segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 11 - Emanuel Lomelino

06-08-2023


Levantou-se um vento autoritário que varre tudo, inclusive a firmeza de ideias, qual censor desgaseificado.

Com a força do seu sopro, voam crenças, fés, certezas e uma ou outra resolução, que nem teve tempo para se vestir de gala porque, quando se perde a convicção, não vale a pena coser o bolso das calças.

Dizem que é tudo alteração climática, mas eu acho que é muito mais que isso. Sinto, na pele, que esta brisa desconfortável – que pica mais do que arame farpado ou agulhas de costureira – é uma onda de ar idiota e destemperado cuja missão é apenas instalar a discórdia.

Noutros tempos, talvez não tão humanos, mas com certeza mais, saudavelmente, filosóficos, haveria espaço para debate produtivo sobre a matéria e, entre os vários argumentos, encontraríamos alguma solução pacífica para combater este fenómeno.

No entanto, as sociedades modernas abraçaram o sedentarismo extremo e a preguiça não permite o pensamento livre. Os conceitos válidos são os básicos, que não demandam raciocínio e vigora a lei de quem gritar mais alto tem razão.

O único ponto positivo de tudo isto é que já existem por aí muitos moinhos de vento e a produção de energia eólica pode vir a ficar mais em conta e assim vai ficar mais barato comprar calças e sapatos novos.

domingo, 29 de setembro de 2024

Ao pé-da-letra 5 - Emanuel Lomelino

Ao pé-da-letra 


5


Já ninguém acode ao “aqui d’el rei” porque quem manda é o umbigo e os aflitos de hoje são mais do que as mães.

Já ninguém acredita no “olh’o lobo” porque deixaram de existir cordeiros e todos estão iludidos com a possibilidade de serem predadores.

Já ninguém aceita “descalçar a bota” porque os caminhos são pontiagudos e não há quem se dê ao trabalho de grandes trabalheiras.

Já ninguém quer saber das “pedras no sapato” porque os sapateiros são espécie em vias de extinção e as meias-solas estão fora de moda.

Já ninguém grita “fogo” porque, em vez de bombeiros, os primeiros a chegar são os inúteis alarmes ambulantes pixelizados, que desconhecem a existência de baldes e mangueiras e, tampouco sabem como se abre uma torneira, ou o que é uma boca de incêndio.

sábado, 28 de setembro de 2024

Lomelinices 23 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


23


Não há mal algum em ser-se ambicioso, desde que haja plena consciência das dificuldades e não exista medo de enfrentar qualquer Adamastor que cruze o caminho traçado.

Não há inconveniente algum em ter-se objectivos desde que exista uma vontade férrea e inabalável de ultrapassar todos os obstáculos, por mais árdua que seja a tarefa.

Não há indolência alguma em querer alcançar-se determinadas metas, desde que exista total comprometimento e convicção da utilidade de cada jornada.

Não há arrogância alguma em desejar um aprimoramento pessoal, desde que exista clareza sobre a legitimidade daquilo que se pretende obter.

Só há problema quando não existe tolerância aos pequenos fracassos, boa capacidade de recuperação das inúmeras quedas que sempre acontecem, resistência às dores dos hematomas.

Só há entraves quando não existe ética de trabalho, grau de resiliência necessário para superar a grandeza dos desafios, sobriedade para distinguir as lutas que podem ser travadas,

Só há limites quando não existe espírito de sacrifício, determinação para aceitar os percalços como aprendizado, coragem para transformar as fraquezas em força renovada.

Só há embaraço quando não existe esperança em superar as próprias limitações, coerência nos passos que devem ser dados, humildade para aceitar voltar ao ponto de partida e recomeçar.

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Lomelinices 22 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


22


Tento dedilhar a guitarra da vida, mas os acordes são disformes e não sou capaz de criar uma harmonia que não me fira os ouvidos. Definitivamente não sou músico.

Tento pintar a tela da vida, mas as pinceladas saem irregulares e não consigo acertar nas tonalidades, sombras e brilhos que contrastam com aquilo que quero retratar. Infelizmente não sou pintor.

Tento esculpir o rochedo da vida, mas os vértices que faço ficam rombos a cada passagem do escopro e a burilagem é tão desgastante que apenas consigo gravar migalhas. Compreensivelmente não sou escultor.

