quarta-feira, 31 de julho de 2024

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 5 - Emanuel Lomelino

06-07-2024


Mesmo defendendo que ninguém (absolutamente ninguém), seja em que situação for (económica, social, religiosa, política, etc), deve estar, por esses motivos, imune a críticas, não deixa de ser verdade que a maioria dos contestadores modernos não sabe, ou não quer, ficar-se pela justeza do argumento, preferindo lançar farpas, a torto e direito, como se não existisse uma linha, por mais ténue que seja, entre a crítica construtiva e a tentativa de aniquilamento moral.

Como se esta realidade não fosse suficientemente desprezível, ainda temos de adicionar os rebanhos de seguidores que, por falta de hábito em pensar pela própria cabeça, acendem as tochas do insulto barato e, de forma gratuita, juntam-se à horda bárbara, sedenta de sangue e linchamento.

Por norma, todos eles (críticos e apoiantes), padecem da mesma maleita (ingratidão e memória curta) porque é muito mais “engajador” o tumulto do que a discussão saudável e cordata.

Mas o valor das suas acções é tanto, e tão pouco, que só serve para textos reflexivos, como este, onde se aborda a conduta sem dar nomes aos bois, para não ficarem na história.

terça-feira, 30 de julho de 2024

Epístolas sem retorno 10 - Emanuel Lomelino

Ana Hatherly
Imagem retirada da internet

Prezada Ana,


Há em mim uma fome animalesca por conhecimento daquilo que não domino. É uma espécie de insaciedade visceral que leva os meus olhos ansiosos a transmitir informação ao cérebro, fazendo fervilhar cada neurónio. Esse frémito, por vezes borbulhante, é como uma adição psicotrópica, da qual não consigo libertar-me.

Este vício conduziu-me às Tissanas que, numa primeira fase, absorvi com curiosidade pelo profundo desconhecimento que tinha do género.

Confesso, foram-me um alimento ligeiramente indigesto, contudo, porque aprendo até com o que me soa evitável e sei separar qualidade literária daquilo que é o meu gosto pessoal, não tenho como proferir repúdio ou revelar aversão a esta obra. Simplesmente, numa forma global, não me identifiquei com ela, mas consegui extrair alguns sucos que poderão ser-me úteis em criações futuras. Com as Tissanas também aprendi e por isso agradeço-lhe.


Com gratidão

Emanuel Lomelino

segunda-feira, 29 de julho de 2024

Contos que nada contam 5 (Queijaria MJ) - Emanuel Lomelino

Queijaria MJ


O destino ordenou que Marcolina e Juvêncio estivessem sempre juntos desde o berço. Tiveram a mesma ama, frequentaram a mesma escola, seguiram os mesmos passos até que, chegado o momento, casaram e passaram a ser donos e senhores do seu próprio negócio.

Ambos aprenderam, com os seus progenitores, a arte dos ofícios que agora dominavam. Juvêncio era pastor e Marcolina era produtora de queijos.

As cabras que Juvêncio levava a pastar, todos os dias do ano, antes do sol raiar, forneciam o leite suficiente, e adequado, para que Marcolina produzisse os melhores queijos que alguma vez tinham sido feitos na região.

O sucesso deles foi imediato e o negócio cresceu tanto que viram-se na obrigação de contratar ajudantes para conseguirem dar resposta ao elevado número de encomendas que recebiam, todos os dias.

Felizes e empolgadíssimos com o êxito, Marcolina e Juvêncio trabalhavam de sol a sol e parecia que o tempo voava.

Mesmo grávida de gémeos, Marcolina nunca parou de trabalhar e só deixou de lado as tarefas mais pesadas quase no final da gestação. Simultaneamente, Juvêncio cumpria as suas rotinas diárias, verificando se as cabras eram levadas aos melhores pastos, se o leite era bem ordenhado e armazenado, se não faltava nada na queijaria e as encomendas eram expedidas correctamente.

O nascimento dos filhos reforçou-lhes a felicidade e renovou-lhes as energias para continuarem a ser bem-sucedidos no negócio da família. Com o esforço redobrado e máxima dedicação no trabalho, conseguiram que o filho se formasse em biologia e a filha em sociologia.

Marcolina e Juvêncio trabalharam até aos últimos dias de vida. Nasceram, viveram e morreram tal como o destino ordenara: juntos.

Para remate desta história, só falta dizer que o filho Marcolino é um obcecado seguidor do veganismo, e a filha Juvência é fervorosa activista dos direitos dos animais.

