sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Lomelinices 85 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


85


Os dias cozinham-se iguais, numa mesmice tão sórdida quanto submissa, sem ensejos nem revoltas.

Lábios gretados, frieiras nas mãos, escaras soltas, narinas empoeiradas, vontade que se esvai, conformismo que se instala.

O cansaço apodera-se, sem tréguas nem piedade. Reavivam-se vis emoções, já sentidas na plenitude da miserabilidade. Também aquela inércia tão lancinante como grilhetas carcerárias.

Mas nem tudo é ácido porque, no final de cada dia, chega sempre o silêncio crepuscular, com livros debaixo dos braços e a habilidade de teletransportar a mente para mundos que anestesiam até que a realidade regresse no buzinar do despertador.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Lomelinices 84 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


84


Não foi sem assombro que descobri a existência de niilismo na minha personalidade.

Apesar do termo não me ser estranho, por razão do meu interesse artístico-literário, e até conhecer um pouco desta corrente filosófica, nunca deduzi que uma parte de mim pudesse ser influenciada, mesmo que ligeiramente, por esta doutrina.

A verdade é que, em relação à percepção que tenho da vida, com todas as minhas dúvidas e questionamentos, nunca me considerei mais do que céptico, pela simples razão de não conseguir vislumbrar, com carácter decisivo, uma razão válida que justifique a existência de um propósito, ou sentido, pré-definido.

Eis senão quando, nesta fase adiantada da minha existência física, descubro que a descrença num sentido para a vida, tal como ela se revela para mim, é considerado niilismo existencial. Só não sou completamente niilista porque não vejo a humanidade, como um todo, insignificante.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Epístolas sem retorno 25 - Emanuel Lomelino

Walt Whitman
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Caro Walt,


Na ânsia de fazer, da vida, algo extraordinário, e perante as contrariedades que ela nos oferece, há sempre questões que se levantam, como o sol na alvorada: Quem determina os parâmetros dessa notabilidade? Sob que olhares deve ser avaliada a realização do admirável? O que significa “algo extraordinário?

Na busca por respostas a estas, e outras, dúvidas, sou confrontado com inúmeros paradoxos que, já se sabe, geram ainda mais interrogações. Desse emaranhado de incoerências e antagonismos, resultantes do esforço mental por entendimento, confirmo que existem sempre dois pesos e duas medidas, tanto na génese como na solução, dependentes das abordagens, dos conceitos, das definições e ideais de cada um.

Só desse modo é possível admitir que os desejos mais simples sejam tão extraordinários quanto as proezas mais heroicas; que a vida mais comum seja tão satisfatória quanto a existência mais singular; e o banal seja tão cativante e jubiloso como é o excelso e surpreendente.

Tudo isto, espremido, conduz-nos a uma constatação tão elementar quanto magistral: Extraordinária, por si só, é a própria vida.


Simplesmente

Emanuel Lomelino

terça-feira, 28 de janeiro de 2025

Lomelinices 83 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


83


Por mais que pense, não consigo encontrar uma razão inequívoca e definitiva que justifique o medo que a generalidade das pessoas tem de estar sozinha, como se ficar ou estar só fosse o tormento mais nefasto que alguém pode experimentar.

Mais incompreensível é o descrédito dado ao isolamento, enquanto fonte de ignição para o raciocínio pacífico, que é o único caminho estável para que exista clareza de ideias e o pensamento não se revelar contaminado pelo entorno.

Creio que a génese desta aversão global é fruto de uma conotação, errada, entre quietude e solidão. Uma não origina nem é, obrigatoriamente, consequência da outra.

O silêncio é a casa da reflexão mais séria e íntegra, logo é benéfica para quem dele usufrui.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Lomelinices 82 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


82


A vida dedilha-se ao ritmo das horas e, mesmo nas pausas inoportunas, tudo soa a orquestração eterna.

Há um género de maestro invisível – tempo – que cadencia cada passo, como estivéssemos, desde o berço, sujeitos a rigor e disciplina harmónica.

Quando sou assaltado por este pensamento absurdo emerge em mim uma tremenda e imperativa vontade de fazer um improviso jazzístico e deixar-me levar numa pauta em contramão.

