sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Pensamentos literários 18 - Emanuel Lomelino

Pensamentos literários 


18


Ler um bom livro é meio caminho andado para a descoberta e aprendizagem, mas reler algumas obras transcende esse horizonte e, não raras vezes, leva-nos a um entendimento mais amplo e a novas revelações.

Isso acontece por uma razão muito simples, nem sempre presente no nosso consciente… a cada livro lido transformamo-nos em leitores diferentes, porque a informação absorvida é um complemento intelectual que nos ajuda a melhorar a capacidade de raciocínio e percepção.

Se, a este facto, juntarmos a nossa maturação, enquanto indivíduos, fica óbvio que uma releitura será sempre diferente do primeiro contacto com o livro. Da mesma forma que uma terceira leitura produzirá entendimentos distintos. E assim por diante.

Neste contexto, a última releitura que fiz, de um texto estoico, proporcionou-me uma epifania, que me surpreendeu por só agora, nesta fase adiantada da vida, ter percebido – antes tarde que nunca – sobre o quão estreita é a linha que separa a filosofia da psicologia.

Que me perdoem, Freud e Lobo Antunes!

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 27 - Emanuel Lomelino

13-01-2024


É impressionante como a humanidade tende a complicar a sua essência ao mesmo tempo que admite os benefícios do simples.

A toda a hora ouvem-se vozes a reclamar, por tudo e por nada, numa algazarra, por vezes colectiva, contudo parca de sentido ou em sentido contrário ao pensamento lógico.

A todo o momento, há um espírito de contestação que desce sobre alguém e logo todos se transformam em seres iluminados, sem sequer saberem o que contestam.

Cada vez mais abunda o seguidismo bacoco, que nada acrescenta para além de estupidificação.

Há uma cultura de preguiça, que não é compatível com os brados queixosos, mas que emerge como o valor moral mais alto e assertivo.

Há uma inversão na marcha da humanidade e parece que ninguém faz caso. O importante é saber o supérfluo e ter os olhos colados nas telas luminosas dos aparelhos portáteis e que se lixem os outros (inclusive aqueles que estão sentados à mesma mesa).

A humanidade reclama mais humanismo, no entanto, os passos a dar nesse sentido têm de ser dados pelos outros porque cada um está com falta de tempo e com coisas mais importantes em mente.

Qual a lógica disso? Quão cega está a humanidade para não ver o óbvio?

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Contos que nada contam 38 (No acampamento sem-abrigo) - Emanuel Lomelino

No acampamento sem-abrigo


Leónidas respirou fundo para aplacar o seu estado de fúria, por ter sido obrigado a faltar ao trabalho, para uma reunião com o diretor de turma do seu filho.

Apesar de ser um aluno exemplar e ter excelentes notas, o professor informou que, há algumas semanas, após as aulas, Lúcio não tomava o caminho de casa e dirigia-se para o acampamento de sem-abrigos, que ficava no outro extremo da cidade. Perante o facto, sentiu-se na obrigação de alertar o progenitor.

Com o intuito de não ser precipitado no julgamento e saciar a curiosidade que aquela revelação havia suscitado, Leónidas decidiu investigar mais a fundo as actividades do filho. Esperou o fim das aulas e seguiu-o. Tal como o professor tinha dito, Lúcio não foi direto para casa e encaminhou-se para o lado oposto.

Chegado ao acampamento, Leónidas viu como algumas crianças maltrapilhas rodearam o seu filho e o acompanharam para o interior de uma tenda, tão miserável quanto eles.

Quando tentou aproximar-se para descobrir o que estava a acontecer, foi interpelado por um sujeito. O vozeirão do homem suou como um alarme e, rapidamente, Leónidas viu-se rodeado por alguns sem-abrigo.

Apesar da fúria, mas em inferioridade, explicou a sua presença naquele local e foi surpreendido por uma clamorosa manifestação de reconhecimento por ser pai de quem era.