Adivinhem o que o destino reservou para a Queijaria MJ…

domingo, 28 de julho de 2024

Contos que nada contam 4 (Um homem vulgar) - Emanuel Lomelino

Um homem vulgar


Jeremias é um homem vulgar, com um caráter vulgar, uma vida vulgar, uma casa vulgar, um emprego vulgar, e uma rotina tão vulgar quanto ele. Apesar da vulgaridade, é um homem feliz.

A ambição é um pensamento estéril que só teve em duas ocasiões da sua vida, e ambas por ter sido questionado sobre o tema. Jeremias, por sua autorrecriação, nunca perdeu tempo para aprofundar a ideia.

No entanto, hoje, Jeremias confessou ao seu amigo Gervásio, ter passado toda a hora de almoço a invejar a exuberante vida do Ezequiel, companheiro de ambos nas tertúlias domingueiras no café da vila.

- Sabes, Gervásio, nem que fosse por um dia, gostaria de ter o intelecto e o carácter efusivo dele. Queria viver como ele vive, viajar constantemente, estar em lugares diferentes todas as semanas, ter uma casa maior, um emprego mais relevante, poder desfrutar das coisas que ele desfruta e ter uma vida mais agitada.

Gervásio acendeu um cigarro, bebeu um trago de cerveja, olhou o amigo com apreensão e retorquiu-lhe:

- A vida é engraçada! Ontem, nesta mesma mesa, estive a conversar com o Ezequiel, e ele disse-me que era capaz de dar tudo o que tem para ser como tu: mais contido, mais humano, mais caseiro, mais modesto, ter mais serenidade em casa, no trabalho, e poder viver a vida de forma mais tranquila, sem a obrigação moral de agradar, seja a quem for. E deixa-me que te diga, Jeremias, sinto o mesmo que ele. Ao contrário do que pensas, a simplicidade da tua vida faz de ti um homem especial. Alguém que todos nós gostaríamos de ser, mas nunca conseguimos porque ficámos obcecados em obter coisas efémeras, em vez de nos limitarmos àquilo que realmente importa – a felicidade. E, no nosso grupo, tu és o único que sabe o que é isso.

sábado, 27 de julho de 2024

Epístolas sem retorno 9 - Emanuel Lomelino

Neil DeGrasse Tyson

Ilustre Neil,


Um pouco em contramão à minha natureza céptica, há dias dei por mim a matutar na eventualidade do nosso planeta ser uma aberração do universo.

Estando em trânsito numa área de rara beleza, segundo os nossos padrões estéticos, pus-me a pensar no quão extravagante é a ideia de, na imensidão cósmica, apenas existir um planeta como o nosso.

Se analisarmos bem esta possibilidade, facilmente chegamos à conclusão de que a nossa existência, tal qual se apresenta e a compreendemos, só pode ser um acaso furtuito ou, porque não, um aborto cósmico.

Na minha assumida ignorância sobre esta temática, e ciências associadas, há uma tremenda dose de esperança em que esta proposta se revele falha e, algures noutros lugares, existam espaços semelhantes.

Não digo idênticos porque isso revelaria que existiriam mais mentecaptos convencidos da sua inteligência e, igual por igual, sempre seria preferível sermos únicos. Assim só se estragava uma casa.


Leigamente

Emanuel Lomelino

sexta-feira, 26 de julho de 2024

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 4 - Emanuel Lomelino

Imagem dn

 30-04-2024


As nomeações para cargos públicos são, sem sombra de dúvida, momentos que retiram credibilidade à classe política.

Por mais argumentos que sejam usados, tanto pelos membros do governo ou da oposição, fica cada vez mais claro que os posicionamentos assumidos pelas partes defendem os interesses dos diferentes quadrantes ideológicos em detrimento daqueles que poderiam beneficiar as instituições e/ou a nação.

A velha máxima “jobs for the boys” transformou-se na forma privilegiada de conduta, transversal a todos os partidos e nenhum deles parece dar valor à competência. Depois, quando confrontados com permanentes irregularidades administrativas, todos sacodem a água do capote e recusam assumir as suas, inequívocas e óbvias, responsabilidades.

quinta-feira, 25 de julho de 2024

Contos que nada contam 3 (Livre-arbítrio) - Emanuel Lomelino

Livre-arbítrio


Quando Júpiter, Thor e Zeus fizeram ribombar os céus, todas as divindades decidiram lançar, sobre a Terra, a promiscuidade para que os humanos fossem livres como os deuses.