Tento refinar os troncos da vida, mas os sulcos que moldo são incompatíveis com os encaixes que modelo e os entalhes ficam tão amorfos que nem as fogueiras os querem como lenha. Miseravelmente não sou marceneiro.

Tento avigorar o ferro da vida, mas não tenho habilidade para dar à forja o calor suficiente para temperar o metal, que quebra na primeira martelada e o pesado malho trilha-me as mãos mais do que me fortalece. Categoricamente não sou ferreiro.

Perante tão humilhante incompetência, conclui-se que é a vida que me dedilha, pinta, esculpe, refina e avigora, e eu sou simplesmente a obra do seu ofício.

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Lomelinices 21 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


21


É tão, absurdamente, fácil ficarmos retidos nos muros das dúvidas e esquecermos os malefícios da inércia quando optamos por encontrar uma estrela guia em vez de desbravarmos as heras que cobrem os caminhos.

É tão, insanamente, fácil ficarmos paralisados diante dos rochedos das incertezas e olvidarmos o propósito que nos devia mover quando decidimos encontrar um trilho que nos leve ao topo do obstáculo em vez de procurar contorná-lo.

É tão, ridiculamente, fácil ficarmos parados defronte do oceano de hesitações e ignorarmos os desígnios que levam a prosseguir quando nos fixamos no medo de afogamento em vez de fabricar o remo que falta à embarcação que nos pode levar à outra margem.

É tão, insensatamente, fácil ficarmos iludidos nos jardins do sedentarismo e alegarmos um propositado embargo à nossa missão quando não temos confiança suficiente na alternativa e fingimos que tudo faz parte do plano.

É tão, humanamente, fácil ficarmos abismados nas florestas de indefinições e perdermos o controlo das prioridades quando desviamos o foco dos nossos intentos e nos deixamos enredar pela desproporcionalidade entre o esforço necessário e o prémio que nos espera no final da jornada.

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Contos que nada contam 26 (A confiança de Abílio) - Emanuel Lomelino

A confiança de Abílio


Na aldeia, todos conheciam Abílio pela sua autoconfiança e abnegação. Em todos os projectos que abraçava, o nível de entrega só era comparável à esperança que depositava no sucesso da empreitada. E mesmo quando as coisas não funcionavam, o que acontecia maioritariamente, ninguém o via cabisbaixo ou entristecido. Logo enveredava por outros caminhos com a máxima determinação e positividade, como se tudo fossem flores.

Todos admiravam a sua capacidade de superação aos desaires, mas também sentiam pena que alguém tão firme e convicto tivesse mais fracassos do que sucessos. E mais pena tinham por ver que, a cada novo desafio, Abílio saia prejudicado, não por incompetência, mas por estar cercado de pessoas menos resolutas, de menor resistência às adversidades e que sempre roíam a corda, deixando-o arcar sozinho com as consequências.

Embora nunca se tivesse deixado abalar pelos inúmeros insucessos, bem pelo contrário, Abílio começou, pouco a pouco, a abdicar de ajudas externas, preferindo entregar mais de si do que depender dos demais. E isso porque, a experiência ensinou-lhe, por mais resiliente que alguém seja, de tantas pancadas sofridas, um dia a confiança capitula. Principalmente a confiança nos outros.

terça-feira, 24 de setembro de 2024

Lomelinices 20 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


20


Sabes Mundo, vive em mim uma empatia pelas lutas que travas na actualidade e revejo-me em muitos dos novos conceitos que agora defendes, porque os considero importantes e revestidos de lógica irrepreensível.

Mas, responde-me Mundo, por que razão a execução das ideias boas vem sempre atrelada a acções que desvirtuam a pureza do que professas? Como justificas a defesa das liberdades com a criação de outros cárceres? Qual a legitimidade de suprimir pensamentos retrógrados com ameaça e perseguição? Em que medida é correcto punir quem deseja validar as filosofias modernas através do diálogo? Porventura, esta atitude de imposição não te faz relembrar os tempos sombrios que viveste? Acaso esqueceste a história que te trouxe até este momento?

Sabes Mundo, um dia inventaste um adágio, mas algures deixaste de acreditar na moral que comporta. E porque “de boas acções está o inferno cheio” acho que decidiste revelar-te como o inferno na terra, em tempo real. É assim tão complicado derrubar muros sem o uso de argumentos e posturas bélicas? É assim tão difícil abdicar de condutas conflituosas? É impossível mudar as coisas sem refregas abertas e permanentes?