Leónidas perdeu o soldo de um dia de trabalho, mas ganhou a consciência de ter um filho que, de forma altruísta, sigilosa e desinteressada, passava uma hora do seu dia a ensinar crianças desfavorecidas que não tinham possibilidades de frequentar a escola.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

Lomelinices 91 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


91


Durante anos defendi uma norma de vida que consistia em ouvir o dobro daquilo que falava, usando como argumento o facto de termos dois ouvidos e somente uma boca. O conceito é básico, quase pueril, no entanto, é dotado de uma lógica, quase, irrepreensível.

Por ter uma mente inquisitiva, comecei a pensar numa forma de ultrapassar o problema que o advérbio de modo “quase” colocava. Ele sugere falibilidade e também é lógico, porquanto, numa conversa entre duas pessoas, é impossível que ambas escutem o dobro do que falam.

Como resolver este paradoxo?

A solução parece ainda mais infantil ou rebuscada, mas a própria natureza deu-nos as pistas através da anatomia. As orelhas são laterais e simétricas, e isto significa que o importante não é ouvir em dobro, mas sim escutar de modo harmonioso.

Nesta perspectiva cheguei à conclusão de que o conceito inicial era falho e aquele que passei a usar traduz-se numa palavra aplicável à forma como se ouve (equilíbrio) e outra ao que se fala (temperança). E estes dois substantivos são indissociáveis.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Pensamentos literários 17 - Emanuel Lomelino

Pensamentos literários 


17


Existem tantos predicados nascidos da leitura que, por mais qualificantes que possamos encontrar, nada adjectiva melhor a leitura do que a palavra “edificar”.

Com maior ou menor grau; com mais ou menos intensidade, cada livro engrandece o leitor a diferentes níveis.

Sim, ler edifica o individuo. E o melhor exemplo dessa realidade incontornável revela-se-nos quando damos conta de estarmos a reflectir sobre o que acabámos de ler.

Essas reflexões, cujo propósito, ou utilidade, nunca devem ser menosprezadas, sintetizam-se numa frase, que Carl Jung usou num outro contexto, mas que se aplica na perfeição:

Quem procura, fora de si, sonha, quem procura, dentro de si, desperta.

domingo, 23 de fevereiro de 2025

Prosas de tédio e fastio 6 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


6


Não importam as estações. Todos os dias, de uma semente-ideia, que rasga a membrana plasmática, germinam palavras, quais rebentos de engenho, com esperança de se transformarem em frutos literários.

Os estágios de crescimento correspondem ao ciclo natural da vida, desde o nascimento até ao amadurecimento.

É um processo normal, contudo, de imensurável aleatoriedade temática. Mesmo assim, não dispensa polonização e terra fértil.

Depois da ceifa, segados os caules mais robustos, peneira-se o trigo do joio e separa-se cada grão para o respectivo recipiente.

Uns vão para a mó, outros para a sequeiro, e os restantes ficam armazenados para que, naqueles momentos de colheita fraca, seja possível manter o estro gordo.

sábado, 22 de fevereiro de 2025

Devaneios sarcásticos 12 - Emanuel Lomelino

Devaneios sarcásticos 


12


Muito por conta do gene mais decisivo do estro e por não conceber criação sem literacia, imponho-me absorver o máximo de conhecimento sobre matérias essenciais, mesmo daquelas em que não me revejo, mas que podem aportar elementos teóricos úteis ao meu ofício, até por oposição.

Esta busca por entendimento mais vasto em géneros, estilos e propostas literárias distintas, que deveria ser transversal a todo o universo da escrita, proporciona-me muitos momentos de reflexão interessante.

Neste contexto, e apesar de perceber os conceitos base do concretismo, tenho uma dúvida que só pode ser esclarecida por quem navega neste movimento literário.

Como se conseguem ler textos concretistas a um cego, de forma que os elementos espaciais não sejam omitidos, ou prejudicados por descrições intermediárias?

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Devaneios sarcásticos 11 - Emanuel Lomelino

Devaneios sarcásticos 


11


Desde a origem (nascimento), o humano tenta encontrar o seu propósito na vida, porque é absurdo a vida não ter um propósito. No entanto, pensando que todas as vidas fluem para a morte, é um absurdo que o propósito da vida conduza à morte. Mais absurdo é pensar em procurar um propósito para a vida sabendo que, encontrando ou não um propósito, tudo tem o mesmo fim: a morte.

Seguindo essa linha de pensamento, chegamos à conclusão de que o propósito da vida é a própria morte.