Talvez seja o meu lado irreverente a querer demonstrar-me que não se esgotou e ainda tem muitos acordes para tocar e, assim, preencher com novas melodias o grande concerto que tem sido a minha vida.

domingo, 26 de janeiro de 2025

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 22 - Emanuel Lomelino

Imagem retirada da internet

26-11-2023


Recuando alguns anos, o processo mais simples de quantificar o grau de inteligência de alguém era o teste de QI, com vinte e dois desafios às aptidões cognitivas.

Criando um segmento de recta, entre a estupidez e a inteligência, algures encontrava-se um ponto intermédio equidistante.

Através desse método científico conseguia-se aferir o valor médio de inteligência de uma sociedade, um país, uma cidade, um bairro, uma escola. E com os resultados obtidos delineavam-se estratégias para colmatar os pontos fracos do conhecimento humano. Isto é, lutava-se contra a burrice, com inteligência e bom senso.

Escrevi os dois primeiros parágrafos no pretérito porque, por tudo aquilo que podemos observar nas sociedades modernas, os testes devem ter sido descontinuados.

Não há outra forma de compreender como é que, de um momento para o outro, a estupidez passou a ser a doutrina dominante. Tanto que, hoje, o bom senso morreu e a voz dos inteligentes é censurada para não ofender a sensibilidade dermatológica dos estúpidos.

sábado, 25 de janeiro de 2025

Pensamentos literários 14 - Emanuel Lomelino

Pensamentos literários


14


Ler, por si só, já é um vício. Mas a coisa ganha contornos de dependência quando, por exemplo, nos embrenhamos na leitura sobre metafísica.

Para compreendermos esta “filosofia primeira” começamos por ler Aristóteles. Absorvemos conceitos, definições e logo queremos mais. Então passamos para Kant e a coisa adensa-se de tal forma que não temos outro remédio que não passe por lermos Heidegger e Leibniz.

Quando nos apercebemos da tremenda ressaca mental em que nos enfiámos, já não conseguimos passar sem aprofundar o conhecimento e passamos a ler, também, os críticos da metafísica, como Comte e Nietzsche, e os que, não sendo críticos desta ciência filosófica, foram severos opositores da sua vertente racionalista, como Schopenhauer.

O pior é quando começamos a ler referências a outros filósofos, cujas obras são mais difíceis de encontrar, e damos por nós a vasculhar as prateleiras das livrarias na ilusão de encontrar alguma dessas relíquias. Quando isso acontece é sinal que entrámos na fase mais complicada da adição literária: a obsessão.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Epístolas sem retorno 24 - Emanuel Lomelino

Eduardo Lourenço
Imagem gradiva

Ilustre Eduardo,


De forma simples, observando o quão supérfluo é o pensamento deste tempo, ninguém mais fica incomodado com as homenagens sensaboronas feitas ao nosso vate maior. São enxurradas de desrespeito linguístico, estilístico, poético e lírico que, apesar de serem feitas na melhor das intenções, nada possuem de louvor, tributo ou consagração, porque aos, chamemos-lhes, “celebradores” falta estro e conhecimento camoniano mínimo. Contam-se, pelos dedos de uma mão amputada, aqueles que, com honestidade intelectual imaculada, conseguem ver no espólio camoniano a riqueza que a totalidade da sua obra outorgou às letras lusas. Os demais (maioria esmagadora) dividem-se em três grupos: os que apenas lhe conhecem o nome e Os Lusíadas, mesmo nunca o tendo lido; os que leram a poesia épica por obrigação e, talvez por isso, nunca se inteiraram da dimensão universal de tal espólio; e aqueles que também leram a lírica, mas decidiram politizar (destros e canhotos) as meadas que mais lhes convém, como se a realidade do pensamento seiscentista tivesse aplicação legítima neste século XXI.

Não ficaria mal, a qualquer integrante dos três grupos que enunciei, limitar-se a celebrar Camões com a mera difusão da sua obra. Acredito que as letras lusófonas agradeceriam e o Luís Vaz descansaria mais tranquilo.