Mas de boas intenções, Plutão, Hades e Hel, estavam cheios, por isso acrescentaram livre-arbítrio à enxurrada divina, na certeza de que isso originaria conflito entre os mundos celestes e terrenos.

Então a humanidade sublevou-se e decidiu fundar outras religiões e dirigir os seus agradecimentos, pelos poderes divinos, aos deuses recém-criados.

Os deuses originais enfureceram-se e formaram o maior exército de bestialidades alguma vez reunido. Ares, Marte e Odin eram os generais e tinham sob o seu comando Cérbero, Kraken e Minotauro, entre outras aberrações divinas.

Mas, com o livre-arbítrio em seu poder, a humanidade, que agora conhecia, de olhos fechados, o poder de Nirvana, nada temeu e tratou da saúde dos deuses, um a um, através de ludíbrio, engodo, embuste e promessa de memória eterna aos titãs Atlas e Prometeu, seus progenitores, Ásia e Oceano, e aos semideuses Hércules, Atena, Apolo, Dionísio, Baco e Perseu.

Muitas foram as maleitas que acometeram os deuses primevos através das doses de humanidade venenosa que lhes foram servidas em cópias de Santo Graal, forjadas pelos Ciclopes enganados por Minerva.

A história é longa e contém muitas outras histórias que não cabem aqui neste espaço. No entanto, deve ser dito que, apesar da artimanha montada, Plutão, Hades e Hel, cujas cabeças foram cortadas, tal como feito com Medusa, não escaparam à astúcia humana e foram substituídos por Lúcifer, o actual senhor das trevas que nos ensombram.

quarta-feira, 24 de julho de 2024

Epístolas sem retorno 8 - Emanuel Lomelino

Arthur Schoppenhauer

Professor Arthur,


No estudo do seu manual “A arte de ter sempre razão” prescindi do conhecimento sobre todos os estratagemas quando me deparei com a descrição ipsis verbis de uma tese que, não tendo desenvolvido com a sua erudição, tenho articulado em alguns textos de minha lavra.

A conclusão óbvia é a constatação de que existem comportamentos transversais no tempo e que hoje (século XXI) a superioridade arrogante da humanidade em relação ao passado é tão evidente quanto ridícula. Mais ainda por ser falha de originalidade.

Saiba o professor que, por absurdo que possa parecer, essa conduta de rebanho que identificou no seu século XIX, qual epidemia, alastrou-se até aos meus dias, com a curiosidade de o meu diagnóstico ser exactamente o mesmo usado por si: tudo se deve à preguiça de pensar.

Sim, professor, ainda hoje basta que alguém advogue um conceito não comprovado, que logo será coadjuvado por alguns acólitos de ocasião e, como milagre bíblico, multiplicam-se na propagação da ideia porque, como disse, bem melhor que eu, a maioria prefere acreditar na falácia por preguiça de despender tempo a analisar a veracidade do conceito advogado, enquanto outros são naturalmente incapazes de formar opinião própria porque, para eles, é mais fácil morrer do que pensar.

 

Mero observador do mundo

Emanuel Lomelino

terça-feira, 23 de julho de 2024

Contos que nada contam 2 (O besouro) - Emanuel Lomelino

O besouro


A vida é um infinito encadeamento de instantes - acções que geram reacções. Por isso, quando um besouro emerge da sua tumba íngreme há pedras que rolam e empurram outras, rumo ao precipício. A minúscula avalanche que se forma assusta o gamo que começa a correr ladeira abaixo e atravessa uma estrada asfaltada, onde, no mesmo instante, passa um veículo que não consegue evitar a colisão. A violência do embate faz com que o condutor da máquina perca o controlo e o carro saia disparado, qual pássaro na primeira tentativa de voo, na ravina que ladeia a estrada. Após quatro mortais e três piruetas, a máquina estatela-se numa bola de fogo que, rapidamente se alastra ao bosque que aí existe. As línguas de fogo lambem, inclementes, toda a vegetação e chamam a atenção do peregrino que está a descansar no miradouro que existe do outro lado. Apesar do choque, essa alma boa mantém o sangue-frio e alerta as equipas de emergência que, imediatamente, ocorrem ao local dos sinistros. Na tentativa de apagar o gigantesco incêndio que se formou, um bombeiro, que nesse dia deveria desfrutar de folga, ficou inconsciente por inalação de fumo, e outro, que veio directamente do tribunal por causa do divórcio, sofreu graves queimaduras por ter tropeçado num pedregulho ocultado pela fumaça espessa. Lá no alto, ao deparar-se com o cadáver do herbívoro a servir de repasto a duas aves necrófagas, um polícia, que na véspera tinha assistido ao nascimento da primeira filha, chega à conclusão que não tem estômago e decide mudar de profissão. Depois de muito esforço para desencarcerar o corpo da viatura sinistrada, o chefe da divisão de trânsito reconhece o pendente e a aliança da vítima e entra em choque, precisando de atendimento médico.

