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terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Bailados de Roberta Sá



Formada em balé clássico, Roberta começou cantando samba e desenhando passos curtos pelos palcos: sua história é com o canto. Depois de oito anos de requebros e dia mais intimistas, consolidou a carreira de um jeito manso, como é sua voz. Diversifica ritmos, já fez temporada de bailes de carnaval e, pra tudo acabar em festa, está preparada para ser mãe.   

A cantora Roberta Sá tem um relógio na cintura. Aos 32 anos e casada com o também músico Pedro Luís, ela leva cada vez menos trabalho pra casa, embora a inspiração – como é praxe no universo artístico – não tenha hora para acontecer. O que lhe salva, como costuma dizer, é uma música de Chico Buarque, já gravada por ela: “Eu faço samba e amor até mais tarde e tenho muito sono de manhã.”
“Estou numa idade em que isso sempre está na cabeça e filho é algo que a gente quer muito”, diz, alegando que, apesar de a música estar no cotidiano dos dois, nos momentos de intimidade há trégua. “É difícil, mas temos conseguido. A gente leva cada vez menos trabalho pra casa. Claro, eu sou casada com uma pessoa que eu confio no gosto, no julgamento, e o Pedro é muito experiente. A gente tem uma relação muito grande do cumplicidade (...), respeitamos o espaço criativo do outro e estamos cuidando de uma parte musical para o lazer.”
Os dois formaram uma dupla antes de ser um casal. Roberta estava prestes a gravar seu primeiro disco, em 2005, e pediu uma música ao carioca. Nascida em Natal e radicada no Rio de Janeiro, ela recebeu de presente “No Braseiro”, faixa que puxou o título do álbum de estreia. Houve várias trocas até que ela bem retribuiu o apoio em 2011, gravando “Tempo de menino”, no disco solo do marido.
Os encontros não atendem exigências, como ela faz questão de frisar. Eles já subiram ao palco juntos, mas, afora as pequenas participações, não fizeram ainda um trabalho em parceria. São cobrados, mas Roberta despista. “Tem de ser uma celebração e vir na hora certa.”    


“Estou numa idade em que isso sempre está na cabeça e filho  é algo que a gente quer muito”, sobre ter filhos.

Um dos mais recentes encontros musicais da cantora foi com o madrilenho Alejandro Sanz, que ao ouvi seu álbum “Segunda pele”, a convidou para gravar a música “Bailo con vos”. “É outro departamento: ele é um pop star”, diz, com um semblante ainda de surpresa mesclado com distanciamento, mesmo que as afinidades tenham sido descobertas já no primeiro encontro, quando ele esteve no Rio de Janeiro. “Rolou química na hora de cantar e ele é uma graça de pessoa.”
Antes de gravar, voltam as vantagens de ter um parceiro em casa. Ao receber a música do produtor - Roberta e Alejandro Sanz estão na mesma gravadora, a Universal – ela pediu para que Pedro Luís fizesse uma versão. Terminou gostando das duas letras e, por isso mesmo, canta em português e espanhol.
Afeita a novidades musicais e fruto de uma miscelânea natural do Nordeste e dos grandes centros do Brasil, Roberta tem escutado outro artista hispano: Jorge Drexler, nascido no Uruguai, mas que hoje mora na Espanha.


Quando criança Roberta recebia os ecos da Jovem Guarda e ouvia clássicos dos Beatles, eram essas as influências dos pais. Ainda não pensava em seguir a carreira artística. Estudou jornalismo, caiu no programa Fama, da Rede Globo, não cedeu ao estilo americanizado imposto pelo reality, mas encontrou lá outro parceiro, Felipe Abreu, que se tornou seu preparador vocal.
Um ano mais tarde, em 2003, gravou um CD demo com cinco faixas. Aquilo chegou às mãos do autor de novelas Gilberto Braga e ele, assim, gravou um clássico de Dorival Caymmi para a trilha da novela “Celebridade”. “Meu primeiro disco realmente aconteceu por acaso. Fiz essa demo e a coisa foi acontecendo.” Oito anos depois ela conta com uma equipe para “realizar os desejos e também ajudar a colocar os pés no chão.”
Desde esse princípio, no entanto, parecia claro que a escolha era pelo samba. Roberta Sá cantava e desenhava nos palcos passos curtos, de uma dança quase retraída, se é que se pode ser assim. Mas era. Experimentada e tendo estudado balé desde a infância na companhia Corpo Vivo, ainda na capital potiguar, ela sabia o que apresentar. Muito distante daquele palco que se movimentava e era cercado por gruas pendurando câmeras de televisão, na sua primeira aparição para o país, ela desvendou os mistérios.
“Estou cada vez mais à vontade no palco. Tenho dias mais introspectivos e outros em que danço mais. O tipo de relação que criei com meu público me permite isso, que seja mais natural e expresse o que sinto”, garante e lembra o padrinho musical, Ney Matogrosso. “Ele diz: ‘você não precisa se mexer muito, sua história é com a voz’. E ele tem muita razão, minha história no palco é com o canto.”