Sabes Mundo, por vezes dou por mim a pensar na tendência repetitiva que tens revelado ao ferires-te amiúde, como fosses a definição de masoquismo. O meu temor é que, enveredando por este caminho de trevas constantes, acabes por cogitar a possibilidade de mudares a tua dieta e te tornes autofágico.

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Lomelinices 19 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


19


O mundo desembaraçou-se de absolutismos geográficos, ditaduras físicas e embargos cerebrais em nome da evolução da espécie, no entanto, agora erguem-se muros de intolerância, fronteiras de radicalismo, extremismos de carácter.

Saímos de dois milénios de dogmas e estigmas para mergulharmos numa era de paradigmas irracionais e verdades forjadas apenas porque tudo deve ser desmoronado, mesmo o que deveria estar solidificado.

Mudou-se o cimento autoritário pelo despotismo cimentado. Substituiu-se a imposição da força pela força da imposição. Trocou-se a luta por liberdade pela liberdade de lutar. Alterou-se a defesa de valores pelos valores de ataque.

O mundo transformou-se num gigantesco paradoxo em tão ínfimo espaço de tempo que temo estarmos a caminhar para a loucura coletiva.

Tudo isto faz-me lembrar a história verídica daquele que foi diagnosticado com obsessão compulsiva por, a toda a hora, desinfetar-se da cabeça aos pés. Todos o recriminaram e chamaram de louco, e no momento em que saiu do sanatório, terminado o tratamento forçado e dado como recuperado, o mundo passou a esfregar-se com álcool-gel.

domingo, 22 de setembro de 2024

Lomelinices 18 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


18


Odeio que façam algo em meu lugar, tampouco gosto de adjudicar trabalhos a terceiros, porque os “voluntários” e “solícitos” julgam que qualquer uma das situações faz de nós eternos devedores de um favor que nunca foi pedido, e por vezes até já foi pago.

Odeio as frases feitas porque são sinais de alerta para a presença de alguém que nada de novo tem para acrescentar, por preguiça de formular uma opinião própria.

Odeio as conversas de circunstância que só existem para expressar o quão insonsa é a comunicação entre os envolvidos e servem apenas para matar o tempo até que algo interessante aconteça a um dos intervenientes.

Odeio as perguntas que exigem uma resposta monossilábica, porque demonstram o completo desinteresse do questionador sobre o questionado.

Odeio os exaustivos e enfadonhos discursos, multitemáticos, proferidos na sequência de uma pergunta concreta e objectiva, como se a questão fosse abstrata e abrangente.

Odeio a falsa exacerbação dramática e a exaltação excessiva de regozijo, porque ambas padecem de exagero tão desmedido quanto desnecessário.  

Odeio os elogios fáceis porque são os mesmos que fazem a outros. O elogio devia ser como um cartão de cidadão ou bilhete de identidade: pessoal e intransmissível.

Odeio tantos outros comportamentos de incoerência, mas não tenho tempo para detalhá-los como estivesse a compilar uma tetralogia sobre gente de múltiplas máscaras.

sábado, 21 de setembro de 2024

Contos que nada contam 25 (O fado do Fanã) - Emanuel Lomelino

O fado do Fanã


Fanã, mesmo estando atrasado, como sempre, abrandou a passo, antes de entrar na casa de fados, onde Dália ia actuar, nessa noite. Esbarrou em dois sujeitos que bloqueavam a entrada. Pediu desculpas por ser desastrado e foi até ao balcão, com um sorriso ardiloso colado nos lábios e uma carteira acabada de colar-se aos seus dedos experimentados.

No momento em que se preparava para ver o produto da sua manha, ouviram-se os primeiros acordes da guitarra portuguesa. Apesar dos seus quase cinquenta anos e ter ganhado fama de durão, ele nunca foi capaz de fazer, fosse o que fosse, quando ouvia o trinar de uma guitarra. Era como se o instrumento tivesse um poder hipnótico sobre si.

No momento seguinte, aproveitando o silêncio que a música provocou na sala abarrotada de gente, a voz rouca, mas doce, de Dália ecoou-lhe até ao fundo da alma. 