Nesciamente,

Emanuel Lomelino

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Contos que nada contam 36 (Peliça) - Emanuel Lomelino

Peliça


- Ó padre Frederico! Perdoe-me a franqueza, mas às vezes fico a pensar que o doutoramento em teologia ajuda-o a salvar almas, mas nunca o preparou para identificá-las.

- Porque dizes isso, meu filho?

- Então, ao fim de vinte cinco anos é que você deu conta que o Peliça era um falso sem-abrigo afogado em dinheiro? Acaso pensou que a alcunha que lhe demos tinha outra conotação?

- Ele sempre me pareceu tão maltrapilho como os restantes. Nunca vi nada que o diferenciasse, à parte de estar sempre disponível para ajudar nos eventos sociais da paróquia. Quanto à alcunha… pensei que fosse por ele estar sempre de luvas e vocês apenas estivessem no chiste.

- Haja ingenuidade, padre Frederico! Desde quando é que um sem-abrigo anda de luvas cirúrgicas, com a barba aparada e sem sarro no rosto?

- Pois…

- Bem, ingenuidades à parte, o importante é preservar a memória do Peliça, como todos o conheceram, pelo tanto que ele fez aqui, e nos termos que ele deixou em testamento. Como beneficiários, temos a obrigação moral de retribuir o altruísmo e a generosidade destes vinte cinco anos. Ninguém fez tanto por esta comunidade quanto ele. Tampouco de forma anónima e despretensiosa.

- Paz à sua alma!

quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Lomelinices 81 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


81


Volta e meia desincorporo-me e, afastando-me um pouco, fico a olhar-me na tentativa de perceber o que continua a mover-me.

Faço isto porque, há muito, deixei de encontrar respostas no meu interior, agora vazio e abandonado de estímulos.

Longe vão os tempos de grandes reflexões, maiores projectos, gigantescas demandas. Todo eu era um contentor de ambições, ideais e proactividade.

Hoje, pairando sobre mim, deixei de identificar aquele olhar decidido e resoluto – quase intrépido – que me fazia encarar todos os desafios da vida com a cabeça bem erguida, numa postura natural de confiança absoluta.

Os valores continuam presentes, as certezas permanecem seguras, as intenções estão imutáveis, as convicções bem enraizadas, contudo, o vigor vem-se esfumando, a energia esgota-se a cada expiração, a vontade esbate-se a cada passo, a importância das coisas tem diminuído a olhos vistos.

Vejo-me à distância e só reconheço a voragem de querer saber mais, de pensar com mais critério e melhorar valências. Mas já não vislumbro a sede de partilhar nem a urgência de me explicar – nem mesmo a mim próprio.

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Lomelinices 80 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


80


Apesar de já ter idade para ser considerado “velho do Restelo”, não tenho, por vocação, o hábito de fazer apologias do passado para contrapor ao presente. As coisas são como são, o mundo evolui e só temos de nos adaptar, o melhor que conseguirmos.

No entanto, por vezes, dou por mim a pensar na diferença que existe entre a vida quotidiana e o meu tempo de adolescente. Ainda não fui capaz de encontrar uma resposta definitiva que explique a razão de, hoje, com todos os avanços tecnológicos e a informação disponível num piscar de olhos, estarmos sempre sem tempo, enquanto, lá atrás, tínhamos uma vida agitada e ainda sobrava tempo.

Dizem-me que hoje tudo depende e acontece no expoente máximo da celeridade e isso é o motivo principal para o tempo ser gerido de forma diferente. Não sei como contestar esta visão porque, bem vistas as coisas, é possível nomear inúmeras situações que atestam essa realidade.

Antigamente remendavam-se as peças de roupa rombas. Fazia-se mais um furo no cinto. Compravam-se botões para substituir os que se perdiam. As calças velhas viravam calções. As toalhas e lençóis eram transformados em panos de limpeza.  Punha-se um calço na perna bamba da mesa. Hoje deita-se tudo fora e compra-se novo porque é mais fácil e rápido.