As exéquias são celebradas dois dias depois da ocorrência, no cemitério que existe no topo da montanha. Estão presentes todos os que estiveram no local, com excepção dos dois bombeiros feridos, do recém papá e do chefe da divisão de trânsito que teve de ser internado com um esgotamento nervoso pelo falecimento do filho. Também está presente o peregrino que, coincidentemente, é o padre daquela paróquia e teve de cancelar a peregrinação. Ele assistiu a tudo desde o início e agora, que o corpo da vítima já foi enterrado, imerso em mil pensamentos samaritanos, os seus olhos veem um pequeno besouro que mergulha na terra recentemente revolvida, sem imaginar que tudo o que aconteceu foi apenas o resultado de uma corrente de eventos iniciados por aquele mesmo insecto.

segunda-feira, 22 de julho de 2024

Epístolas sem retorno 7 - Emanuel Lomelino

Mário Quintana
Imagem seguinte

Prezado Mário


Mesmo que os anjos voem de cabeça para baixo, por terem asas nos rabos, não há disformidade alguma que lhes retire o ar celestial e a inocência dos rostos.

E isto porque as divindades são seres de fino humor, tão sarcásticas quanto benevolentes, que usam artifícios forasteiros ao entendimento humano, só para que as tenhamos sempre presentes nos nossos raciocínios falhos.

Elas fazem tudo com hiperbólica premeditação, na certeza de que a razão que nos assiste não é suficientemente astuta para decifrar as teias com que urdem os passos que nos impõem.

Assim, nobre poeta, limitemo-nos a confundi-las com os nossos estros, amputados pelos cornos da criação. Quem sabe, desse modo, consigamos ficar mais perto de receber as nossas próprias asas. Mesmo que colocadas nos rabos.

 

Impiamente

Emanuel Lomelino

domingo, 21 de julho de 2024

Contos que nada contam 1 (Reunião de condóminos) - Emanuel Lomelino

Reunião de condóminos


Com três batimentos cardíacos, o Coração assinalou o começo da reunião de condóminos.

- A pedido do Cérebro, vizinho das águas-furtadas, estamos aqui reunidos para decidir, de preferência, por unanimidade, quais as próximas remodelações a efectuar no nosso edifício. Devemos ter em atenção que, devido às actividades do passado, tanto os membros inferiores como os superiores já não têm a força e genica de outrora, são acometidos de constantes tendinites e, cada vez mais, sentem desconforto muscular. Os irmãos Olhos, que já sentem dificuldade em ajudar-nos nas letras miúdas, porque passaram os últimos anos a trabalhar em nosso benefício, precisam de vidros e a entrada de catering precisa de material novo porque o existente, que há muito foi reduzido, já não faz o trabalho nas melhores condições, para descontentamento do vizinho Estômago.

Ao que parece, embora não esteja tudo perfeito, os irmãos Pulmões, o vizinho Fígado, os Rins e a Dona Bexiga concordam que os problemas apresentados são realmente prioritários.

A reunião foi interrompida e adiada porque os Ouvidos fizeram-se de moucos, o empinado Nariz disse que tudo lhe cheirava a esturro, os Intestinos indignaram-se e borrifaram-se para os demais, e alguns neurónios decidiram fazer greve de zelo por ainda não terem recebido as horas extraordinárias referentes à reunião anterior.

Não se sabe em que data o assunto vai ser retomado porque está a chegar o mês de férias e a Pele não vai abdicar da oportunidade de ficar bronzeada.

sábado, 20 de julho de 2024

Epístolas sem retorno 6 - Emanuel Lomelino

Adam Zagajewski
Imagem jornal i

Senhor Zagajewski,

 

