diagnosticaram esclerose múltipla, a regredir
na idade e a ir morrendo aos poucos
de drageias brancas. escrever pode ser, exactamente,
ter um medo mortal de ir à escola, e sofrer
os efeitos maiores da crueldade
que os mestres manifestam nas crianças,
as páginas à deriva entre a baba e o ranho,           
as pernas aflitas por todo aquele pânico,
doridos nós dos dedos e o coração
aos saltos. não sendo isso,
escrever pode ser, provavelmente,
um ajuste de contas com o passado,
ou até mesmo a lembrança dessa noite
em que o vento varreu o nosso quarto
e destelhou as casas circundantes, vitimando
o garboso pundonor do gato que cruzou
a estrada e foi atropelado por um balde
amolgado. não sendo isso, pode ser o cavalo
inquieto que no prado, certa vez, se vislumbrou, ou animais
degolados, com as vísceras entrançadas
num novelo no alpendre, perto da roupa
pendurada na corda de secar. ou a noite,
imensa e perdurável, em que alguém
bateu à nossa porta e não entrou,
e nós com a lanterna tentámos ver
sob a chuva que vergasta ainda
as sebes que há em volta do cercado,
o cata-vento em forma de avião, os cardos
do baldio. se não for isso, será, precisamente,
aprisionar o rosto a um lugar
para não ceder, ir com o corpo adiante procurar
o ritmo das paixões, as mais vorazes,
as que podem produzir assassinatos, estontear
as cabeças, irromper de um céu de sombras
verdadeiras, mesmo que não haja céu,
mesmo que não haja sombras
e nas letras resplandeça
pouca coisa.



in Os Selos da Lituânia, Lisboa, & Etc, 2008

© do poema e da foto: Amadeu Baptista







segunda-feira, 4 de maio de 2015

HOMENAGEM A LUÍSA DACOSTA





DEPOSIÇÃO DAS CINZAS DE LUÍSA DACOSTA
NAS ÁGUAS DE A-VER-O-MAR




Não sei, querida, se de onde estás agora
consegues ver o mar.

Não sei se nesse lugar os teus amigos
te visitam e entregam finalmente
a faca que aos gritos reclamaste
na casa onde estavas para morrer.

Não sei se o céu te recebeu e agora tudo
não é mais do que uma letra
que falta contornar.

Onde estás escuta-se o Nocturno
para Orquestra, op.70, de Martucci?

As aves são as mesmas que tu viste
a progredir no azul da praia?

Há aí crianças?

No termo dos teus dias pedias aos amigos
uma faca para te matares.

Uma razão benigna cobria-te o espírito
porque o que tinhas era insuportável
e não há o que tenha gumes mais desesperados
do que a lucidez.

Quem morre há-de saber o que encontrar.

Após a luz uma outra luz existe,
que é mais profunda e chega de mais longe,
o oculto brilho que habita a faca que pediste.

Com muito poucas sombras à tua porta,
tu cerzias a escrita, enquanto os pássaros
te tocavam a cabeça
e um esbracejo de mulheres se afadigava
a estender a migalha de sargaço
que a nortada trouxe.

Sabias bem como atravessar os campos da noite
e que, algures no tempo, deixaremos
de cá estar para registar a perda.

Sabias bem, querida,
que na polpa do corpo só o desejo resta
e que a sede permanece e não se extingue.

Subiste às árvores durante toda a vida.

Por ti subiu o fogo e às águas vens,
para que o tudo e o nada se consumam
e de ti façam uma árvore de vento.

A tua escrita, querida, ficará
cerzida a essa árvore, com a bênção
das marés que hão-de vir,
onda após onda sobre o areal
de tudo quanto amaste.

A palavra é sagrada,
escreveste, um dia.

E assim há-de ser para todo o sempre,
até que nunca mais haja partida.



 © da foto e do poema (inédito) Amadeu Baptista








quinta-feira, 23 de abril de 2015

Árvores no Coração # 10

CUPRESSUS LUSITANICA

Nenhuma ferida fica quando a árvore ocupa o coração.

Árvores no coração, uma tigela de caldo, uma pedra onde pousar a cabeça,
Os seixos rolados que a serra entrega e, depois, a tarefa de contar
Cada um dos morros cor de argila que a enchente trouxe de longe
Com as boas ervas em redor, a saxífraga, a segurelha, o sésamo em flor.