A julgar pelos dois últimos trabalhos, vê-se que a relação de Roberta não era só com o samba, apesar de ela sugestionar em breve fazer um disco só com sambas. Atualmente está em turnê com “Segunda pele”, álbum que tem muito de transformação, de mudança de pele, ritmos variados e é um disco mais íntimo. “É um disco que fiz mais livre. As músicas falam de um olhar mais feminino, de uma mulher urbana, mas que é amorosa. Poeticamente o foco é na alma feminina”, explica.
Antes disso foi lançado “Quando o canto é reza”, em parceria com o Trio Madeira Brasil. “Se eu fosse gravar, seria uma coisa. Se o trio fizesse, seria outra. A gente bateu muita cabeça até encontrar uma sonoridade nossa e eu fiquei muito impressionada com o poder da música brasileira crua, de raiz, do violão de sete cordas, do repertório brejeiro do Roque Ferreira. O disco foi um sucesso comercial sem que a gente fizesse televisão”, comemora e revela sua inspiração: “Busquei minhas imagens de infância, da praia de Muriú, de Ceará-Mirim, no meu Rio Grande do Norte.”
Aliás, uma das grandes vantagens de Roberta é ser muitas, diversificar o repertório, de ser “potioca”, como certa vez descreveu Tony Garrido, meio potiguar, meio carioca. “O meu povo do Nordeste sabe receber muito bem e algumas coisas ficam na nossa alma. Eu guardo tudo isso e sou resultado de uma mistura muito grande”. 



Texto: Cristiano Félix
Fotos: Murilo Meirelles/ Cedidas

* Reportagem publicada originalmente na revista LivingFor.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Tom Veiga, o legítimo



Parece exótico, mas foi no coração de São Paulo que Tom Veiga descobriu o surf art. Cansado de receber briefing de agências de publicidade para poder criar, o curitibano se deparou com uma exposição no meio do Parque Ibirapuera e ficou fascinado pela forma autoral com que artistas expunham seus trabalhos. E quis entrar na onda, mesmo sem sequer saber nadar (é verdade!).



Outro dia conheci o trabalho dele, que já circulou quase todo o mundo, de desenhar ondas com formas lúdicas e multicores. Tudo é primeiro feito no papel, sempre numa cafeteria do Mercado Municipal de Curitiba, e em seguida passado pra o computador.  Marcamos uma entrevista.
“Um ano depois do início,  já tinha atingido uma boa projeção. Percebi que tinha um valor que ainda não conseguia mensurar. Então, de repente, as marcas que eu procurava no início da minha carreira para mostrar meus trabalhos, é que começaram a bater à minha porta. Coloquei os pés no chão e procurei me aperfeiçoar, até aceitar os primeiros convites”, disse Tom.