Contudo, na discussão deste tema, muitos alegam que o propósito da vida não é a morte, mas sim prolongar a própria vida, através da descendência. De certa forma arranja-se um sentido, mas nesse caso surgem outras questões: Sendo esse o propósito da vida, como se explica a existência de seres incapazes de procriar? Qual o propósito de vida daqueles que não podem criar descendência? A existência de procriadores e não-procriadores não significa, por si só, que o propósito da vida não é prolongar a vida?

Se, independentemente das respostas, deduzirmos que esta segunda linha de raciocínio pode estar correcta, embora seja um absurdo pensar que o propósito de vida só se aplica a alguns, então podemos concluir que o propósito de vida deambula entre o absurdo e o trágico. E, dos dois, não sei qual é pior.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 26 - Emanuel Lomelino

30-12-2023


O conceito de liberdade tem sido discutido, até à exaustão, pelos pensadores mais relevantes, mas estamos bem longe de atingir o consenso.

Há quem defenda que a liberdade existe a partir do momento em que estamos na presença do uso de livre-arbítrio. Outros defendem que a liberdade é uma ilusão porque as nossas decisões são sempre condicionadas por noções de “bem” e “mal”.

O problema é que ambas as ideias também introduzem na discussão o factor ética, que consegue ser um conceito ainda mais divergente.

Partindo do pressuposto que a liberdade de cada um termina no exacto ponto onde começa a liberdade do outro, façamos um exercício.

Imaginemos que estamos num autocarro e entra alguém a escutar música em alto som. Todos os passageiros têm o direito de não serem incomodados, no entanto, aquele que houve música tem o direito de fazê-lo.

Perante este cenário, e baseando-nos nas duas ideias expressas anteriormente, as perguntas imediatas são:

1 – Onde está o limite do livre-arbítrio de cada um?

2 – Que valor ético é aplicável neste caso e quem o determina?

3 – Que solução podemos encontrar para que, no exemplo dado, sejam respeitadas as liberdades de todos?

Confesso que não sei a resposta a nenhuma das questões.

Aquilo que sei é que, enquanto não se chegar a um consenso generalizado, continuaremos a ver a liberdade ser confundida com libertinagem.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Devaneios sarcásticos 10 - Emanuel Lomelino

Devaneios sarcásticos 


10


As guerras têm, por génese, motivações que, ao contrário do, publicamente, apregoado, são sempre de interesse particular e nunca colectivo. Foi assim no passado, é assim no presente, e será assim no futuro. Perante conflitos armados, as sociedades manifestam-se ruidosamente, durante algum tempo para, pouco a pouco, deixarem esmorecer a indignação até ficarem conformadas e, por fim, indiferentes, desde que seja longe das suas fronteiras.

Mas tudo poderia ser diferente se, em vez de solidariedade em garrafas de água e mantas quentes, aproveitássemos para, satisfazendo o apetite moderno pelos “reality shows” e com as ferramentas que a internet dispõe, criar uma superliga de combates, corpo a corpo, entre os líderes mundiais em beligerância. Vendiam-se os direitos de transmissão para as plataformas de “streaming”, faziam-se contratos de patrocínio com as maiores marcas desportivas e automóveis, e com as casas de apostas, criava-se todo um novo negócio em torno dos eventos e, cereja no topo do bolo, conseguia-se que os níveis de abstenção, nas eleições, diminuíssem drasticamente. Bem vistas as coisas, quem não iria, de bom grado, escolher o representante do seu país para essa competição?

terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

Lomelinices 90 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


90


Passam os dias (sempre iguais) e cada um é uma vertigem de tempo que me afasta do mundo que nunca foi meu.

Eu, o único ser mutável nesta história, enfermo de saber-me deslocado, ora abraço ou rechaço a esquizofrenia lúcida que guia todos os meus passos, todos os meus pensamentos, todas as minhas angústias, que são nada quando comparadas com o mal maior.

O sol nasce todas as manhãs sem remorso nem infelicidade por ser o mesmo que já foi e igual ao que será. Já eu, que sei o meu amanhã, mesmo sem data precisa, jamais saberei o que fui – ou poderia ter sido – no tempo que me correspondia.