Escrever é contar o que fica após a ausência, há dias em que a solidão
Desarvora em planícies em que nunca estive, florestas inimagináveis,
Bosques eternos, e o que fica são sempre as árvores, da copa à raiz,
Sombras que se entrelaçam às sombras e dão ao corpo um motivo
Para, ainda assim, resistir.

Espero cegar para poder ver, o ar enche-se de aromas e os ramos
Prometem frutos que escondo nos bolsos para mais tarde
Morder com a avidez de quem cria cada encruzilhada,
Porque cada árvore é um rumo, um crescimento a capturar
O que se encontra perdido, o tronco derrubado que vai reflorescer.

Clareiras há a que me entrego sem quaisquer rodeios,
Mas é às árvores que peço uma resposta, uma resposta definitiva
Para o que se não pode perguntar, o que em silêncio nos abraça,
O que tem um austero sal a envolver-nos, o que é um panorama
Que nos enche de vertigens, e aflige, e sufoca para que tudo aconteça
E tudo se possa rememorar como algo que sob a terra pulsa.

Nenhuma ferida fica quando a árvore ocupa o coração,
Ainda que tudo arda e o incêndio se propague às folhas mais íntimas
De cada árvore, esta que se partilha, esta a que sorrio de longe,
Esta que se levantou muito cedo para tocar a transparência e os enigmas
Do vento, esta que se plantou há séculos para não haver tempo,
Esta que abriga o cão sarnento que não faz mal a quem passa.

Tantas vezes espero que tu chegues que passo a ser o único interlocutor
Da ausência, o carro avança e as árvores fertilizam-me,
Sento-me num banco do jardim e é como se estivesse na floresta
Negra num desvario de palavras que não sei conter, tudo o que coração
Alcança nesta morte lentíssima, nesta morte emboscada
Que me espera enquanto a memória sobrevive e tudo o mais são árvores.

Vou-me à ravina, a precariedade da luz é o que ainda resta,
Crescem hoje estas árvores para que eu diminua, como há muito
Foi escrito, será de granito o mar, de cinza a minha cidade,
De cavalos que correm no planalto num tropel vertiginoso,
De conchas que se fecham com o sonho dentro delas, mas as árvores
Abrirão o círculo, a seiva que tiverem vingar-me-á, o remanescente
Tesouro, o cipreste que assinala a última casa e o último desejo.

Desejo que as árvores ocupem o coração e que nenhuma ferida reste
Para que possas chegar com a luz que as árvores guardam.



 © (inédito) Amadeu Baptista




arte de Agostinho Santos

quinta-feira, 26 de março de 2015

Árvores no Coração # 8

PLATANUS ACERIFOLIA

Árvores de perseguição, é preciso correr para a janela para agarrar
A intensidade destes verdes, destes ocres, destes vermelhos,
Para saber que a vida é a predestinação dos relâmpagos, por mais
Janelas cegas que encontremos. Árvores de correr atrás, pela copa,

Para que o mundo se anime e tu voltes de onde estás, mistério
Que só estas árvores desocultam quando tudo é cinza em redor
E a desolação do horizonte a única certeza. Árvores de abraçar,
De respirar, por já não termos qualquer atenuante, por ser escura

A negligência desta hora, por tudo estar desabitado
Na extensão dos astros e o soluço do homem se ouvir
A léguas de distância, a séculos e séculos de ausência.
Árvores de fazer uma cama para dormir, para não dormir de todo,

Árvores de velar todo o dia e toda a noite na humanidade que delas
Se desprende, francas e humildes no seu mistério de árvores
Que não sabem o que seja a solidão ou a eternidade. Árvores
De tocar as raízes, de colocar na cabeça como uma coroa,

De fazer levantar os braços para cima para que seja
Um troféu que instiga a permanecer. Árvores de lamber
O tronco, a seiva, a infinita doçura que empreendem, catedrais 
De um silêncio sem fim que desdobra nas coisas sussurros

Incessantes, brilhos celestes, potestades que ajudam.
Árvores cobertas de ouro que a treva não destrói, a revivificar
O chão de húmus e sortilégios, pequenos vendavais que se amontam
Na berma dos caminhos. Árvores de gestos cautelosos,

A que é preciso ouvir como a uma criança,
Uma vereda que se atravessa, uma insónia contínua,
Um trovão que se talha, um animal que perscruta a selva
Para atravessar a cidade. Árvores a que prender fitas

Tal como tu atas o cabelo para que o possa desprender,
A que dançar de roda como se a exultação surgisse
Na soberania de ver crescer estas árvores de sombra,
Esta emocionada abundância de cintilações.