E não é que outro dia estava eu circulando por um shopping e dei de cara com os desenhos do cara estampando as lendárias Havaianas? Muito bacana ver que o design dele casou perfeitamente com o produto. Garanti um par. E se você quiser conhecer mais sobre o trabalho dessa figura, acesse aqui a galeria virtual: SerieWaves.

domingo, 18 de agosto de 2013

Sonora ebulição



Com doze anos de carreira e seis álbuns, a cantora Luiza Possi entrou num mercado em transformação no início dos anos 2000 e enfrentou desafios, como de resto aconteceu com diversos artistas. No Brasil, milhares de quilômetros distante da terra das college radios que difundiram a proposta do R.E.M., o mercado fonográfico do final dos anos 1990 foi marcado pelo jabá e viciou gravadoras então acostumadas a vender cópias de álbuns em volumes de pelo menos seis dígitos.
Registre-se essa informação para entender os motivos de Marcelo Camelo -  antes de se tornar um aclamado compositor - e sua trupe hoje abominarem o primeiro single do homônimo Los Hermanos: “Anna Julia”, a melódica trilha de uma banda que se intitulava hardcore. Pagaram para divulgar a música em rádios por todo o país até que ela foi tocada exaustivamente, grudou e cansou. Foi ali que se abriu o precedente para que as gravadoras deixassem de investir na descoberta do novo e o consumidor tivesse o ouvido destreinado para identificar propostas realmente inovadoras.
Pouco mais de dez anos atrás foi preciso fazer uma revolução na forma de consumir música para não cair no ostracismo do que era entregue pela grande mídia. Reféns também eram os artistas que vinham de uma escola vibrante e encontravam pouco espaço para atuar. Fugindo da condição de vítima, começaram a disponibilizar músicas pela internet, o que só se consolidou apenas há pouco, assim como o hábito do público de procurar pelos blogs os encontros em becos e outros espaços fora do circuito, visitados por músicos alternativos.
O curso é irreversível: na rede surgem promessas musicais que depois de milhares de visualizações e downloads conseguem espaço na TV e nas rádios. Ou, tamanha é a velocidade, as duas coisas acontecem ao mesmo tempo. Não é por acaso que cada vez mais artistas aceitam a exposição de realitys televisivos, como observa Luiza Possi, que já julgou e treinou participantes do Ídolos, da rede Record, e do The Voice Brasil, da Globo.  


“A música sempre foi o primo rico do cinema, da literatura e do teatro, mas isso mudou muito. A indústria fonográfica já chegou a ser a 12ª do Brasil e hoje em dia ela é quase inexistente. Eu lembro que pouco tempo atrás quando um artista falava que era independente, as pessoas olhavam com dó. E hoje ser independente é um luxo. Artista independente se banca, investe onde quer. A carreira tem para onde ir, tem horizonte. Apesar disso muita gente procura espaço na mídia tradicional pra alavancar a carreira. A televisão é o maior canal de exposição para um artista. É onde ele consegue chegar aonde ele não chegaria sozinho. Digo isso por experiência própria: rádio tem um alcance, internet tem outro, mas televisão é ‘o alcance”, analisa.
Os dados do mercado referentes ao ano de 2012 ainda não foram consolidados, normalmente só saem no mês de abril. Mas desde o ano anterior já houve sinais de aquecimento, justamente porque os novos músicos conseguem sair dos guetos e ocupar outros espaços midiáticos que não a internet. A Associação Brasileira de Produtores de Discos (ABPD) constatou em 2011 um crescimento de 8,4% no faturamento da indústria que chegou a R$ 373,2 milhões. CDs, DVDs e Blu-Rays tiveram 7,6% mais saída e o formato digital foi ampliado em 12,8%.
Aliás, o digital segue sendo a terceira fonte de renda, respondendo por 16%, mesmo que seja percentualmente a metade da média mundial. Os próximos números, porém, podem surpreender, já que a chegada do iTunes, loja virtual da Apple, ao Brasil, aconteceu apenas em meados de dezembro. Não houve um impacto significativo, mas isso deve mudar, haja vista que o download de músicas avulsas teve aumento de 310% na última medição.
“Ter identidade e independência é fundamental para o processo. Nenhuma gravadora diz que acabou o dinheiro. Se o artista depende dela, quando se dá conta já está preso, encalacrado”, ressalta Luiza.