Para mim a miséria não está à distância de um gueto varsoviano, tampouco no exílio forçado em Montmartre às expensas de compatriotas desvalidos. A minha penúria resulta da inexistência de mecenas, da liberdade, fraternidade e igualdade, dispostos a apoiar a criação de textos, tão desgraçados quanto eu. A indigência que transporto, e me verga, advém da minha origem ocidental, sem gene áfrico, oriental ou hebreu, como se os males do mundo nascessem desta costela caucásia. E para meu infortúnio, todas as palavras que garatujo, de alma limpa, serão interpretadas como fazendo parte do discurso de um privilegiado, mal-agradecido por ter visto a primeira luz da vida nestas terras soalheiras, à beira-mar plantadas. O pior é que as tendinites nos membros – por carregar sacos de massa e gesso cartonado – os dedos inchados - pelas marteladas falhadas, em buchas e pregos – e os cortes na pele – pelo ricochete dos estilhaços de betão – não atenuam a culpa que me outorgam por acreditar que estou longe de ser beneficiado.

 

Com sinceridade,

Emanuel Lomelino

sexta-feira, 19 de julho de 2024

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 3 - Emanuel Lomelino

Imagem 123rf

 04-02-2024


A propósito da campanha publicitária da IKEA, e das notícias sobre as tentativas, de autarcas e governo, para que a mesma não visse a luz do dia, foram inúmeros os “analistas de ocasião” a usarem esse facto para “provarem” que não vivemos em democracia.

Infelizmente, tenho de alertar, os mais desavisados, que o conceito de democracia é incompatível com o gosto, ou percepção pessoal, de cada um. Antes, é um ponto de equilíbrio entre diferentes ângulos de análise.

Neste caso concreto, a democracia foi levada ao extremo. Uns usaram-na para efeitos de publicidade, com humor, sagacidade e oportunismo legitimo, outros usaram-na no seu direito de opinião.

A falta de democracia existiria se a campanha tivesse sido anulada pelos interesses de alguns incomodados. Ora, isso não existiu.

Alguns dirão: - Ah, mas a tentativa de censura existiu e isso é antidemocrático! – A esses respondo: - Tentativa não é facto. E atitudes antidemocráticas não significam ausência de democracia.

Deixemos de gritar “olhó lobo” por tudo e nada. Um dia o lobo aparece de verdade, ninguém acredita, e depois é tarde…

quinta-feira, 18 de julho de 2024

Epístolas sem retorno 5 - Emanuel Lomelino

Machado de Assis
Imagem casavogue

Prezado Machado,


Confesso que só recentemente tive acesso a parte da sua obra, mas prometo embrenhar-me o mais fundo que puder, seguindo as recomendações de quem conhece milimetricamente o seu acervo.

Embora o primeiro contacto tenha acontecido em segundas núpcias – o mesmo é dizer: por ter trabalhado na adaptação de um livro baseado num dos seus romances de maior renome, “Dom Casmurro” – fiquei a conhecer um pouco das suas dinâmicas e fiquei com apetite de saborear a riqueza das letras que nos legou.

Entretanto, nesse pouco que consumi, encontrei um aspecto que nos une em pensamento. Tal como você, dei o melhor de mim para não transmitir a nenhuma criatura a miséria do meu tempo, e alegro-me por também ter conseguido ser bem-sucedido.


Expectante

Emanuel Lomelino

quarta-feira, 17 de julho de 2024

Epístolas sem retorno 4 - Emanuel Lomelino

Agostinho da Silva

Mestre,


Sei que abomina a titulatura, no entanto, seja por defeito ou teimosia, o trato que lhe faço está relacionado com o meu conservadorismo literário.

Ao contrário de si, avesso aos epítetos hierárquicos, a maioria dos autores deste tempo não tem pejo em autonomear-se algo, mesmo quando estão longe de reunir os elementos necessários para merecer tais honrarias.

A situação chegou a um grau de desfaçatez tão grande que, aos meus pobres olhos, todos os títulos honoríficos deixaram de significar aquilo que representavam na sua origem, para ganharem valores depreciativos.

Coitados dos vates de outrora que, pelos trâmites de agora, passam a ser apenas mais uns quantos neste desfile carnavalesco, onde todos podem usar as máscaras que bem entenderem, fazendo-se passar por aquilo que nunca foram e jamais serão.


Sempre aprendiz

Emanuel Lomelino

terça-feira, 16 de julho de 2024

Epístolas sem retorno 3 - Emanuel Lomelino

Jorge de Sena

Prezado Jorge,


Houvesse justiça divina – ou genérico – estaríamos agora a celebrar a unificação linguística lusófona, tal como foi possível partilhar autores maiores, em vez de nos deixarmos aprisionar pela amputação das regras básicas da fonética, como quem se resigna ao autofagismo.

