quinta-feira, 13 de março de 2025

Prosas de tédio e fastio 10 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


10


Todos temos dois lados, cientificamente identificados – consciente e inconsciente.

Ambos trabalham em uníssono, ajudam-nos nas questões diárias, a cada instante fazem-se presentes e manifestam-se em permanência, embora nem cheguemos a nos aperceber desse facto.

Na verdade, todas as nossas decisões são influenciadas pela dupla dinâmica da consciência, no entanto, talvez por ser mais confortável ou, quem sabe, menos incriminatório, temos tendência para explicar os nossos comportamentos através da superficialidade do consciente em vez de alinharmos na profundidade do inconsciente. Aliás, a nossa inclinação pelo consciente é tão óbvia que colocamos a outra vertente com um papel subalterno chamando-a de subconsciente.

Posto isto, e porque tudo existe porque nós existimos (consciente confortável), quando nos queixamos de algo, estamos efectivamente a queixarmo-nos de nós próprios (inconsciente incriminatório).

quarta-feira, 12 de março de 2025

Papaguear cultura 10 - Emanuel Lomelino

Papaguear cultura 


10


Ninguém discute que a criação é o expoente máximo de satisfação de qualquer criador. No entanto, este aforismo tem sido levado ao extremo das suas competências, como podemos observar, amiúde, na atitude de muita gente.

Há quem se julgue criador supremo e tente – por vezes consegue – moldar os outros à sua semelhança, ou de acordo com aquilo que pretende que os demais sejam, ignorando que todos têm o seu próprio caminho a percorrer e direito a fazê-lo na plenitude da sua individualidade e natureza, sem interferências, intromissões nem intervenções externas.

Este comportamento só tem sido possível porque, para infelicidade da espécie, há muita gente que, por medo da rejeição, faz tudo para se sentir incluída, inclusive, entregar o domínio das suas acções a outrem.

Este tipo de, chamemos-lhe, interacção é apenas uma relação tóxica entre manipulador e subserviente. E a satisfação de um criador jamais pode advir de manipulação – porque criar é parir e nunca usar – nem a criação pode ser servil – porque é bênção.

terça-feira, 11 de março de 2025

Pensamentos literários 19 - Emanuel Lomelino

Pensamentos literários 


19


Os bons livros são aqueles que exercem a função de mestres e, sem presunção nem culto de personalidade, dispõem-se a olhar-nos – meros aprendizes – como seus iguais, deixando-nos desfrutar a nossa independência intelectual.

Enquanto leitores, discípulos atentos dos discursos impressos, cabe-nos a tarefa de interpretar, per si, meditar e retirar as conclusões que acharmos mais assertivas, de acordo com o nosso entendimento.

A relação livro/leitor (mestre/aprendiz) é a que mais se aproxima da interacção perfeita. Um ensina, outro aprende. Um sugere, outro intui. Um revela, outro descobre.

Os bons livros não são arrogantes. Os bons leitores são modestos. Os bons livros partilham. Os bons leitores absorvem. Os bons livros não são herméticos. Os bons leitores desenvolvem pensamentos.

Como diz, repetidamente, um colega de trabalho: “Quando o mestre é bom…”

segunda-feira, 10 de março de 2025

Devaneios sarcásticos 13 - Emanuel Lomelino

Devaneios sarcásticos 


13


Agostinho da Silva sempre demonstrou aversão ao epíteto “mestre”, preferindo identificar-se como eterno aprendiz, e queria ser poema em vez de poeta.

Estas duas ideias, tão simples e entendíveis, servem, como contraponto perfeito, para entender a falta de altruísmo que grassa na sociedade actual.

Hoje, em diferentes círculos de autores (que podem sê-lo ou não), é comum – para não dizer norma – a autodenominação de epítetos, sem que a embalagem corresponda ao produto.

Hoje, ao contrário do que acontecia no tempo do “poema” Agostinho, nascem “poetas” a rodos, a cada conversa, a cada sarau, a cada tertúlia, numa clara expressão de individualismo e idolatria exacerbados.

Mais curioso é que os actuais “mestres” – porque assim se consideram – são avessos ao ensino, apesar da alegada extrema sabedoria e conhecimento que possuem.

Perdemos o “poema altruísta”, proliferam os “poetas egocêntricos”.

domingo, 9 de março de 2025

Papaguear cultura 9 - Emanuel Lomelino

Papaguear cultura 


9


Ao longo dos anos tenho-me confrontado com muitos comportamentos que, analisados em detalhe, só prejudicam o universo da escrita. O exemplo mais flagrante é a criação de grupos elitistas – sendo que este elitismo literário varia entre grupos, mas impactua decisivamente nos percursos dos respectivos integrantes, para o bem e para o mal.

Para mim, a raiz deste problema é, mais do que uma questão de interpretação ou conceito de qualidade literária, uma demonstração clara de egocentrismo.

Ao contrário de épocas anteriores, em que os autores exerciam o seu ofício com conceitos filosóficos e criativos pré-definidos, de acordo com a corrente artística em que se reviam, hoje ninguém sequer reconhece esses movimentos e, apesar de criarem a mesma coisa, da mesma forma e com o mesmo objectivo, dividem-se em grupos distintos, mas com bases idênticas.

Por outro lado, e talvez o sintoma mais óbvio do egocentrismo apontado, hoje ninguém quer discutir conceitos e filosofias por necessidade em etiquetar as suas criações como expoente máximo da arte e, por essa razão, faz-se rodear por outros que, manifestando o mesmo desinteresse pelos movimentos artísticos, tampouco sabem identificar as diferenças (incoerências) existentes no seio do próprio grupo.

Haverá algo mais prejudicial para as artes do que a incapacidade dos criadores em explicarem as suas criações, para além de chavões pueris como: “expressão da alma”, “inspirado na vida”, “fruto de inquietações”?