Cheia de hormônios e nada blasé

Foi por isso que Luiza abriu ainda em 2006 seu próprio selo, o LGK Music, tendo apenas a distribuição dos álbuns pela EMI/Som Livre. “Minha gravadora sou eu, mas não estou sozinha. Nem quero essa responsabilidade de ter de decidir todas as coisas. Gosto de contar com pessoas. Apesar de pensar em música pra rádios e pra novela, elas tem de estar dentro do meu universo. Nunca vou gravar algo que seja forçado.”
A cantora compõe e pela primeira vez tem um álbum sem a direção artística do pai, o músico Líber Gadelha, e com a participação da mãe Zizi Possi. “Trabalhei com meu pai até que não deu mais”, fala, sem detalhes, apenas concluindo: “Hoje vejo minha família de um outro ângulo. Eu tenho de honrar minhas raízes e esse dom, que é hereditário, e todas as oportunidades que meus pais me deram.”
Zizi divide uma faixa com Luiza pela primeira vez, no sexto álbum da carreira. E ela argumenta a falta de convite. “Não queria que meu trabalho refletisse o da minha mãe. Ela já tem uma carreira que é linda e eu queria mostrar que podia sozinha.” Poder sozinha é o que ela mostrou desde o início, ainda adolescente. Enquanto Zizi pediu que aguardasse mais “uns três anos” para gravar, ela dispensou os conselhos e se embrenhou num estúdio com orquestra e tudo. “Sempre fui muito independente. Componho quase todas as faixas do meu CD. Meu show é pra cima, dançante. Não estou numa fase Acústica e nem faço o tipo blasé. Não sou dessas, tenho muito hormônio.”
Luiza, ninguém duvidaria dessa ebulição. Sua e de tantos outros irrequietos.   

Matéria publicada na sétima edição da revista LivingFor
Fotos: Ramón Vasconcelos

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Princesa Violeta


Sheron Menezzes é testemunha de que a boa prática da atuação exige do profissional lições básicas de empreendedorismo. Na rotina de quem dá vida a personagens a inspiração é a menor parcela. Quase todo o processo é de transpiração, muito trabalho. E é preciso saber também que qualquer história, por mais desenhada que pareça, pode ser contada de várias maneiras. Longe dos holofotes ela faz sua parte: ajuda crianças carentes, a maioria negras, a se livrar do estereótipo abjeto. Mostra que a imagem preconcebida não é uma mentira, mas não passa de um desenho incompleto.


Foi a matriarca da família Menezes, a professora Veralinda, quem criou a personagem Princesa Violeta, inspirada em Sheron. É com ela que mãe e filha trabalham juntas um projeto de responsabilidade social, aplicado em escolas da rede pública. A iniciativa visa a inclusão de meninas em idade escolar através do incentivo a leitura.
“Quando a gente vê essas jovens, quase todas negras e de família pobre, nota logo que elas não imaginam que poderiam ser princesas de verdade. Realmente as meninas não tem como ser a Cinderela ou a Branca de Neve, mas elas podem ser a Princesa Violeta. Existe uma identificação com o universo delas. Nunca tive nenhum problema com preconceito porque eu me aceito e me amo e isso exala. Acho que a auto-estima tem de ser trabalhada desde cedo pra que elas cresçam se sentido bem, sem querer alisar o cabelo ou se pintar com maquiagem pra tentar ficar com a pele mais clara. Infelizmente ainda existe muito disso”, comenta.
Esse mesmo pensamento tem a escritora Chimamanda Adichie. Palestrando mundo afora, essa africana fala sobre o que chama de “o perigo da história única.” Conta que foi uma leitora precoce e começou a escrever muito cedo também, aos sete anos. Suas personagens eram invariavelmente loiras, de olhos azuis, comiam maçãs e ficavam felizes quando fazia sol. Tudo eram apenas uma reprodução da literatura que ela consumia, não importando que ao seu redor as crianças chupassem magas e todos os dias fizesse bom tempo. Naquela iniciação, era como se os africanos não tivessem espaço nos livros.
Só quando conheceu os escritores do seu país e pôde frequentar una universidade nos Estados Unidos, se apercebeu de novas versões, analisando o quão somos vulneráveis face a uma história. No outro continente ela se deparou com novos olhares estreitos, como o de uma aluna da mesma sala que ficou espantada com o domínio de Adichie falando em inglês, sem saber que esse é o idioma oficial da Nigéria, onde ela nasceu. O retrato da sua pátria que é passado por muitas mídias, ela reconhece, é de belos animais e pessoas morrendo de fome e em decorrência da AIDS. Mas, ao mesmo tempo, a escritora defende: existe além. Abreviando o discurso, sem tanto prejuízo para a verdade, se conclui que uma história única rouba a dignidade das pessoas. E a mesma história que destrói, também pode reparar a dignidade perdida.
Sheron também não negligencia. Dona de muita energia, distribui sua força em mais de uma dezena de projetos sociais, não apenas com crianças, mas com animais. Nos últimos tempos resgatou quatro das ruas. Um deles mora com a mãe e os outros dividem espaço com a atriz no seu apartamento no Rio. Os bichos ganharam nomes divertidos, verdadeiros chistes. Tripé é um gato de três patas e os dois cães homenageiam Frida Kahlo e Fidel Castro. Batata Frida e Fidel Castrado contribuem com a veia mais atuante de Sheron: cuidar dos animais. “Minha preocupação com o outro é natural. Mas antes de abraçar uma causa, tomo meus cuidados. É importante saber se uma entidade é crível. Afinal, ela só consegue se projetar e ampliar o trabalho se as pessoas conhecem, acreditam e ajudam”, destaca.