Mas como apenas nos outorgaram legitimidade para expressarmos desacordo – porque todas as outras legitimidades foram-nos vedadas – restou-nos a possibilidade de manifestar o nosso posicionamento através da não aplicação das normativas impostas.

O mais chocante em todo este processo foi o alheamento, quase total, da comunidade literária, como se a uniformidade linguística não os afectasse directamente.

Infelizmente, os autores maiores – conhecedores da real importância da diversidade linguística - já se foram e, com vocês, também a força argumentativa que nos faltou.


Inconformadamente

Emanuel Lomelino

segunda-feira, 15 de julho de 2024

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 2 – Emanuel Lomelino

21-01-2024


Considero-me um cidadão de espírito aberto porque, mesmo nas questões em que não me revejo, consigo respeitar as convicções alheias. Mas também tenho um lado mais conservador que me incapacita de manter imparcialidade quando vejo a inversão completa de prioridades, em nome dos novos paradigmas.

Não há muitos anos debatíamos a possibilidade de incluir, nos programas escolares, a disciplina de educação sexual. Hoje discute-se a criação de equipamentos sanitários mistos.

Correndo o risco de parecer um “velho do Restelo”, concordei com a primeira, discordo da segunda. Por muito básico que pareça o argumento, pelo menos a primeira incluía a palavra educação… E essa não pode, em circunstância alguma, ser negligenciada.

Não havendo capacidade para solucionar todos os problemas em simultâneo, resolva-se primeiro o problema dos índices de aprovação escolar, ou corremos o risco de ver algumas gerações serem estupidificadas, bem ao estilo norte-americano.

domingo, 14 de julho de 2024

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 1 - Emanuel Lomelino

17-01-2024


Sou acérrimo apologista da liberdade de expressão e defendo que esta prerrogativa é universal, inviolável e ninguém pode ser impedido de a exercer.

Posto isto, mesmo não concordando com as causas patrocinadoras de algumas manifestações, que têm acontecido nos últimos tempos, não posso opor-me ao direito que assiste aos que nelas se reveem. E condeno todas as acções que violem esse direito.

Posso, sim, exteriorizar a minha preocupação pelo radicalismo que grande parte dos manifestantes demonstra, principalmente, ao reagir com fúria e, até, violência, contra quem tem opiniões distintas ou opostas.

Esse comportamento condenável só pode ter origem em uma de duas motivações – impor uma convicção, ou elitizar os direitos.

Seja qual for o propósito, ambos são completamente antagónicos à mesma liberdade que tem permitido a existência de manifestações, que não podem ser déspotas.

sábado, 13 de julho de 2024

Epístolas sem retorno 2 - Emanuel Lomelino

Carl Jung
Imagem thesap

Prezado Carl,


Apesar de conseguir entender a generalidade dos argumentos usados em defesa da Teoria das Sombras, permito-me considerar que, em alguns casos, a aplicação seria bem mais nefasta do que benéfica.

Acaso previu a arbitrariedade intelectual do génio humano? Porventura, refletiu sobre toda a extensão interpretativa que a sua tese permite?

Lembro-lhe que a humanidade é heterogénea, logo, também engloba elementos com tendência para fazer leituras erróneas, interpretar de acordo com os seus interesses mundanos e desvirtuar conceitos, por mais claros e dogmáticos que possam parecer.

Dito isto, creio que aprofundar o conhecimento dos aspectos mais negros pode ser fulcral para que cada um possa conhecer-se melhor, no entanto, fazer uso permanente desse entendimento não garante a otimização do carácter de todos os indivíduos.


Com estima

Emanuel

sexta-feira, 12 de julho de 2024

Epístolas sem retorno 1 - Emanuel Lomelino

Fernando Pessoa
Imagem repubblica

Caríssimo Fernando,


Sabes que a única semelhança, que detecto entre nós, reside na esquizofrenia que nos define. Tudo o resto nem cabe na mesma frase.

Pois bem, estive a reflectir e cheguei a uma conclusão definitiva (perdoa a redundância). Embora padecendo da mesma condição, ao contrário de ti, nunca tive a capacidade para me desmultiplicar e, só por essa razão, continuo a manter-me uno.

Para além disso, até na teoria do nosso deslocamento temporal comum tu levaste vantagem, uma vez que profetizaste o destino e alcance do teu acervo criativo (parabéns por isso), enquanto eu tenho de contentar-me em viver todos os dias que me restam com a certeza de que o meu lugar era num tempo que aconteceu antes mesmo de ter nascido.

Cada um com o seu fado.