Quase por instinto, abriu a carteira que havia surripiado na entrada e a primeira coisa que viu foi uma foto de família.

 

- Maldita sejas, Dália! – murmurou entredentes.


Foi até à porta, onde ainda estavam os dois sujeitos, e disse, esticando a mão para um deles:


- Acho que isto lhe pertence.


Sem esperar resposta, voltou para o seu lugar, no balcão. Cruzou o olhar com Dália, que lhe sorriu, orgulhosa, enquanto cantava “O fado do malandro arrependido”.

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Epístolas sem retorno 16 - Emanuel Lomelino

Natália Correia
Imagem pinterest

Saudosa Natália,


Poderia falar-te do talentoso impacto açoriano nas artes lusas, a que tão meritoriamente pertences.

Poderia dizer-te algumas palavras sobre a decadência morfética que tem sobrevoado a literatura nacional nas duas últimas décadas.

Poderia confessar-te a falta que faz uma língua afiada, e sem papas, como a tua, para colocar alguns pseudointelectuais da modernidade no devido lugar.

Poderia dissertar sobre a realidade crua do nosso país-pátria ou da melancolia que grassa na nossa terra-mátria.

Poderia falar-te de tudo isso, e mais algumas coisas, mas, desde que expuseste o Morgado, os capados ganharam protagonismo e querem censurar os sexos para dar espaço aos géneros eunucos.


Da geração quase extinta

Emanuel Lomelino

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Lomelinices 17 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


17


Na dúvida do que está por vir e enquanto não surge a certeza do futuro, embrenho-me na escrita, tal qual a penso e sinto, mas sempre na esperança de que cada mote se justifique por si mesmo, sem me explicar.

Não falo de mim nem me denuncio, porque sou abstrato, livre e obcecado pela minha privacidade. Antes crio meadas que teço com os fios velhos que reaproveito. Antes burilo gemas sem brilho que encontro nos troços que percorro. Antes cultivo as sementes do raciocínio, que é comum ao mais comum dos mortais. Antes cinzelo ideias universais com a perícia de quem desconhece tudo, mas suspeita. Antes refino o carvão dos sentidos e dou corpo de diamante às palavras que uso. Antes lavro pensamentos vulgares com fitas coloridas e enfeitadas de verdades.

Depois sou engolido pela noção errada das interpretações que me fazem por ser avaliado pelo que escrevo, como se isso, de alguma forma imperativa, pudesse definir o meu mais recôndito, misterioso e oculto interior.

O homem existe, somente, na intimidade de mim e para conhecimento de quem está próximo. O que está além disso é apenas sombra e o instrumento que dá corpo ao autor.

Esse sim, encontra-se, em toda a plenitude e substância, regido pelo devaneio de dar a conhecer a sua capacidade instintiva de criar a partir do zero. Esse sim, tal qual um heterónimo, merece interpretação, nunca pelo que é, mas pelo que constrói com o estro vulgar que detém e trabalha.

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Lomelinices 16 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


16


Há um contragosto fatigado e dorido que fere a vontade de mudança rumo ao júbilo.

Existe uma feroz tristeza, que é real e inibe o ambicioso desejo de subir, degrau após degrau, até patamares mais ousados.

Permanece a inoportuna febre que restringe as passadas necessárias para que o arrojo triunfe.

Há um fúnebre cansaço que pesa no corpo como quem proíbe uma progressão legítima e impede o regozijo da glória.

Permanece uma indolente escravidão, sem grilhões, mas bem mais carcerária que as celas de Alcatraz, que dificulta a mais insignificante conquista.

Há uma fragilidade prenhe de restrições que prende os movimentos suaves e singelos, como quem maniata os avanços mais naturais e precisos.

Existe um melancólico acanhamento do ânimo que, pouco a pouco, desfalece por inércia imposta pelas punitivas circunstâncias de todos os dias.

Permanece o insucesso do querer por imposição de um dever odiado, mas crucial para que as metas sejam cruzadas.

Há, existe e permanece um temor ofegante de que todo o esforço despendido seja inócuo e em vão.

terça-feira, 17 de setembro de 2024

Lomelinices 15 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


15


Nasce-se para se morrer, independentemente daquilo que se fizer no intervalo.

Já nasci e morri tantas vezes que a cronologia natural desses feitos deixou de fazer sentido.