E esta nova forma de agir abrange também as interacções humanas. Ninguém tem tempo para encontrar soluções e resolver os problemas do dia-a-dia. Simplesmente vira-se a página porque tudo ficou sujeito a prazo de validade e nada, nem ninguém, consegue escapar à condição de descartável.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

Pensamentos literários 13 - Emanuel Lomelino

Pensamentos literários 


13


A força irreverente, do passado longínquo que quase se apagou da memória, foi gasta em ímpetos esperançosos que se revelaram infrutíferos, tamanha foi a resistência das mentes obtusas alimentadas de falsas crenças.

As tentativas de manter vivos alguns conceitos-base para alargar horizontes e elevar o nível criativo, caíram em saco tão roto que nem mil costureiras, e seus pontos-cruz, conseguiriam remendá-lo.

O desgaste foi apocalíptico a ponto de já não restar o mínimo de vontade em recordar, de viva-voz e com toda a paciência necessária, os ensinamentos que, sendo conhecimento geral, deixaram de ter importância junto daqueles – muitos – que apregoam sabedoria e erudição, mas não sabem, sequer, explicar o que escrevem.

A literatura entrou num vácuo conceptual, por imposição colectiva de uma corja que se apresenta como sendo o expoente máximo de intelectualidade e conseguiu, nos últimos quinze/vinte anos, insuflar o vazio de ideias nos cérebros preguiçosos dos aspirantes a prémios, comendas e certificados.

A idade esvaziou-me o ímpeto necessário para continuar a lutar contra os falsos cânones da modernidade. O desgaste faz-se sentir nas pregas da voz e o vigor da garganta esgotou-se.

Contudo, a razão não me permite desistir. Chegou a hora de diminuir os esforços, proteger as cordas vocais e enveredar por outras vias que não me suguem mais sangue e suor. Porque as palavras não precisam ser gritadas para se fazerem ouvir.

domingo, 19 de janeiro de 2025

Lomelinices 79 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


79


Há dias, como hoje, em que os dedos não se cansam de transpor, para as páginas digitais, a efervescência incontrolável desta minha mente hiperativa (tivesse eu nascido em tempos mais recentes e estaria agora encharcado de Ritalina).

A verdade é que este transtorno que me domina é um ingrediente essencial nos desafios que me proponho e, sem os quais, teria muito mais dificuldade em aceitar viver num tempo (este) que não deveria ser o meu.

Mas é aqui e agora que existo – consciente do meu desenquadramento temporal – e, por isso, permito-me à extravagância de coexistir em dois tempos, sem benefício de um em detrimento de outro.

Neste plano de existência, deambulo entre a esquizofrenia pontual e o paradoxismo permanente, com a maior das naturalidades e sem complexos doentios ou desviantes porque me compreendo, aceito e cumpro.

E assim será até ao fim.

sábado, 18 de janeiro de 2025

Lomelinices 78 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


78


No conforto almofadado da minha trincheira de estudo e criação, deixo-me bombardear pelas ogivas de palavras dos pensadores de outrora.

Agasalho-me nas frases mais eloquentes e solto a esquizofrenia que me assiste, em diálogos mudos com todos eles – um por vez – até que a comichão me nasça nos dedos para que a coce numa folha de papel ou no ecrã do computador, como quem expõe um trauma de guerra.

Na maioria das vezes tudo ganha forma através de um conceito elaborado ou de uma ideia esparsa, mas com a força vulcânica de uma conversa interessante. Contudo, em alguns momentos, basta uma simples palavra para que surja um texto, sem outro propósito além da utilização dessa mesma palavra.

Depois entra em acção este meu lado de cientista experimentalista – a esquizofrenia sempre presente – para explorar diferentes abordagens e observar a aplicabilidade do termo em contextos distintos, nos quais, por norma, não caberia. Como neste texto que, sendo apenas um dos muitos exercícios de escrita que me proponho, é uma cócega nascida de uma conversa com Freud sobre os traumas que as trincheiras deixaram em muitos dos que por lá passaram.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

Pensamentos literários 12 - Emanuel Lomelino

Pensamentos literários 


12


O universo literário sempre me fascinou, ao ponto de levar-me a querer obter o máximo de conhecimento possível.

Sabendo, de antemão, que dificilmente teria acesso a tudo aquilo que vale a pena ler, fui construindo a minha biblioteca de acordo com as possibilidades, tentando abastecê-la com a maior diversidade de géneros e conteúdos.