Esta dúvida, que deriva de uma certeza cada vez mais sentida como absoluta, é a bagagem que carregarei até ao final dos dias (sempre iguais), composta por baús de frustração, conformismo e desconsolo.

Pior do que estar encerrado num espírito esquizofrénico é ter consciência dessa fatalidade.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Prosas de tédio e fastio 5 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


5


Quem estudou ciências humanas, ou humanidades como se dizia nos anos oitenta, deve lembrar-se, certamente, que a maior dificuldade dos professores era fazer com que os alunos conseguissem interpretar textos e identificar os elementos estilísticos incluídos. Eram aulas e aulas dedicadas a esta matéria e, na globalidade, os resultados não eram dos melhores e ficavam aquém do razoável, porque na cabeça de alguns alunos pairava a eterna questão: mas isto serve para quê?

Ao contrário do que manda a regra, a esta pergunta, feita no presente do indicativo, a resposta mais lata tem de ser dada no pretérito imperfeito: isso serviria para que existisse maior compreensão das mensagens, não acontecessem erros de avaliação, mal-entendidos e, cerrem-se os dentes, não proliferasse uma pobreza franciscana ao nível da criação literária.

Observando, com olhos de ver, o universo da escrita (mas não só), fica claro que essa dificuldade docente nunca foi ultrapassada, tal a profusão de equívocos linguísticos e interpretativos.

Essa incapacidade de entendimento e identificação de figuras de linguagem, sejam semânticas, sintáticas, ou outras, é tão perceptível quanto triste e, sem o risco de incorrer em exageros, até faz corar as resmas de papel rasurado.

Posto isto, garanto que são menos aqueles que repararam no litote que precedeu o eufemismo, lá atrás, no primeiro parágrafo, do que quem atentou na personificação usada no anterior, ou em outros recursos distribuídos entre ambos.

À pergunta: isto serve para quê? A minha resposta concisa é: para eu fazer um exercício de escrita usando o maior número possível de figuras de estilo e ultrapassar, por grande margem, o limite de espaço previsto para este texto.

domingo, 16 de fevereiro de 2025

Prosas de tédio e fastio 4 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


4


Quer queira ou não, para executar os desafios de escrita que me coloco, primeiro tenho de encontrar um tema e, por isso, algumas vezes, parece que estou a repetir discursos, ou a reforçar um ponto de vista.

A bem da verdade, fica difícil separar uma coisa da outra e não vejo razão que me impeça de, através destes treinos de criação, dissertar sobre os meus conceitos e ideias, ou fazer críticas e reparos ao que me aprouver.

De certa forma, fazê-lo é aumentar o desafio, criando uma espécie de “dois em um”, com a adição de novos problemas a pedirem solução. Neste caso, ser fiel e coerente em cada assunto abordado, defender todas as opiniões com o máximo de clareza sem correr o risco de ferir a lógica de uma ideia, e chegar ao final de um texto com a sensação de dever cumprido e agradado com o resultado.

Usando este texto como exemplo, dissertei sobre juntar o útil, dos desafios, ao agradável, de escrever sobre a forma como os executo, mantendo o foco num propósito concreto: não usar palavras com mais de nove letras.

sábado, 15 de fevereiro de 2025

Lomelinices 89 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


89


Por natureza, e porque procuro desenvolver ideias próprias sobre várias temáticas, sou crítico dos radicalismos modernos, que só existem por falta de validade argumentativa e preguiça intelectual.

Reflectir deve ser sempre o primeiro passo para a existência de discussões construtivas e é através das divergências que se podem alcançar consensos e encontrar as melhores soluções para cada problema.

Neste contexto, e porque há assuntos que merecem debates amplos e sérios, congratulo-me pelo crescente interesse na problemática da saúde mental.

Apesar da questão ter sido levantada, recentemente, por figuras de relevo do universo desportivo, este problema não é novo, é mais abrangente e deve preocupar cada um de nós.

Sem retirar importância ao debate sobre as origens, motivos ou soluções, creio que a prioridade deve ser a consciencialização colectiva de estarmos perante uma situação grave que requer o máximo de sensibilidade nas abordagens e, por isso, são dispensáveis as ideias pré-concebidas e preconceituosas do passado.