Árvores de guardar no coração e nos olhos, no corpo e no espírito,
Para dar guarida ao que divino se ergue em cada um dos plátanos
Que aqui proliferam como se mais nada houvesse,
Ou nada mais bastasse. Árvores em que escrever no tronco

O teu nome com uma navalha para que nenhuma árvore
Se abata, para que nada se ignore, para que cada um
Dos teus nomes corresponda a um outro nome

E nada se aniquile senão a solidão no universo destas árvores.


© (inédito) Amadeu Baptista 



arte de Agostinho Santos


terça-feira, 10 de março de 2015

Árvores no Coração # 7

CASTANEA SATIVA

O incessante ramalhar dos castanheiros no souto imaginário.
Ser ainda criança deve ser este movimento ampliado no tempo,
Para saber-se que não há recuo sobre os caminhos, enquanto as folhas
Destas árvores aguardam os dias luminosos do outono.
É geral esta ênfase das coisas que buscam a perenidade,
Da encruzilhada chegam as sombras dos castanheiros e sabemos

Como há um prenúncio de aves a iluminar o céu, uma delonga
De sinais que os deuses espalham sobre a terra, como se tudo
O que teve início voltasse ao princípio dos tempos e a criação
Voltasse a nascer. Sobre estas árvores deita-se a criança e o poeta,
Deita-se o pintor e tudo o que toca o torpor em que a génese está inscrita,

Velhos troncos a suster a claridade e as sombras de modo a que a clorofila
Solidifique nos pulmões e possa instituir-se sob os predomínios da arte
Esse sopro em que alguma coisa se acrescenta ao que já existe, ainda
Que imaginariamente, num gesto, numa sílaba, numa cor que se expande
Do que nunca existiu mas é nosso de súbito, agregador e tangível.

Nunca se afasta de nós, a criança. Está deitada sobre a terra
E a luz do souto embranquece-lhe os cabelos, é certo que envelhece,
Mas esse fechamento é uma abertura para o que não pára de surpreender,
Uma criança, um poeta, um pintor que uma floresta restrita protege
De todas as tempestades e de todas as bonanças, como se o que houvesse
A salvar não fosse mais que o incessante ramalhar dos castanheiros

Do souto imaginário. O que passa por aqui não tem salvação,
Mas acrescenta milagres entre lagos e montanhas ao que vive do sol
E da neve, acrescenta prodígios ao que confia na ordem celeste
E sabe que vai morrer, o que pastoreia sonhos, ilusões, incertezas
Sobre cada sombra, cada silêncio, cada uma das árvores da mata imaginária.

A arte é este souto. Estamos a dormir e alguma coisa canta nos interstícios
Do mundo, responde-nos a perguntas que nunca foram feitas, a questões
Que se tornam transparentes e translúcidas sob este crescimento,
Esta jornada mortal que retoma o eterno e a imortalidade, este jogo
De hipóteses que se reformulam sem fim, como se nenhum desfecho
Houvesse, nenhum outro destino na desassombradas veredas.

A criança vive desse nome agreste, tal como o poeta e o pintor
Não mais esperam que um casulo em que possa frutificar, uma ronquidão
De árvores a avançar no solo agreste, o souto imaginário
De que as aves surgem como sombras espantosas, em busca
De uma nova fadiga, uma viagem ao centro do desconhecido,
Uma transposição de cânticos de que os vínculos do universo
Se resgatam sob as imperfeitas desinências da infância e da morte.

Tudo se faz com um compromisso, o que entre os dedos se prende
É o que se perde entre os dedos, a arte é o que de inadiável os castanheiros
Anunciam, um fruto opaco que um obstáculo guarda e protege
Para que haja depois uma proximidade a retribuir, a alimentar, vinda

De um souto imaginário, uma dúvida perpetua, o trânsito de um corpo.


© (inédito) Amadeu Baptista 



arte de Agostinho Santos