Com este propósito, para além de muitos clássicos da literatura, de diferentes épocas, origens e correntes literárias, também procurei adquirir ensaios relevantes, de pensadores portugueses.

O problema que tenho enfrentado, nos últimos tempos, é a escassez, cada vez mais evidente, de pensadores lusos contemporâneos.

Depois de Agostinho da Silva e Eduardo Lourenço, parece que se abriu um fosso na intelectualidade porque já quase ninguém quer dissertar sobre o pensamento português.

Tendo refletido no assunto, e conhecendo os diferentes ambientes literários nacionais, cheguei à conclusão que este vazio deve-se, em grande medida, ao facto de estarmos a viver num tempo em que a maioria das criações literárias carece de consciência autoral e, por essa razão, não resultar de um pensamento crítico e coerente, mas sim de imediatismo sensaborão sem qualquer dose de filosofia associada.

Até pode ser que me engane, mas não creio que nos tempos mais próximos possamos assistir ao aparecimento de algum nome importante nesta área, tal a preguiça de pensamento que grassa nas letras lusitanas.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

Lomelinices 77 - Emanuel Lomelino

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Lomelinices 


77


Na íngreme e inclemente escalada da vida, sempre repleta de obstáculos expectantes e retardadores, não existem degraus baixos nem patamares lisos onde seja permitido cauterizar as mazelas e recuperar o fôlego, sem que a urgência do tempo não se faça sentir. Todas as decisões estão prenhes de imediatismo e há pouco espaço para hesitar. E tudo pesa mais a cada grão que se move na ampulheta.

Neste esforço continuado, sem pausas nem sossego, pode-se ganhar resiliência e robustez, mas perde-se vigor e agilidade.

Sendo certo que o mais importante é a satisfação do caminho feito, também não deixa de ser verdadeiro que as únicas medalhas conquistadas são adquiridas na dor, no sangramento, nas lágrimas, nas contrariedades, e isso é tudo menos justo ou animador porque as memórias de uma caminhada não deveriam ser apenas de sofrimento, mercurocromo e pensos-rápidos.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Devaneios sarcásticos 8 - Emanuel Lomelino

Devaneios sarcásticos 


8


Percebo as preocupações gerais associadas à inteligência artificial, mas não entro na histeria colectiva dos argumentos baseados no prejuízo pessoal. Discutir os prós e contras numa visão intimista é reduzir a análise ao egoísmo.

Parto do princípio que a IA é apenas consequência lógica do progresso humano, (tal como a revolução industrial) com todas as qualidades e defeitos adjacentes.

Por ser uma questão da humanidade, este tema nunca obterá consenso porque, como prova a história, o progresso colectivo sempre aconteceu com o sacrifício de alguém. Uns beneficiam, outros são marginalizados.

Para não estender muito esta dissertação, e cingindo-a apenas a um aspecto do mundo da escrita (o meu mundo) entendo esta “ferramenta” como um divisor de águas dual. Por um lado, aumentará o número de autores que não são responsáveis pelas criações que assinam (esses existem desde sempre), por outro lado, acentuar-se-á o maior flagelo da humanidade – a preguiça.

Quanto ao benefício… deixarão de existir erros ortográficos… e sacrificam-se os revisores de texto.

terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Papaguear cultura 8 - Emanuel Lomelino

Papaguear cultura 


8


A minha opinião sobre a democratização na escrita é muito clara: serei sempre apologista do universalismo criativo, isto é, todos têm, mais do que o direito, o dever de escrever como lhes aprouver, do jeito que entenderem, sobre o que quiserem. No entanto, universalizar a criatividade não transforma todos os criadores em expoentes máximos nem lhes outorga genialidade.

Este posicionamento advém da observação que tenho feito do contemporâneo universo da escrita, de onde sobressaem duas correntes que, não tendo carácter ideológico-filosófico-criativo, procuram impor as suas razões antagónicas. De um lado a banalização, do outro a elitização.

Li recentemente que, no início do século XX, houve alguém que identificou o excesso de impressões (leia-se produção de livros) como sendo o principal factor de deterioração dos valores culturais da época.