Todas as mortes foram diferentes, enquanto os nascimentos foram tremendamente dolorosos para mim, com excepção do primeiro, cujas dores nem recordo.

Nasci e morri de tantas formas distintas que, em algumas delas, senti-me um personagem de Lovecraft.

Foram tantos os partos que nem deu tempo para fazer certidões de nascimento, porque as mortes estavam ao virar da esquina.

Foram tantos os óbitos que nem a necrologia conseguiu acompanhar e ninguém foi notificado.

Morri e renasci tantas vezes que já nem gato sou.

Com tantas parições e falecimentos foi-me permitido confirmar que, por mais que se faça tudo certinho em cada vida, de múltiplas e diferentes formas possíveis, nunca seremos capazes de impedir o desfecho final. E essa circunstância implica que no final das contas, o número de nascimentos será sempre igual ao de mortes.

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Lomelinices 14 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


14


Não existe falácia na ânsia causada por um silêncio violado pela maliciosa verve, intencionalmente impostora, que fere de garras afiadas os órgãos mais frágeis, como lâmina aquecida a perfurar matéria inflamável.

Não há remorso nas labaredas que beijam os sentidos na esperança de postular uma cauterização lenta até ao cessar dos dias, como a queda num precipício infindo.

Ninguém percebe a vontade intrínseca do sal líquido derramado como consequência do fétido ardor que um verbo pode causar quando penetra o interior imaculado – como floresta virgem - isento de mágoas e nódoas.

Ninguém entende a extensão dos danos perpetrados pela radioatividade das palavras ácidas, propositadamente regurgitadas como cuspidela traiçoeira de um réptil mal-intencionado.

Ninguém compreende o desgosto de um tímpano ferido de inverdades. Há um mórbido desejo de surdez permanente, que é herético, mas apetecido como água fresca em dia desértico.

domingo, 15 de setembro de 2024

Contos que nada contam 24 (A colecionadora de cores) - Emanuel Lomelino

A colecionadora de cores


Quando lhe perguntavam o que queria ser quando fosse grande, Conceição respondia, sem hesitações:


- Colecionadora de cores.


Esta resposta fazia os adultos rirem, mas Conceição não entendia onde estava a graça. Ela falava a sério. Queria mesmo ser colecionadora de cores e não havia no mundo quem fosse capaz de demovê-la de tal propósito.

Ninguém sabe se esses risos impulsionaram o seu desejo, mas a verdade é que hoje todos a conhecem, como Conceição das Cores, e formam enormes filas à entrada de sua casa para verem a maior colecção de cores do mundo.

Diz quem já lá esteve que a colecção é tão vasta e tão completa que, a cada nova cor adquirida, os olhos de Conceição foram-se transformando nos artigos mais raros da colecção e agora são dois enormes arco-íris.

sábado, 14 de setembro de 2024

Lomelinices 13 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


13


Quando os vidros e espelhos se transformam em estilhaços espalhados de modo arbitral no solo roído pelos passos de outrora, não estão sós e isolados. Ficam na companhia da caliça que já foi reboco; de alguns tufos de pelos com proveniência incerta; de heras que se atreveram a romper o betão para despontar entre as frestas de um chão que já foi imaculado; de pedaços de mosaicos quebradiços que a passagem do tempo libertou; de fragmentos de papel retalhado e amarelado pelo mofo; de poeira bafienta originária de múltiplas fontes; de lascas de madeira caídas de armários descoloridos e empenados, cujas portas estão seguras por uma única dobradiça enferrujada; de uma poça de água choca que, volta e meia, é alimentada pela goteira que o telhado esburacado deixou formar, e por onde entram aves para o descanso nocturno ou para se protegerem.

Todo este entulho de ruína e caos é cúmulo de memórias descartáveis que alguém – que pode ser plural – deixou para trás como estivesse a abandonar o mais irrelevante de si.

sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Lomelinices 12 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


12


O ritmo, a cadência, a duração dos fragmentos de tempo é igual para todos, sem excepção. Ninguém vive segundos, minutos, horas, dias, semanas com maior duração do que os outros. A diferença está na forma como cada um usa o tempo; no modo como o gasta; na utilidade que lhe dá; no desaproveitamento que lhe faz.