Com admiração,

Emanuel

quinta-feira, 11 de julho de 2024

Diário do absurdo e aleatório 366 - Emanuel Lomelino

Esta é a última página do Diário do absurdo e aleatório, no entanto, é o primeiro texto a ser escrito para este projecto, que nada mais é do que um desafio pessoal ao nível dos exercícios de escrita que me habituei a criar.

Aliás, escrever estas palavras iniciais acaba também por ser um desafio, tendo em conta que estou a fazê-lo com um ano de antecipação e não faço a mínima ideia do rumo que a vida e este desafio terão levado.

Feita a introdução, deduzindo que não aconteceu nada impeditivo e haja alguém que tenha acompanhado as páginas do diário, as próximas linhas serão escritas como se estivesse a fazê-lo depois de publicados todos os restantes textos. Pelo menos para alertar sobre o desfasamento temporal entre a produção dos textos e a respectiva publicação nos blogues e sequente partilha nas minhas páginas das redes sociais.

Assim sendo, esclareço que a ideia deste desafio foi exercitar a minha capacidade de escrita em prosa, através de pequenos textos, de forma continua e disciplinada, mas sem grandes preocupações literárias ou estilísticas. Essas deixo-as para as minhas criações poéticas, que só veem a luz do dia quando publicadas em livro.

Não podendo dissertar sobre o conteúdo dos textos, mas sabendo quem sou, como funciono e penso, não tenho dúvidas que a maioria dos textos tem alguma ligação ao universo literário, e os livros foram o ponto de partida para muitos exercícios.

Por esta altura, completados os 366 dias de validade deste desafio, já devo ter mais algum em marcha, certamente não tão longo, mas também desafiador, bem do meu jeito.

Para finalizar, e uma vez mais na perspectiva de ter havido alguém a acompanhar as absurdas e aleatórias páginas do diário, agradeço todas as reacções, tenham sido comentários ou simples “gostos”.

quarta-feira, 10 de julho de 2024

Diário do absurdo e aleatório 365 - Emanuel Lomelino

Encerra-se um ano de palavras exercitadas na mais completa aleatoriedade, em que, mesmo não parecendo ou nem sendo por inteiro, o lado absurdo deste ofício da escrita foi imagem de marca e objecto de criação prática avulsa.

As páginas deste Diário do Absurdo e Aleatório, preenchidas sem qualquer pretensão literária (pelo menos não lhes reconheço esse mérito), foram uma fase de aprendizagem continuada que chegou ao fim sem que se tenha esgotado o propósito.

Treinar a escrita sempre foi, e será, a melhor forma de evolução e os desafios de cada texto, aliados à disciplina férrea autoimposta, permitem deambular por mundos de experimentalismo e descobrir as especificidades de cada fórmula, de cada conceito, de cada abordagem, e identificar quais os caminhos que melhor de adequam à voz literária.

Outros exercícios, tão ou mais absurdos e aleatórios, mas com o mesmo propósito, já estão em pré-agendamento porque, enquanto autor, quero que os leitores conheçam todo o processo criativo – não só o acervo editado.

Assim, os textos deste Diário do Absurdo e Aleatório, tal como os próximos, devem ser entendidos, apenas e só, como exercícios que servem para que possa treinar e aferir o estado evolutivo da minha escrita e cujos resultados, positivos e negativos, sirvam para que as minhas criações editáveis sejam mais bem buriladas.

terça-feira, 9 de julho de 2024

Diário do absurdo e aleatório 364 - Emanuel Lomelino

Os bons livros nunca são aqueles cujo enredo, a trama, ou a estória, são construídos na perfeição da lógica. Tampouco são aqueles em que o sol sempre brilha ou a chuva é louvor.

Um bom livro é aquele que incomoda, que incendeia os pensamentos, que agita o solo que pisamos, que estupra a mente deixando sementes de incógnita e desconforto.

Um bom livro é aquele que dá raiva, que inflama os sentidos, que provoca terramotos emocionais, que nos faz duvidar de todos os dogmas e acreditar que é utópico pensar em utopias.

Um bom livro é aquele que enfurece, que queima as pálpebras, que abala todos os alicerces, que nos chocalha de forma intermitente, que nos sacode a alma com violência.

Um bom livro é aquele que desperta as nossas sombras mais profundas, que faz brotar luz nas trevas do nosso ser, sem tabus nem condicionantes.

