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terça-feira, 13 de outubro de 2015

116.

Ann Hamilton
Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida. A música embala, as artes visuais animam, as artes vivas (como a dança e o representar) entretêm. A primeira, porém, afasta-se da vida por fazer dela um sono; as segundas, contudo, não se afastam da vida – umas porque usam de fórmulas visíveis e portanto vitais, outras porque vivem da mesma vida humana.

Não é esse o caso da literatura. Essa simula a vida. Um romance é uma história do que nunca foi e um drama é um romance dado sem narrativa. Um poema é a expressão de ideias ou de sentimentos em linguagem que ninguém emprega, pois que ninguém fala em verso.

Fernando Pessoa, in: Livro do Desassossego. Ed. Companhia das Letras

quinta-feira, 31 de julho de 2014

359.

Daniel Seung Lee
Ninguém compreende outro. Somos, como disse o poeta, ilhas no mar da vida; corre entre nós o mar que nos define e separa. Por mais que uma alma se esforce por saber o que é outra alma, não saberá senão o que lhe diga uma palavra – sombra disforme no chão do seu entendimento.  

Amo as expressões porque não sei nada do que exprimem. Sou como o mestre de Santa Marta: contento-me com o que me é dado. Vejo, e já é muito. Quem é capaz de entender? 

Talvez seja por este cepticismo do inteligível que eu encaro de igual modo uma árvore e uma cara, um cartaz e um sorriso. (Tudo é natural, tudo artificial, tudo igual.) Tudo o que vejo é para mim o só visível, seja o céu alto azul de verde branco de manhã que há-de vir, seja o esgar falso em que se contrai o rosto de quem está a sofrer perante testemunhas a morte de quem ama. 

Bonecos, ilustrações, páginas que existem e se voltam. Meu coração não está com eles nem quase minha atenção, que os percorre de fora, como uma mosca por uma papel. 

Sei eu sequer se sinto, se penso, se existo? Nada: só um esquema objectivo de cores, de formas, de expressões de que sou o espelho oscilante por vender inútil. 

Fernando Pessoa, in: Livro do Desassossego. Ed. Companhia das Letras

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Viajar? Para viajar basta existir.

Vou de dia para dia, como de estação para estação, no comboio do meu corpo, ou do meu destino, debruçado sobre as ruas e as praças, sobre os gestos e os rostos, sempre iguais e sempre diferentes, como, afinal, as paisagens são.

Se imagino, vejo. Que mais faço eu se viajo? Só a fraqueza extrema da imaginação justifica que se tenha que deslocar para sentir.

"Qualquer estrada, esta mesma estrada de Entepfuhl, te levará até o fim do mundo." Mas o fim do mundo, desde que o mundo se consumou dando-lhe a volta, é o mesmo Entepfuhl de onde se partiu. Na realidade, o fim do mundo, como o princípio, é o nosso conceito do mundo. É em nós que as paisagens têm paisagem. Por isso, se as imagino, as crio; se as crio, são; se são, vejo-as como às outras. Para quê viajar? Em Madrid, em Berlim, na Pérsia, na China, nos Pólos ambos, onde estaria eu senão em mim mesmo, e no tipo e género das minhas sensações?

A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos.

Fernando Pessoa, in: Livro do Desassossego. Ed. Companhia das Letras

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

"Les Amours Imaginaires"

A História de Adèle H.
As figuras imaginárias têm mais relevo e verdade que as reais.

O meu mundo imaginário foi sempre o único mundo verdadeiro para mim. Nunca tive amores tão reais, tão cheios de verve, de sangue e de vida como os que tive com figuras que eu próprio criei. Que loucura! Tenho saudades deles porque, como os outros, passam...

Fernando Pessoa, in: Livro do Desassossego. Ed. Companhia das Letras

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

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O próprio escrever perdeu a doçura para mim. Banalizou-se tanto, não só o acto de dar expressão a emoções como o de requintar frases, que escrevo como quem come ou bebe, com mais ou menos atenção, mas meio alheio e desinteressado, meio atento, e sem entusiasmo nem fulgor.

Fernando Pessoa, in: Livro do Desassossego. Ed. Companhia das Letras

domingo, 26 de junho de 2011

A viagem na cabeça

Do meu quarto andar sobre o infinito, no plausível íntimo da tarde que acontece, à janela para o começo das estrelas, meus sonhos vão por acordo de ritmo com a distância exposta para as viagens aos países incógnitos, ou suspostos, ou somente impossíveis.

Fernando Pessoa, in: O Livro do Desassossego. Ed. Companhia das Letras

segunda-feira, 13 de junho de 2011

hoje é dia de Pessoa

Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida. A música embala, as artes animam, as artes vivas (como a dança e o representar) entretêm. A primeira, porém, afasta-se da vida por fazer dela um sono; as segundas, contudo, não se afastam da vida - umas porque usam de fórmulas visíveis e portanto vitais, outras porque vivem da mesma vida humana.