Rotina

Parece não ter onde caber, mas Sheron Menezzes ainda encontra disposição para outras atividades. Corre, pratica ioga, kickbox (sim, ela já se machucou. Torceu o pé pouco antes do carnaval deste ano e mesmo assim desfilou) e ainda se divide entre palcos, televisão e o que mais pintar. Atualmente está em cartaz com a peça Açaí e Dedos e ainda conciliou teatro com a novela “Aquele Beijo”, de Miguel Falabella. A morena viveu Grace Kelly, uma jovem que foi abandonada pela mãe e cresceu num orfanato. Foi o primeiro papel de vilã da carreira. “Ela acha que já sofreu muito e merece vencer na vida. Não tem escrúpulos e acredita que está certa em ter tanta ambição. É um desafio”, diz.
Sheron é de fases. Fã de Billie Holiday,  está apaixonada por Nina Simone. “Eu sou do blues e do jazz, mas a gente tem vários momentos na vida e de vez em quando ouço outras coisas”, revela. O que não tem jeito de mudar é a maneira de se vestir. Ela acredita que estilo é ter autenticidade. O cabelo crespo e o tom da pele são destaque. E, com eles em evidência, realmente dá pra compor um visual com pouco. “Ninguém acredita que eu sou básica, mas acho que sou assim porque minha herança genética tem uma exuberância natural. Qualquer coisa que ponho a mais pode parecer excesso. Como trabalho com imagem, procuro estar atenta a toas as tendências, mas não sigo moda. Eu sei o que está na moda e incorporo uma ou outra peça.  Me incomoda ver todo mundo igual.”
Cá entre nós, básica como for, essa princesa merece o trono.

*Matéria publicada na primeira edição da LivingFor.
Fotos: Giovanna Hackradt.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Hibridismo em cena


As cortinas estão abertas, mas é como se abrissem e fechassem. Beth Goulart revela e suprime nuances de Clarice Lispector. Também se mostra no placo e se esconde para que outras surjam. É como se fosse uma brincadeira infantil, jogo que a atriz defende acontecer desde a idade mais tenra: como a leitura de pai para filho, a apresentação do mundo dos livros.


Numa sociedade de forte cultura de criação de mitos, Beth Goulart passou por um longo processo de angústia até colocar em cena uma das mulheres que mais admira. Foram exatos dois anos de buscas, leituras de teses e análises de entrevistas e os mais diversos materiais até concluir a feitura do espetáculo “Simplesmente eu, Clarice Lispector”.
Nele há muitas sutilezas, pouca desconstrução. São subterfúgios para não expor a vida sobre a obra, maior legado da escritora nascida na Ucrânia e criada nos arredores de Recife e do Rio de Janeiro. No teatro não são contadas passagens marcantes da vida de Clarice como o incêndio provocado por um cigarro aceso durante a madrugada e que, dormido entre os dedos, terminou por cair sobre o colchão.
O episódio de 14 de setembro de 1966 que a deixou três dias internada sob risco iminente de morte e mais dois meses hospitalizada, com inúmeras queimaduras pelo corpo, profundas cicatrizes na alma e por pouco não lhe amputou a mão direita, não é explícito, apesar de Beth deixar a mão retraída ao admitir essa “persona”, como costuma dizer.
“Eu falo dos momentos mais difíceis com muita delicadeza ou quase não falo: eu mostro. Costumo dizer que quem conhece a Clarice, reconhece. Quem não a conhece, passa a conhecer. Meu interesse nunca foi contar a história de uma forma linear e biográfica. Dou fragmentos, pistas sobre a vida e a obra dela para que cada um faça seu encaixe.”
Os argumentos de Beth encontram palavras de outro artista. As do bailarino Kazuo Ohno, figura máxima da dança-teatro expressionista conhecida como butô. O mestre desse estilo surgido na vanguarda japonesa dos anos de 1950, como resposta ao terror da bomba de Hiroshima – que começou a dançar tardiamente, aos 43 anos, e fez isso inclusive sobre uma cadeira de rodas – dizia que o artista não pode dar mais de 70%. O resto quem completa é cada um.