Um bom livro é aquele que nos revolta, que nos engessa, que nos decapita, que nos mutila, mas mesmo assim liberta-nos do fastio, da mesmice e das masmorras da ignorância.

segunda-feira, 8 de julho de 2024

Diário do absurdo e aleatório 363 - Emanuel Lomelino

Soltam-se as plumas da noite e a lua – porta-estandarte de todos os astros – deixa-se ver no máximo expoente das suas crateras, como quem exibe umbigos e brotos. E nem a obscuridade dos cúmulos noturnos lhe retira o brilho emprestado.

Na sua nudez aristocrática e presunçosa derrama uma áurea hipnótica, quase magnética, que cativa os uivos caninos, o trinar das guitarras e os apetites canalhas dos malandros mais ousados.

Também os gatos, felinos com refletores nos olhos, demonstram boémia ao luar e por isso fazem dos telhados os seus lugares de eleição para escrutinarem eventuais descuidos de roedores audazes, juntando-se, assim, às corujas de olho grande e aos morcegos acrobatas.

E quando os aspersores molham os jardins, a horas fora-de-horas, são mais os sonos consumados do que as insónias imprevistas ou propositadas, e os pirilampos – quais vigilantes de turno – iluminam os caminhos aos louva-deus e às formigas que perderam a noção do tempo, por terem preferido assistir ao concerto integral das cigarras vagabundas.

domingo, 7 de julho de 2024

Diário do absurdo e aleatório 362 - Emanuel Lomelino

Ei-los, os prisioneiros do infortúnio que deixaram de ver quando colocaram as vendas costuradas pelas próprias mãos e insistem na inocência, outorgando todos os delitos a terceiros.

Ei-los a marchar altivos nas suas algemas de sofrimento reptiliano, com lágrimas insonsas e esgares lamuriosos copiados de folhetins radiofónicos.

Vejam quão intensas são as improvisações cénicas, com gestos eloquentemente fátuos de exagero, gritos estridentes de vergonha alguma e prantos de vexame enlameado.

Vejam como se amontoam nos muros da choradeira e alardeiam em danças uníssonas os seus pesares comuns, como insectos a comunicar novos lugares de colheita.

Ah, essas vítimas de culpa alheia que sofrem nos labirintos da comiseração enquanto apontam o indicador em todas as direcções esquecendo-se de observar os outros dedos.

sábado, 6 de julho de 2024

Diário do absurdo e aleatório 361 - Emanuel Lomelino

Os escritores são seres camaleónicos, quase trapezistas, que deambulam, em equilíbrio precário, na ténue linha que separa a realidade da ficção.

Tanto vestem as suas cores como outras peles, de acordo com a sensibilidade que têm ou desejariam ter, numa busca incessante da perfeição que sabem não existir.

Percorrem trilhos de convicção, por vezes contrária aos seus princípios morais, apenas para dar humanismo às suas letras e ficarem mais próximos das verdades daqueles que os leem.

Os escritores são personagens com múltiplas caras e outras tantas esquizofrenias, em benefício da criação, em nome da obra, em prol da literatura, em proveito próprio.

Afirmo. Por mais que se consigam interpretar os textos, é impossível conhecer um escritor através das palavras. Até se pode identificar a origem de algumas feridas ou detectar cicatrizes, mas nunca a essência das escaras.

sexta-feira, 5 de julho de 2024

Diário do absurdo e aleatório 360 - Emanuel Lomelino

Imagem pinterest

Esgotou-se-me o sono, como acontece em todas as madrugadas de preguiça, e fico aqui, estaticamente deitado, a observar o silêncio aleatório da noite alta.

Na fluorescência dos pensamentos, que roem as sobras da modorra corporal, dou por mim a vaguear entre sonhos esbatidos, convicções dormentes, desejos impertinentes, certezas dúbias e outras leviandades do espírito, que só o próprio poderia explicar se fosse essa a sua vontade (que nunca é).

No meio desta sessão de tramas tão absurdas quanto despropositadas – porque a clareza das ideias nocturnas hão de esbater-se nos labirintos do mundo real – oiço o início da sinfonia piadora das aves, empoleiradas nos inexpressivos salgueiros, como estivessem a culpar-me pela sua insónia.

Abeiro-me da janela e solto um chiu mental para não acordar a vizinhança, e os pássaros, que parecem entender-me durante meio segundo, regressam às suas reclamações chilreadoras com vigor redobrado.

Perante a insolência canora, volto ao leito que esfria e sou esbofeteado pelo único pensamento lúcido que os primeiros raios solares iluminam: ainda estou de estômago vazio.