O tempo é um só. Tão regular e contínuo, quanto obstinado e persistente na constância. O tempo é obsessivo, dono do seu nariz, pouco lhe importando a forma, o modo ou o jeito como o preenchem.

A génese das queixas sobre o tempo está no grau de prioridade que cada um, em toda a sua vitimização, dá ao tempo que lhe cabe. Por isso existem os desleixados e os organizados; os irrequietos e os cómodos; os espalhafatosos e os discretos; os inteligentes e os chico-espertos; enfim, aqueles para quem falta tempo e os outros que têm tempo de sobra. Apesar do tempo ser sempre o mesmo.

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Lomelinices 11 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


11


Erradamente, supôs-se que a vida seria uma simples equação matemática. Mas alguém, fraco no domínio da álgebra e apenas conhecedor dos números inteiros, enganou-se nos cálculos por não contemplar décimas, fracções, ou raízes quadradas.

Supostamente, a vida deveria ser um segmento de recta. Todos a partirem de um ponto A para chegarem, linearmente, a um ponto B. Mas alguém, fraco em geometria, olvidou a existência de círculos, triângulos, quadrados, etc. Tampouco conhecia ângulos, senos, cossenos, tangentes, catetos e hipotenusas.

Na verdade, de nada nos serve sabermos fazer cálculos avançados ou trigonométricos porque a complexidade da vida ultrapassa todas as ciências.

Para facilitar as coisas, pensemos na vida como uma enorme espiral irregular que contradiz todas as teorias conhecidas.

As contas nunca batem certas, os ângulos estão sempre errados, e as figuras geométricas têm formas difíceis de entender ou identificar.

Bem vistas as coisas, só o ponto de partida A e o ponto de chegada B são os elementos reais da equação da vida, tudo o resto são incógnitas disformes.

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 10 - Emanuel Lomelino

31-08-2024´


Por muito doloroso que seja admitir, não dá para negar que o universo da escrita, deste retângulo à beira-mar confinado, está órfão de valores, tanto literários como humanos.

Todo e qualquer sapateiro de vão-de-escada, com a devida vénia respeitosa aos que ainda exercem essa honrada profissão, autodenomina-se poeta e vive na ilusão de que basta espartilhar frases em versos para que as suas sentenças, vazias de conteúdo, sejam vistas como pérolas de sapiência poética.

Esses cerzidores de adjectivos avulsos fazem-se rodear de eunucos do pensamento, cujas cabeças são de mais fácil penetração por falta de hábito, para não dizer habilidade, em desenvolver raciocínios sem pontas soltas.

Entre os tecelões da preguiça intelectual há meia-dúzia que, imersos numa realidade ficcionada, tendem a abraçar os projectos que mais visibilidade lhes dão, com a mesma intensidade, e intencionalidade, com que mais tarde cospem nos pratos que os alimentam, fazendo-se passar por arautos da cultura (no primeiro caso) e damas ofendidas (no segundo), sempre com espalhafato circense para agregar os clamores dos zombies que cegamente os idolatram.

Por tudo isto prefiro os autores, de uma só cara, que laboram no silêncio das esquinas do olvido. Esses nunca serão lambe-botas nem ingratos.

terça-feira, 10 de setembro de 2024

Contos que nada contam 23 (A morte do intelectual) - Emanuel Lomelino

A morte do intelectual


Quando a imprensa noticiou a morte de Rodolfo Renan, uma onda de consternação e tristeza espalhou-se por toda a comunidade. Tinha falecido o intelectual mais respeitado e todo o mundo, desde o mais novo ao mais velho, do mais pobre ao mais abastado, sentiu a perda.

Depois, quando foi divulgado que havia sido suicídio, as opiniões começaram a divergir. Uns consideravam, tal facto, como um gesto de coragem. Outros viam como covardia. Durante semanas a fio, houve acesos debates e as coisas chegaram a aquecer de tal forma que ficou impossível não estar num ou noutro lado da contenda.

Curiosamente, no meio de tanta discussão, os motivos que deram origem ao suicídio nunca foram abordados. Só aquando da publicação do testamento é que as pessoas deram conta dessa falha e ganharam consciência de que, durante anos, tinham desfrutado das palavras de Rodolfo Renan sem entenderem que a beleza delas lhes ofuscara o entendimento e não tinham sido capazes de decifrar os seus lamentos, as suas angústias, as suas tristezas, os seus temores. Só aí entenderam que não tinham percebido os gritos de socorro do intelectual.