Ela, também experimentada nos palcos, complementa: “A arte não se explica, mas faz sentir e propõe questões para que você tire suas conclusões. E isso ficou claro quando comecei a assumir minha dor. Quanto mais pessoal se é, mais universal se torna. O pesar do ser humano é único, assim como a solidão e as grandes sensações. Eu só pude entender a solidão da Clarice quando chequei a minha solidão, minha angústia criativa, meu estado de graça e a personagem terminou um híbrido de Beth e Clarice.”
Essa e outras análises são fruto do único auxílio que Beth Goulart teve durante a concepção do espetáculo – todo o restante ela assumiu sozinha, do roteiro até a direção. O ator e diretor de teatro Amir Haddad funcionou como supervisor, lançando um olhar em cima do da atriz e propondo questões para ressaltar a consciência de Beth sobre o que estava sendo criado.
Haddad a convenceu de que aquela realização não era um depoimento simplesmente de Clarice, já que Beth se revelava tanto quanto a escritora. Para uma falar da dor e da solidão da outra, precisava colocar a sua própria, tornar o espetáculo um ser vivo, mais humano. A essa observação e diferentes de pessoas que privaram da intimidade de Clarice Lispector e apresentaram mais vestígios, hoje se deve a existência, em cena, de uma pessoa “independente e que comanda”. É através dela que Beth consegue improvisar de Clarice no palco, se preciso for, e até durante a entrevista.  
“Isso é possível pela intimidade que eu tenho com a obra de Clarice, mas, antes de chegar a essa persona, pisei no terreno do desconhecido e passei por momentos muito angustiantes. Nesse longo processo de concepção, tive de abrir mão do meu arsenal de conhecimentos para sair da zona de conforto e criar algo novo. Tive de esquecer o resultado para mergulhar de cabeça no perigo, precisei sentir o desequilíbrio e o risco de cair. Isso é muito desagradável e todo o processo de construção foi uma aflição. Mas foi necessário também viver. A gente só voa se aceita o risco de cair. É a fé no salto que me faz chegar ao outro lado”, revela.
Toda ansiedade foi legítima. Beth Goulart teve de sobrepor diversos obstáculos até chegar o momento da consagração nos palcos e receber os principais prêmios no Brasil, incluindo o Shell. O primeiro e mais alto foi a não aprovação da família do escritor Fernando Sabino. Inicialmente Beth quis colocar em cena a troca de correspondências entre Sabino e Lispector, publicada em “Cartas perto do coração.” “Eu queria mostrar o ser humano por trás do autor, mostrar detalhes da vida desses criadores (...) Fiquei numa situação complicada, mas não tinha como retroceder. Já estava envolvida pela Clarice”, diz.
Paulo Gurgel Valente, filho de Clarice Lispector, foi um dos primeiros a assistir a um ensaio, ainda na fase inicial. Não havia cenário e tampouco figurino. “Claro que eu também fiquei nervosíssima.  Ele viu muito no início, mas eu precisava saber se estava tudo em ordem para, se fosse o caso, ter tempo de modificar. Ele ficou super emocionado, tanto que não conseguiu falar muito ao final. Depois me escreveu um e-mail com coisas incríveis. Disse que tem certas frases que são muito fortes e eu tinha de dar um tempo entre uma e outra pra que elas tivessem eco. Filho tem suas sensibilidade. Eu vi que ele tinha toda razão e comecei a trabalhar melhor o silêncio.”