As sociedades só evoluem quando os pensamentos acompanham.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 25 - Emanuel Lomelino

24-12-2023


Volta e meia, nos meus exercícios de escrita, aludo à preguiça intelectual que ganhou raízes nas sociedades modernas. São tantos os exemplos que fica complicado não dar uso a essa constatação.

Esta epidemia de não-pensamento tem diversas origens, múltiplas razões e inúmeros motivos para continuar a propagar-se, sendo factor essencial e decisivo para que alguns “iluminados”, conscientes do fenómeno, ganhem força e consigam ser reis em terra de cegos formatados.

O mais preocupante é que esta enfermidade já esteve presente em outros momentos da história da humanidade, mas parece que, desta vez, quase ninguém consegue enxergar o óbvio.

Pelo andar da carruagem, acho que esta nova variante, vai ficar entre nós mais tempo do que as anteriores, tal a capacidade de contágio que tem revelado.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

Lomelinices 88 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


88


Quando a manhã se acende num sorriso, a geada, afectuosamente, desmancha-se em lágrimas cintilantes, que o sol prestigia num afago morno.

No céu despontam os primeiros voos, num bailado de brisa e penas, acompanhados pela beleza sinfónica de um chilrear indefinido, nascido de gargantas irrequietas, contudo melódicas.

Há um gingar vaidoso nos passos mudos de um gato pardo, que atravessa o jardim florido, como quem festeja sete vidas preenchidas, apenas interrompido pelo rouco canto de um galo que anuncia a boa-nova.

De repente, com a pontualidade de um relógio suíço, todos os sons se evaporam para que o vento assobie na folhagem de uma laranjeira, libertando as fragrâncias cítricas e impulsionando o voo de uma alva mariposa.

Os sentidos estão a formigar de entusiasmo quando o despertador toca e a chuva, que bate feroz na janela, revela que tudo não passou de um sonho primaveril e a realidade, de mais um dia, é cinzenta como ontem.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Lomelinices 87 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


87


Por mais habituado que esteja ao modo como sou visto e entendido, por quem, sabendo da minha existência, não interage comigo, continuo a esboçar sorrisos internos quando as percepções caem por terra e são verbalizadas manifestações de surpresa.

Há uma imagem que me tem acompanhado toda a vida, muito por minha culpa, confesso, e que induz em erro aqueles que só me conhecem das redes sociais ou do “ouvir falar”.

Quanto à primeira, nada pode ser feito porque, há muitos anos, só uso as redes sociais para trabalho de divulgação.

Em relação à segunda, que apenas merece uma reflexão mais aprofundada para efeito deste exercício de escrita, sobressaem duas ideias.

1 – Há quem se dê ao trabalho de incluir o meu nome em conversas com terceiros, dando-me uma importância que não reconheço nem almejo. E nada mais tenho a dizer sobre isto porque o que falam de mim não me diz respeito.

2 – Há quem faça deduções de carácter, apenas pelo que escuta. Esta constatação sugere-me alguns pensamentos.

a) há quem viva mais na ficção e no achismo do que com a realidade.

b) há quem prefira o rumor à verdade.

c) há quem dedique mais atenção à vida alheia do que à própria.

d) é mais confortável ver nódoas na toalha do outro.

e) quem fala dos ausentes também tem costas.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 24 - Emanuel Lomelino

23-12-2023


O substantivo que melhor define as sociedades modernas é “preguiça”.

Nestas duas primeiras décadas do século XXI, ela disseminou-se, qual vírus contagioso, tornando-se quase uma característica genética da humanidade.

Podemos observá-la desde as pequenas coisas da vida – usar o carro para ir ao café, no fundo da rua; deitar lixo no chão havendo um caixote no outro lado da estrada – até às de maior impacto – resolver burocracias no final dos prazos; deixar para o dia seguinte a conclusão de um trabalho, que demoraria cinco/dez minutos, porque o patrão não paga horas extra.

Depois há a preguiça intelectual, que tem sido estimulada por aqueles que compreendem o fenómeno do seguidismo e sabem dissimular ideias e conceitos em actos e discursos tão cativantes que parecem dogmas infalíveis, sem pontas soltas, logo, sem necessidade de reflexão, mas fazendo crer, aos enfermos da preguiça, que são livres-pensadores e que a ideia original foi fruto do seu próprio pensamento (que nunca teve).