Mesmo desconhecendo as circunstâncias que levaram a essa afirmação, fiquei a matutar sobre qual seria a reacção, do mesmo indivíduo, às enxurradas impressas de hoje.

Creio que, nesta matéria, nunca chegaremos a um entendimento de compromisso porque o direito de publicar jamais poderá ser negado e cabe aos leitores decidir o que é banal e o que é literatura, sem elitismos. O mesmo vale para outras vertentes culturais. E isso levanta mais uma questão: existem condições para que os consumidores de arte saibam e queiram filtrar?

segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Lomelinices 76 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


76


Ah, meus pobres olhos! Na ânsia de tatuar o meu nome nas pautas do mundo, deixei de vos alimentar com os melhores néctares literários e agora, que a cinza toma conta das vossas íris, temo não ser capaz de vos devolver o brilho.

Ah, meus infelizes neurónios! Na intenção de gravar em mim o máximo de saber, semeei demasiadas sementes estéreis e agora, que o tempo é a preciosidade mais rara, receio não ter habilidade para vos restituir a clarividência.

Ah, meus miseráveis ombros! Na ambição de prolongar ao máximo a minha irreverência juvenil, suportei o peso de múltiplas existências, tal qual Atlas, e agora, que os músculos atrofiam e as forças se esvaem, suspeito que a energia que me sobra é insuficiente para vos revigorar.

Ah, malditos genes que possuo! A sequência dos vossos comandos biológicos guiou-me nos trilhos de uma esperança vã e o tempo, que me pertencia, foi desbaratado na ignorância do seu valor. Agora, no ocaso dos dias, a sapiência dos ventos e das marés não serve para nada - é somente cultura geral.

domingo, 12 de janeiro de 2025

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 21 - Emanuel Lomelino

17-09-2021


Primeiro apareceu o homem, depois a mulher – dois géneros. Surgiu o sexo para que masculino e feminino se reproduzissem - número. A humanidade prosperou e virou muitos homens e mulheres com desejo sexual – biologia. Depois a humanidade era tanta e o sexo tão frequente, mas banal, que começou a busca por novos sentires – poesia?

E o sexo foi inovado. Os humanos dividiram-se entre heterogeneidade e homogeneidade, deixando espaço para a bissexualidade – natureza. E logo vieram grupos e subgrupos sob pretextos e teorias diversas para autoexplicar os seus aparecimentos – retórica.

Alguns deles sentiam-se elas, elas sentiam-se eles, outros (eles) sentiam-se elas, mas com desejos de serem eles, e existiam elas que se sentiam eles, mas queriam pertencer a elas. E também havia outros, ou outras, que não se sentiam uma coisa nem outra – modernismo.

E ao longo de toda esta dúvida existencial surgida do sexo, por muito que contestem e se ofendam, a gramática manteve-se sem mutações e continuou a classificar artigos definidos e indefinidos com critérios de número (singular e plural) e género (feminino e masculino). “Os” que se sentem “as” e “as” que se sentem “os”, são idênticos a “uns” que se sentem “umas”, mas querem ser “uns”, a “umas” que se sentem “uns”, mas querem sentir-se “umas”, e a todos os outros e outras – igualdade gramatical prática.

sábado, 11 de janeiro de 2025

Lomelinices 75 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


75


A loucura das horas furtivas – aquelas que envelhecem corpo e espírito – tem o condão de entorpecer as ideias impedindo a clarividência.

Quando não é combatida atempadamente, transforma-se numa vertiginosa sequência de delírios que tomam de assalto, de unhas e dentes, as vontades básicas, substituindo-as pelas mais insanas, como quem se omite das responsabilidades e transfere o poder de decisão ao subconsciente doentio.

Por isso, sempre que se encerra mais um dia, para não me deixar aprisionar nas teias desconfortáveis do aparvalhamento e aliviar a mente das toneladas de entulho acumulado, entro de cabeça num processo de elasticidade cerebral procurando, assim, reencontrar uma réstia de sanidade. Como? Entregando-me doidamente à leitura de uma obra clássica da literatura universal.