“Tive de esquecer o resultado para mergulhar de cabeça no perigo, precisei sentir o desequilíbrio e o risco de cair. Mas foi necessário também viver. A gente só voa se aceita o risco de cair. É a fé no salto que me faz chegar ao outro lado”

Intimidade entre mulheres

É o terceiro espetáculo de Beth Goulart como criadora, uma cobaia de si mesma. “A linguagem surgiu muito do meu fazer teatral. É como a palavra da Clarice que é só dela. E eu tive a sorte de tê-la junto comigo. Ela me ampara, me sustenta, me dá lastro. O espetáculo é uma declaração de amor.”
A atriz tinha 13 anos quando leu o livro inaugural de Clarice, “Perto do coração selvagem”, pela primeira vez. No livro, Joana, a protagonista, também é uma jovem e houve identificação imediata. Demorou muito para o espetáculo nascer. Muito até que chegasse o entendimento para transformar a solitária experiência da literatura na arte coletiva do teatro, de juntar muitos num só momento de epifania. Levou realmente tempo. Na verdade, uma vida inteira.
“Clarice me acompanhou durante toda a minha vida. Li muitas de suas obras e minha admiração só aumentou. Virei mulher e percebi que as palavra dela tem uma importância em cada fase. Aliás, a cada nova leitura se apreende algo.”
Fazer uma personagem real é mais desafiador, mas Beth vive Clarice e outras quatro. Foi por isso que no processo de visagismo abriu mão de uma maquiagem que a deixava ainda mais parecida com a escritora. E ao invés de aproximar outras características, o melhor foi ter distanciamento físico. As sobrancelhas, ambas finas, mas uma reta e outra arqueada, foram neutralizadas.
“Eu não podia ser uma caricatura, nem a força estava na maquiagem. Existe todo um trabalho de gestos, de maneira de falar, do ritmo da voz, ritmo de andar em que a presença da Clarice fica muito forte. Cada personagem se expressa de uma forma. As idades são diferentes e as mudanças ficam claras para o público. Faz parte da linguagem do espetáculo essas transformações. Tanto que todas elas são feitas diante da platéia. O espaço cênico é muito aberto. Pedi ao cenógrafo que fizesse um vazio branco, queria dar a ideia de que aquele espaço poderia ser preenchido pelas palavras e pelos gestos, pela luz, como se fosse uma tela em branco a ser pintada ou uma folha a ser escrita. Essa neutralidade tem relação com uma essencialidade de linguagem teatral que eu busco nos meus trabalhos e que existe nas palavras de Clarice. O espetáculo é muito sensorial e eu proponho que as pessoas sintam a Clarice mais que analisem ela.”


A despeito da escapatória planejada para respeitar o que é particular de uma figura pública, há vários momentos que mostram as intimidades de Clarice Lispector. Num divã colocado no palco ela passa por uma das sessões de anos de psicanálise. E é quando reverberam muitas palavras e outros inúmeros vazios da mulher lúcida em excesso e de temperamento reconhecidamente impulsivo.
Depois de uma momento de epifania - ou “instante já” no modo clariciano de dizer -  no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, o espetáculo cresce. É a partir da abertura de olhares de uma dona de casa até então limitada a cuidar do marido e dos filhos que as personagens enxergam novas possibilidades. Elas invariavelmente tem opiniões fortes, mas a partir do surgimento de um objeto desconcertante, começam a pesar diferente, se perdem e terminam por encontrar novas formas de entendimento do mundo. Do seu infinito particular e do que há ao redor.
Beth, que se interessa por outras mulheres e já começou a estudar pioneiras em diversas áreas como Dulcina Moraes e Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata, mãe do samba, se questiona em uma das cenas, num tom aberto: “O que seria do meu corpo sem o aviso da fome? Que seria de mim sem Deus!”
É assim que, sem titubear, diz sobre o que foi o maior aprendizado dessa trajetória: ter mais humanidade.

Fotos: Ramón Vasconcelos
*Matéria publicada na revista LivingFor.