Não é esse o caso da literatura. Essa simula a vida. Um romance é uma história do que nunca foi e um drama é um romance dado sem narrativa. Um poema é a expressão de ideias ou de sentimentos em linguagem que ninguém emprega, pois que ninguém fala em verso.

Fernando Pessoa, in: O Livro do Desassossego. Ed. Companhia das Letras
A ladeira leva ao moinho, mas o esforço não leva a nada.

Era uma tarde de primeiro outono, quando o céu tem um calor frio morto, e há nuvens que abafam a luz em cobertores de lentidão.

Duas coisas só meu deu o Destino: uns livros de contabilidade e o dom de sonhar.

Fernando Pessoa, in: O Livro do Desassossego. Ed. Companhia das Letras

quarta-feira, 1 de junho de 2011

horizonte

O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esperança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte - Os beijos merecidos da verdade.

Fernando Pessoa, in: Mensagem. Ed. Nova Fronteira

domingo, 8 de maio de 2011

Três dias seguidos de calor sem calma, tempestade latente no mal-estar da quietude de tudo, vieram trazer, porque a tempestade se escoasse para outro ponto, um leve frescor morno e grato à superfície lúcida das coisas. Assim às vezes, neste decurso da vida, a alma, que sofreu porque a vida lhe pensou, sente subitamente um alívio, sem que se desse nela o que o explicasse.

Concebo que sejamos climas, sobre que pairam ameaças de tormenta, noutro ponto realizadas.

A imensidade vazia das coisas, o grande esquecimento que há no céu e na terra...

Fernando Pessoa, in: O Livro do Desassossego. Ed. Companhia das Letras

segunda-feira, 25 de abril de 2011

... no desalinho triste das minhas emoções confusas ...

Uma tristeza de crepúsculo, feita de cansaços e de renúncias falsas, um tédio de sentir qualquer coisa, uma dor como de um soluço parado ou de uma verdade obtida. Desenrola-se me na alma desatenta esta paisagem de abdicações - áleas de gestos abandonados, canteiros altos de sonhos nem sequer bem sonhados, inconsequências, como muros de buxo dividindo caminhos vazios, suposições, como velhos tanques sem repuxo vivo, tudo se emaranha e se visualiza pobre no desalinho triste de minhas sensações confusas.

Fernando Pessoa, in: O Livro do Desassossego. Ed. Companhia das Letras

domingo, 17 de abril de 2011

Chove muito, mais, sempre mais...

Há como que uma coisa que vai desabar no exterior negro...

Todo amontoado irregular e montanhoso da cidade parece-me hoje uma planície, uma planície de chuva. Por onde quer que alongue os olhos tudo é cor de chuva, negro pálido.

Tenho sensações estranhas, todas elas frias. Ora me parece que a paisagem essencial é bruma, e que as casas são a bruma que a vela.

Uma espécie de anteneurose do que serei quando já não for gela-me corpo e alma. Uma como que lembrança da minha morte futura arrepia-me de dentro. Numa névoa de intuição, sinto-me, matéria morta, caído na chuva, gemido pelo vento. E o frio do que não sentirei morde o coração actual.

Fernando Pessoa, in: O Livro do Desassossego. Ed. Companhia das Letras

segunda-feira, 4 de abril de 2011

São horas talvez de eu fazer o único esforço de eu olhar para a minha vida. Vejo-me no meio de um deserto imenso. Digo do que ontem literariamente fui, procuro explicar a mim próprio como cheguei aqui.

Fernando Pessoa, in: O Livro do Desassossego. Ed. Companhia das Letras

domingo, 3 de abril de 2011

Litania

Amanda Cass
Nós nunca nos realizamos.
Somos dois abismos - um poço fitando o céu.

Fernando Pessoa, in: O Livro do Desassossego. Ed. Companhia das Letras

segunda-feira, 21 de março de 2011


Minha alma é uma orquestra oculta; não sei que instrumentos tangem e rangem, cordas e harpas, tímbales e tambores, dentro de mim. Só me conheço como sinfonia.

Fernando Pessoa, in: O Livro do Desassossego. Ed. Companhia das Letras

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Brilho de Uma Paixão

Um hálito de música ou de sonho, qualquer coisa que faça quase sentir, qualquer coisa que faça não pensar.

Fernando Pessoa, in: O Livro do Desassossego. Ed. Companhia das Letras

quinta-feira, 25 de março de 2010

Eu tenho uma espécie de dever,
de dever de sonhar,
de sonhar sempre,
pois sendo mais do que
uma espectadora de mim mesma,
Eu tenho que ter o
melhor espetáculo que posso.
E assim me construo a ouro e sedas,
em salas supostas, invento palco, cenário para viver o meu sonho entre
luzes brandas e músicas invisíveis.

Fernando Pessoa, in: O Livro do Desassossego. Ed. Companhia das Letras