Dessa percepção de indiscutibilidade cria-se a apologia do não-pensamento, ou a sensação de que pensar é prescindível.

Assim nascem os rebanhos, educados a aceitar sem contestar e sem compreenderem que estão a ser formatados por pensamentos induzidos e a perder a capacidade de pensar pela própria cabeça.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Pensamentos literários 16 - Emanuel Lomelino

Pensamentos literários 


16


O momento mais angustiante na vida de um autor não é o fracasso das suas criações, tampouco o sumiço repentino do estro. A angústia maior, que trespassa a alma vezes sem conta e dilacera cada átomo, acontece quando as palavras atraiçoam e esgravatam o íntimo como punhais rombos, sem um pingo de compaixão nem misericórdia.

Para os mais desprevenidos, cada traição é recebida no limite do despreparo e, por isso, sentida no extremo da dor – lancinante, feroz, inclemente.

Os mais calejados, não sendo imunes às estucadas e sofrendo em igual medida, conseguem, apesar das lágrimas de desilusão, ultrapassar o desconforto com maior celeridade, cicatrizar as feridas, e retornar ao ofício mais fortes.

Depois há os outros. Aqueles que, por nunca terem estado seriamente empenhados na escrita e, por essa razão, não terem ganhado consciência de autor, ignoram quão ténue é a linha que separa a traição das palavras e a arte escriba.

domingo, 9 de fevereiro de 2025

Prosas de tédio e fastio 3 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


3


Entre muitos paradoxos que enfermam a humanidade, um dos mais óbvios, mas que foge à reflexão, é o dogma da perfeição.

Todos alardeamos que a perfeição não existe e, consequentemente, admitimos a nossa imperfeição natural. Estas afirmações acabam por ser taxativas e complementares, mas quase sempre colocadas de lado, dependendo das situações, sendo usada a versão mais cómoda ao interesse de cada um, ou o(s) seu(s) contrário(s), como quem escolhe que roupa usar em determinado dia da semana. Senão vejamos.

Não existindo a perfeição, por que raio todo o mundo anda em busca dela, em todos os momentos da vida? Por que se exigem relacionamentos perfeitos? Por que se exigem, ou recriminam, comportamentos e prestações, em nome da perfeição? Por que razão as pessoas sentem necessidade de qualificar toda e qualquer coisa que veem, ou tudo o que leem, como sendo “perfeito”? Por que carga de água se voltam as costas aos demais por falta de perfeição, ou pelas imperfeições? Por acaso a imperfeição só existe na primeira pessoa do singular, no presente do indicativo, em circunstâncias especiais, sendo que noutras é alimentada na segunda pessoa do singular ou plural? Será que o conceito de imperfeição tem restrições aplicativas? Será que estamos, também neste quesito, a perder a noção da realidade e a deixar-nos levar pelo politicamente correcto por conta da sensibilidade de um punhado de “cabeças-ocas”?

sábado, 8 de fevereiro de 2025

Pensamentos literários 15 - Emanuel Lomelino

Pensamentos literários 


15


Sempre que me preparo para mergulhar num novo livro, visto o meu escafandro de gala e lá vou eu, contra todas as fobias, em genuína apneia.

As primeiras páginas podem revelar-se irrespiráveis, mas a falta de ar oxigenado, em vez de afligir-me, tem o condão de despertar o meu autocontrolo e elevar os sentidos no máximo das suas capacidades, obrigando-me a dar corda às barbatanas e ir ainda mais longe e fundo. E quanto maior for a dificuldade para manter a respiração regular, mais embrenhado fico e mais adentro nos textos.

Garanto-vos, com o testemunho de mil e uma experiências, que todos os bons livros conseguem fazer-nos viver para lá de uma síncope respiratória, e trazer-nos de volta, sãos e salvos, mas enriquecidos, à superficialidade fatal do mundo a que pertencemos.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 23 - Emanuel Lomelino

19-12-2023


Sem tirar a importância a outras grandes preocupações das sociedades modernas, um dos maiores flagelos actuais é o sumiço, que está a ser permitido acontecer, de inúmeros locais de culto – as livrarias tradicionais.