Abençoado terapeuta Celan!

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

Lomelinices 74 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


74


Não foi um plano delineado de forma proposital, no entanto, o mundo que construi em meu redor, e que me serve quase na perfeição, faz de mim um eremita urbano.

Nunca desgostei das pessoas, bem pelo contrário, contudo, pouco a pouco, com o avançar da idade e o desaparecimento de alguns seres especiais, acentuou-se no meu âmago a vontade de usufruir deste isolamento egoísta e limitar a minha presença ao inevitável.

Substitui conversas com gente interessante por diálogos mentais com outros deslocados temporais, nos quais me revejo, mesmo não subscrevendo todos os pensamentos, conceitos e ideias que defenderam, pelo simples facto de ser apologista das discussões saudáveis com pessoas capazes de argumentar civilizadamente.

Esta esquizofrenia lomeliniana apraz-me e, enquanto tiver laivos de razoabilidade, não deixarei de a alimentar porque também me cumpro no silêncio conturbado dos meus pensamentos.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 20 - Emanuel Lomelino

18-11-2023


O próximo objectivo literário passa por encontrar obras de Séneca e descobrir se ele realmente dividiu os homens em duas categorias: os que caminham em frente enquanto fazem alguma coisa e os que vão atrás só a criticar.

Caso a atribuição se confirme, terei de discordar, em parte, e dizer-lhe que se esqueceu daqueles que, deambulam entre as duas facções.

Sim, existem os proactivos. Os que traçam os seus próprios caminhos e vão construindo, pedra por pedra, o destino que melhor lhes convém. Seguem as suas convicções e assumem os riscos do erro.

Atrás vêm sempre os visionários de obra feita, com as línguas afiadas e prontos a apontar, efusivamente e de dedo em riste, todos os percalços, todos os equívocos, enfim, tudo e mais alguma coisa, sem sequer saberem do que estão a falar.

Entre uns e outros estão aqueles que, sabendo identificar possíveis vantagens ou inconvenientes, ora fazem caminhos paralelos aos primeiros, ora juntam as suas vozes sussurradas aos segundos.

Esses, chamemos-lhes dissimulados, camuflam as suas acções em trajectos marginais para fugirem aos olhos dos censores e murmuram opiniões para não serem escutados pelos empreendedores.

Se Séneca dividiu os homens em duas categorias, fica aqui o reparo ao seu pensamento. Caso não tenha sido ele, fico já com a dissertação feita e só tenho de alterar o destinatário.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Lomelinices 73 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


73


Há quem se queixe de, por mais que recomecem algo, o desfecho ser sempre igual.

Mas a questão é simples e sempre a mesma: presumir que os sinónimos representam, fielmente, a mesmíssima coisa, quando não é assim.

Mesmo parecendo terem significação igual, existe uma enorme diferença entre reiniciar e repetir.

Reiniciar é voltar ao início, mas isso não obriga, em momento algum, fazer-se tudo exactamente da mesma forma: isso, sim, seria repetir.

Ora, tendo presente essa pequena, mas essencial, nuance, não é difícil entender que cada regresso ao ponto de partida é uma possibilidade de mudança. Isso implica voltar à estaca zero, mas enveredar por outro caminho, outra via.

Só colocando em prática essa consciência é que o desfecho final poderá ter hipóteses de ser diferente.

Se reiniciar e repetir fossem exactamente o mesmo era impossível evoluir.

terça-feira, 7 de janeiro de 2025

Lomelinices 72 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


72


Como tantas outras vezes, iniciei a jornada sem destino premeditado – de peito aberto, ao sabor da despreocupação e empurrado pela brisa de cada dia.

Mas, ao contrário de outras caminhadas, decidi arregaçar as mangas, debastar os matagais mais densos, retirar, à força de músculos, os basálticos obstáculos, sem recuar nos inúmeros momentos em que alguns estilhaços, mais afiados do que cutelo de talhante, rasgavam a pele.

Hoje, avaliando as viagens, vejo que todas elas, independentemente do meu grau de resiliência e sacrifício, apenas me fizeram gastar as solas e voltar à estaca zero. Desta vez sem possibilidade de recauchutar os sapatos.