Todos sentiram que aquela morte, mais do que ter originado a discussão num tema fracturante, teve o condão de alertar para a necessidade de ver-se além da estética, pois nunca se conhece alguém sem saber dos caminhos trilhados.

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Lomelinices 10 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


10


É preciso abrir os olhos, para lá dos limites da fisionomia, para avistarmos tudo aquilo que, pintado com as cores da nossa inocência, nada mais é do que engodo e simulação.

É preciso ver além do alcance da vista para entendermos como estes espectros furtivos, que nos iludem na invisibilidade das intensões, são seres de carácter pérfido, dissimulado, vil.

É preciso atenção microscópica e redobrada para entendermos quão elásticas (como interesseiras) são as aproximações que nos fazem, dependendo da utilidade, ou falta dela, que nos outorgam.   

É preciso dar uso a toda a prudência, que a natureza nos emprestou, para sabermos quando sugam o ar que nos mantém ou sopram o veneno que nos intoxica, como insecticida.

É preciso reparar que, quase sempre, os benefícios de um ombro, que vislumbramos como gesto puro e sincero, são maçãs armadilhadas de gentileza encantatória e enganadora.

É preciso enxergar para lá do horizonte mais próximo e observar a distância mais remota para vermos com clareza o quão camufladas são as pretensões daqueles que, com vozes sussurradas, nos entoam aos ouvidos cantos de sereia.

domingo, 8 de setembro de 2024

Contos que nada contam 22 (A entrevista) - Emanuel Lomelino

A entrevista


- Encontra alguma razão que justifique terem-lhe atribuído este galardão, só agora, numa fase tão adiantada da sua carreira?


Herculano percebeu imediatamente, pelo extenso sorriso estampado nos lábios da jornalista, as intenções da pergunta colocada. Sem pestanejar, retribuiu o sorriso e respondeu:


- Eu poderia alegar vários motivos para esta distinção. Poderia falar em recompensa justa por todo o meu percurso. Poderia dizer que haviam retificado uma longa injustiça. Poderia afirmar que este júri foi menos parcial que os anteriores. Poderia referir que não houve concorrência à altura. Poderia alardear as minhas extraordinárias capacidades criativas. Poderia referir o meu estado de graça. Poderia falar da qualidade do meu trabalho. Poderia revelar conversas de bastidores. Poderia aludir a cunhas ou a aliciamentos. Poderia contar mil e uma histórias só para deleite de todos os telespectadores. No entanto, a verdade só pode ser uma de duas coisas… - fez uma pausa dramática, sentindo que a sua retórica estava a funcionar como previa, aguçando o apetite de escândalo que o rosto da jornalista revelava. – Finalmente, após décadas, consegui escrever um livro realmente bom ou, em contrapartida, e repetindo as suas palavras, quando anunciaram o meu nome, houve um engano. – não conseguiu evitar uma gargalhada perante o ar ofendido da jornalista, ao perceber que tinha caído no engodo. – Sinceramente, estou mais inclinado para aceitar a segunda hipótese. – concluiu triunfante, olhando directamente para a câmara.

sábado, 7 de setembro de 2024

Lomelinices 9 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


9


Quando os pensamentos querem ser vistos transfiro-os para um suporte e visto-os de palavras. Essas dão os braços, umas às outras, como numa roda de dança, e fluem a seu belo prazer sem a minha intervenção.

No início, na inocência do meu desconhecimento, mal se expunham, tentava dar-lhes um sentido mais legível, mas esse processo acabava, inevitavelmente, por lhes cortar o fluxo e, o que era uma ideia sólida, diluía-se no tempo com a busca da alternativa de discurso e perdia a força da mensagem base.

Com o tempo, e a experiência, aprendi a ser paciente e comecei a esperar o fim da transição para depois, então, fazer as alterações necessárias.

É por isso que, mais do que escrever, gosto da transpiração de limar verbos, raspar pontuação, desbastar complementos, cinzelar advérbios, polir sentenças.

E se me perguntarem a razão deste trabalho eu respondo que o meu cérebro é disléxico e tem sempre muita dificuldade em estar sincronizado com os pensamentos que lê.