Sobre esta triste realidade estão a ser usados argumentos que só convencem os cabeças-ocas que falam de clássicos, mas só leem livros de autoajuda, comprados em supermercados.

Os livros que valem a pena serem lidos raramente os encontramos nas grandes superfícies, porque nunca serão os de vendas mais expressivas.

Livros que fazem pensar, ou melhor, que obrigam a pensar, são incompatíveis com o negócio de consumismo imediato, porque, neste nosso tempo, o acto de pensar está a roçar a extinção.

Os verdadeiros leitores, aqueles que conhecem as diferenças entre as grandes obras da literatura e os manuais de formatação, optam por pensar e sabem que só é possível encontrar bons livros nas livrarias tradicionais.

Infelizmente, esses espécimes raros têm uma capacidade financeira reduzida e isso reflete-se no desaparecimento de espaços icónicos.

A manter-se este círculo vicioso, corremos o risco de necessitar ir ao supermercado mais próximo para encontrarmos um manual prático, que nos ajude a descobrir uma forma de fugirmos à estupidificação que está a instalar-se, e reaprender a pensar.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Prosas de tédio e fastio 2 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


2


Pensar dói. Ou melhor… dá dores de cabeça. Ok. Nem sempre. Há pensamentos que conseguem passar sem deixar vestígios, mas, quando assim é, isso significa que não tinham significado algum.

Aqueles que magoam são os pensamentos que vêm atrelados a outros pensamentos, como um comboio-bala interminável, cuja locomotiva é uma ideia simples que não gosta de andar sozinha nas trilhas da mente e, por isso, arranja sempre uma forma ardilosa de dar boleia a mais e mais ideias, cada vez mais complexas.

A dor de cabeça aparece nesse momento. Na altura em que as carruagens mais simples – porque leves – dão lugar às mais robustas – porque pesadas – e, como num passe de mágica, cada uma delas (ideias) se transforma numa nova locomotiva, dando origem a mais comboios. Tantos que a mente fica preenchida de carris, que entroncam, uns nos outros, de modo tão vertiginoso que, nasce a sensação, a qualquer instante haverá um descarrilamento ou um choque entre composições.

Se isto não fosse uma analogia eu estaria milionário só na venda de bilhetes, tantos são os pensamentos que viajam na minha mente.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

Prosas de tédio e fastio 1 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


1


Os livros, tal como as conversas e as cerejas, estão sempre colados a outros. Descobri isto ao olhar atentamente para a minha biblioteca e ter visto Puchkin e Gogol em animada tertúlia com Camus e Pessoa. Noutra prateleira, Brecht e Celan concentravam olhares em Virgínia, Agustina, e nas irmãs Brontë.

Num canto mais resguardado, Proust, Benjamin e Todorov sussurravam críticas, como quem conspira literatura. Mais adiante, Almada Negreiros, de braço dado a Ramos Rosa e Torga, dissertava sobre poesia, como quem não sabe mais nada além de versos.

Wilde, com todo o vigor da sua juventude reciclada, olhava Botto com interesse redobrado, enquanto Ovídio, Plutarco, Horácio e Calvino tentavam descobrir as diferenças entre Vergílio e Virgílio.

Poe e Stevenson elogiavam Márai e Saramago, bem perto de Göethe e Nietzsche, que desafiavam Schopenhauer e Steinbeck, para deleite de Kant. Também vislumbrei o grupo de Tolstoi, Gorki, Nabokov e Dostoievski, a debater com Kundera, Marquez, Neruda e Natália.

Camilo, Dinis, Amado, Assis e Eça trocavam experiências, enquanto Vinícius e Ary ofereciam canções a Cecília, Sophia, Florbela e Natércia, que retribuíam com palavras meigas.

Cervantes, Dante, Shakespeare e Camões faziam vénias aos aplausos de Junqueira, Bocage, Drummond e O’Neill. Enquanto Baudelaire, Apollinaire, e outros franceses, viam peças de Gil Vicente e Pascoaes.

E mais não vou enumerar porque já ultrapassei o limite deste texto.